Um dos mais importantes princípios da administração pública, insculpido no artigo 37 da Constituição Federal, é a publicidade das ações da administração pública. E, inserido neste princípio, encontramos a ideia de transparência: as autoridades administrativas devem zelar para que seus atos e ideias possam vir à tona para conhecimento e crítica de todos. Assim se faz em um país democrático e republicano. Foi assim que a Constituição Federal Brasileira propugnou em 1988. E é assim que esperamos que um país seja governado. Ledo engano nestas Terra Brasilis.
Meio ao acaso, por conta da investigação de outros fatos, a fala do ministro do Meio Ambiente na reunião do dia 22 de abril veio a conhecimento público. Que bom, pudemos conhecer o que esta autoridade, que deveria ter como mandamento a proteção do meio ambiente, pensa e como traça suas estratégias. Estarrecedor. Ao ser legalmente golpeado com a aplicação do mandamento da transparência – contra sua vontade –, fez notar a infringência de um outro princípio constitucional, a moralidade. Fez-nos ver que esse ministro não tem como objetivo de sua administração a proteção do meio ambiente. Imoral. Ressalte-se que o STF não autorizou a divulgação de um vídeo de reunião de amigos em propriedade privada, mas sim de reunião governamental, dentro de um órgão público, com agentes públicos – o que por si afasta totalmente a alegação de violação de privacidade: agentes públicos devem obediência aos princípios da publicidade e transparência de seus atos administrativos.
A Associação dos Professores e das Professoras de Direito Ambiental do Brasil, reunida em Assembleia Geral Extraordinária no dia 24/05, emitiu nota que bem representa o momento que passamos. Permitimo-nos transcreve três parágrafos desta nota:
“7. Com a liberação das imagens da reunião do gabinete presidencial do último dia 22 de abril, o povo brasileiro foi apresentado a um gestor que se desnudou em seu cinismo e insensibilidade quanto à tragédia sanitária e humanitária que já ceifou mais de 20 mil vidas no país até esta data, afirmando ser momento de aproveitar que as atenções da mídia e do público estavam voltadas para a pandemia da covid-19, para fazer “passar a boiada” (sic) de atos infralegais para afrouxar as regras de proteção ambiental, de “baciada” (sic), num processo utilizado para contornar a necessidade de submeter propostas ao legislativo. Na oportunidade, citou como exemplo o caso de parecer que aprovou a pedido do Ministério da Agricultura, que possibilitou a regularização de ocupações ilegais ocorridas até julho de 2008 nas áreas de preservação permanente da Mata Atlântica, passando por cima da Constituição Federal e da própria Lei especial de proteção desse bioma.
8. Mas, não foi só esse “boi” que o ministro Salles passou nestes tempos de pandemia: demitiu e substituiu servidores em meio a uma ação de fiscalização de desmatamento em terras indígenas na Amazônia; mudou a regra para exportação de madeira com a dispensa da autorização do IBAMA; viabilizou operações de GLO na floresta, coordenadas pelo Exército em lugar dos fiscais do IBAMA; pressionou a aprovação da MP 910, a MP da Grilagem.
9. Tudo isso resultou em um crescimento vertiginoso do desmatamento na Amazônia - só na primeira semana de maio, segundo dados do INPE, houve um acréscimo de 64%, comparado ao igual período no ano passado - com aumento das emissões de CO2 na atmosfera em plena pandemia, quando em todo o mundo se observa um decréscimo, em vista da diminuição das atividades econômicas.”
E a conclusão dos professores e professoras de Direito Ambiental foi assertiva:
“Para os professores de Direito Ambiental, importa deixar claro que, pelo que acima se expôs, o Sr. Ricardo Salles, cujas ações podem ensejar responsabilização por improbidade administrativa, não reúne condições técnicas, profissionais e morais de permanecer à frente da gestão ambiental de um país megabiodiverso como é o Brasil.”
Hans Jonas, o grande filósofo alemão defensor do dever de responsabilidade de toda humanidade para consigo e as gerações futuras, nos reporta aquele que deveria ser nosso imperativo categórico, nosso guia de ação: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”. Ou em outras palavras: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”. Nestes tempos sombrios, estamos vivendo o oposto do dever ambiental categórico.
Estamos vendo a barbárie. Um governante incentivar a desconstrução do sistema nacional de proteção ambiental já é um ato de insanidade. Utilizar-se do momento atual, quando milhares de pessoas estão morrendo e a sociedade está de mãos atadas para defender-se, é um ato de covardia. O próprio Código Penal aponta, em seu art. 61, II, letra “j”, que, em havendo condenação criminal - o que neste caso concreto deve ser apurado e processado pelas autoridades competentes -, o fato do ato imputado ter sido cometido por ocasião de calamidade pública configura-se uma agravante da pena.
O ministro do Meio Ambiente ficou nu e o que vimos foi o desrespeito à civilidade e uma tentativa de morte anunciada do meio ambiente, de todos nós e de nossos filhos e filhas. O ministro da desconstrução do meio ambiente é o perigo em pessoa. Não só ele, mas aquele que ele representa e que é o responsável último por suas ações.
Resistiremos. A vida está do nosso lado.
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*Guilherme José Purvin de Figueiredo e Marcelo Gomes Sodré representando a APRODAB - Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.