É verdadeiro truísmo dizer que o Brasil dos dias que correm atravessa um período de absoluto desmando. As nossas instituições públicas encontram-se em profunda erosão, circunstância essa que, de forma inexorável, tem exacerbado o comportamento das pessoas. Recentes notícias evidenciam que até mesmo agentes públicos de vários escalões do Governo não hesitam em assacar impropérios a quem quer que seja, em pleno recrudescimento das crises econômica e política. O nosso dia-a-dia, a despeito do necessário isolamento social, tornou-se palco de absurdos e idiossincrasias.
Nos domínios da comunidade jurídica, no entanto, excetuando-se alguns esporádicos desvios, ao menos a aparência de civilidade vem sendo preservada nas relações entre os atores que operam o direito. O Judiciário, de fato, emerge nesse inusitado contexto como protagonista de uma tarefa fundamental, qual seja a de responder, a tempo e hora, a uma miríade de questões que surgem, a todo momento, seja na esfera de políticas públicas, seja no âmbito de litígios interpessoais deflagrados pela superveniência do desequilíbrio financeiro proporcionado pela intervenção estatal imposta pela pandemia, bem como naqueles mais sensíveis, relacionados ao direito de família.
São os juízes, portanto, na percepção da sociedade, que, atualmente, mais do que nunca, desempenham a função de acudir aqueles que batem às portas dos nossos tribunais. É ocioso afirmar que, por tradição, a figura do magistrado, em qualquer sociedade, representa esperança e impõe respeito. É o juiz de direito que encarna os atributos da sobriedade e da ponderação!
Não é por razão diferente – aliás, desnecessária - que já dispunham as Ordenações Filipinas, no título dedicado ao Regimento das Audiências, que o juiz deve ouvir todos os requerentes com afabilidade e urbanidade, “sem usar de palavras de remoque ou escândalo, nem consentir que se digam...” (3.19.14).
Nota-se, com efeito, que essa velha advertência, vem atualmente repristinada com ênfase no estatuto de conduta e de ética da magistratura, como dispõe o artigo 35 da lei complementar 35/79 (LOMAN): “São deveres do magistrado: ... IV– tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência”.
Não obstante, como acima frisado, nem sempre esse valioso axioma deontológico é seguido, dentro ou fora das cortes de justiça, por alguns poucos magistrados.
A rigor, a incivilidade que exorna atualmente a personalidade de determinados integrantes da comunidade jurídica foi destacada, de forma contundente, por Manuel Alceu Affonso Ferreira, em artigo que merece ser lido e que constitui importante repositório de memória àqueles que, como eu, recordam-se, com um certo saudosismo, das relações bem mais cordiais que marcavam o relacionamento entre os protagonistas da justiça. Invocando este passado, já remoto, Manuel Alceu enfatiza os tempos “em que o data venia não constituía sinal de fraqueza ou de rendição ao adversário; nos quais os advogados falavam em pé, pediam licença e protestavam respeitos, esmeravamse na conjugação verbal, na pluralização e nas concordâncias; em que magistrados não encaravam como impertinentes, por isso assumindo fisionomias agressivas e carrancas belicosas, o causídico que buscava um urgente despacho ou, a propósito dessa urgência, tecia breve exposição presencial; a época em que inexistia a surpreendente categoria hoje formada pelos que, nos tribunais, ‘não recebem advogados’, dessa recusa se jactando; os julgamentos transparentes, com os seus votos abertamente proclamados sem o humilhante apelo à reles leitura (per saltum e geralmente inaudível...) de ementas nada esclarecedoras...” (Funeral da cordialidade, Revista da CAASP, dez/2014, p. 50-51).
E isso tudo sem contar, entre muitas outras facetas da crônica do cotidiano, circunstância deveras incomum, pautada pela arrogância.
É exatamente nesse cenário que o site eletrônico g1.globo.com, deste domingo, 19, registra episódio deveras chocante, no qual o Dr. Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, desembargador do prestigioso TJ/SP, humilha reiteradamente um membro da Guarda Civil local, ao ser multado por estar caminhando, sem máscara, na praia da cidade de Santos.
Como se fosse o célebre personagem Rubião, na cena idealizada pelo imortal Machado de Assis, em Quincas Borba, o magistrado – pelo menos no que a gravação revela – faz crer que, ali, nas fronteiras de seu território, pode tudo: “quando a fortuna de uma nação põe na cabeça de um grande homem a coroa imperial, não há maldades que contem...”!
Além de chamar o policial de analfabeto, invoca o desembargador, sem qualquer pudor, o ultrapassado bordão próprio de um Brasil superado: “sabe com quem está se metendo?”, bem dimensionado pelo sociólogo Roberto da Matta, ao salientar que tal expressão revela a “preocupação com a posição social e a consciência de todas as regras relativas à manutenção, perda ou ameaça dessa posição”; é ela invocada nas situações em que alguém, sentindo a sua “autoridade” ameaçada, deseja impor o seu poder, visando a inferiorizar, com escárnio, o interlocutor quanto ao seu status social (Sabem com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, Rio de Janeiro, Rocco, 1997, p. 187).
Ademais, mesmo infringindo a legislação vigente e recusando-se a assinar o auto de infração, o desembargador, ao recebê-lo das mãos do policial, simplesmente, rasgou-o em vários pedaços, arremessandoos ao chão... Cena grotesca!
Diante do que vi, escrevo esse desabafo como cidadão irresignado com a insólita arbitrariedade, restando-me congratular a direção firme e segura do Egrégio Tribunal de Justiça bandeirante, pela pronta resposta em nota de esclarecimento, publicada nesse mesmo domingo: “Em relação ao episódio ocorrido em Santos, ontem (18), quando o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira foi multado por um Guarda Civil Municipal por não utilizar máscara enquanto caminhava na praia, o Tribunal de Justiça de São Paulo informa que, ao tomar conhecimento, determinou imediata instauração de procedimento de apuração dos fatos; requisitou a gravação original e ouvirá, com a máxima brevidade, os guardas civis e o magistrado. O TJSP não compactua com atitudes de desrespeito às leis, regramentos administrativos ou de ofensas às pessoas. Muito pelo contrário, notadamente em momento de grave combate à pandemia instalada, segue com rigor as orientações técnicas voltadas à preservação da saúde de todos. E para o retorno das atividades do Poder Judiciário paulista, a Presidência elaborou detalhado plano para o desempenho seguro dos serviços com, inclusive, material de comunicação alertando para os perigos de contaminação do coronavírus (Covid-19) e a necessidade de uso de máscara em toda e qualquer situação, conforme Resolução 322/20 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Decreto Estadual n. 64.959/20, Provimento do Conselho Superior da Magistratura (CSM) n. 2564/20, Comunicado Conjunto n. 581/20 e Comunicado da Presidência n. 99/20”.
Tamanho o despropósito da atitude perpetrada pelo indigitado desembargador – ao que tudo indica, reincidente, à luz de outro ato de prepotência também veiculado nesta data pela mídia eletrônica -, que ensejou ao Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Humberto Martins, determinar imediata instauração, de ofício, de pedido de providências contra o desembargador, para que preste ele as devidas informações.
A responsabilidade moral e ética de cada ser humano, a rigor, não deveria estar disciplinada por normas preestabelecidas, visto que decorre como consequência natural do berço, da vida em sociedade, do homem em suas relações vitais e comunicativas.
Todavia, como há inexoráveis desvios, que se fazem intoleráveis, torna-se de todo recomendável que seja estabelecido um standard, um padrão, a possibilitar a delimitação objetiva na liberdade de escolha desta ou daquela conduta ética. A ética normatizada tem, pois, a função de fixar algumas premissas, básicas e mínimas, de comportamento social, simplesmente para viabilizar o necessário controle corporativo e institucional.
Oxalá, o desembargador, a quem deve ser assegurada ampla defesa, consiga redimir-se, encontrando justificativa plausível para tal comportamento de lamentável desassossego!
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