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Jurisdição e competência: Parecer do jurisconsulto Ives Gandra da Silva Martins

Muito convém ao mercado segurador manter os litígios no Brasil, pois o ordenamento jurídico do país neste sentido é realmente melhor do que os estrangeiros.

16/7/2020

Desde a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, demonstramos preocupação com o art. 25, que assim prevê:

Não compete à autoridade judiciária brasileira o processamento e o julgamento da ação quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro em contrato internacional, arguida pelo réu na contestação.”

Uma leitura afoita do texto legal, com uma análise imperfeita do contrato internacional de transporte marítimo de carga, poderia prejudicar os litígios de ressarcimento em regresso entre seguradoras sub-rogadas e armadores.

E muito convém ao mercado segurador manter os litígios no Brasil, pois o ordenamento jurídico do país neste sentido é realmente melhor do que os estrangeiros.

O Brasil não incorporou nenhuma das Convenções Internacionais de Direito Marítimo, o que é positivo, já que todas adernam explicitamente para a defesa de armadores.

Litigar no Brasil é manter viva a expectativa de justiça e de ressarcimento integral dos prejuízos indenizados ao segurado, o que raramente ocorre no exterior.

Em nosso entender, o art. 25 não incide sobre o contrato internacional de transporte marítimo de carga, porque:

1) Contrato de adesão, com cláusulas impostas unilateralmente pelo armador, sem aquiescência formal do contratante ou do beneficiário;

2) A cláusula de eleição (ou imposição) de foro estrangeiro sempre foi considerada abusiva pela jurisprudência, portanto inválida, ineficaz, senão nula de pleno Direito;

3) Caracterização de dirigismo contratual, com inegável desequilíbrio entre as partes;

4) Impossibilidade de se exigir da seguradora sub-rogada a aceitação do clausulado do contrato, porque não foi nem é dele parte, observando-se a regra do §2º do art. 786 do Código Civil e da Súmula 188 do Supremo Tribunal Federal;

5) Inexistência de renúncia tácita do direito-garantia fundamental constitucional de acesso à jurisdição por parte da vítima do dano (ou quem lhe fizer as vezes).

Em poucas linhas, esses são alguns dos argumentos que opomos contra a cláusula, sendo certo que tudo o que vale para a eleição de foro estrangeiro, vale ainda mais para o compromisso arbitral, pois a própria Lei de Arbitragem exige voluntariedade (não existe arbitragem sem aquiescência, prévia e absoluta, de todas as partes).

Felizmente, o Poder Judiciário acolheu nossos argumentos reiteradas vezes, mantendo assim sua longa tradição jurisdicional. Nem poderia ser diferente, já que o legislador do novo Código de Processo Civil não tinha em mente o contrato de adesão, muito menos as cláusulas abusivas, ao elaborar o art. 25. A validade da cláusula está pressuposta no texto legal.

Nossa preocupação na época motivava-se mais por excesso de zelo do que por grande necessidade.

Mas então surgiu um problema jurisprudencial (ou, melhor, um falso problema), e os armadores, mediante uma considerável distorção dos fatos e do Direito, passaram a tirar disso algum proveito.

Ano passado, o Órgão Especial do Superior Tribunal de Justiça, por votação não unânime, decidiu homologar uma sentença arbitral em que o segurador se via submetido à cláusula de compromisso arbitral que o segurado tinha voluntariamente aceitado.

Fala-se de a SEC 14.930/US. Importante lembrar que o caso nada tinha a ver o transporte internacional marítimo de carga e seu contrato de adesão. Naquele caso a arbitragem se realizou, e considerou-se que o segurador realmente havia participado dela.

Interessante ressaltar ainda que o STJ não se manifestava senão pela homologação da decisão estrangeira. Não concordava nem discordava da sentença. Apenas entendia não poder invadir o seu mérito para não subverter o papel homologatório da Corte.

A decisão jamais teve o selo de precedente, tampouco se alinha aos pleitos de ressarcimento em regresso fundados em parte do Direito Marítimo. No entanto, como esperado, os armadores começaram a utilizá-la em benefício próprio, nos casos em que litigavam, a fim de fugir do dever de ressarcimento pelos danos que causava.

Nem precisamos nos remeter ao tema da modulação para dizer que aquela decisão não é precedente e que os fatos que a motivaram são assimétricos aos que costumam ser do nosso imediato interesse. Os argumentos de boa lógica jurídica já nos servem de auxílio.

Mas o Direito, como sabemos, é dialético por excelência. Por isso amargamos alguns insucessos, postulando em defesa do mercado segurador. Nenhum em caráter definitivo, é verdade, mas todos dignos de preocupação.

Diante disso, porém, conseguimos obter uma poderosa arma contra as cláusulas de imposição de foro e arbitragem, o que não seria possível sem o apoio das nossas representadas, as seguradoras das cargas, protagonistas do seguro internacional de transporte.

Considerando a natureza constitucional do assunto em destaque, solicitamos ao renomado jurista Ives Gandra da Silva Martins uma robusta opinião legal sobre a justeza da tese que defendemos. E assim se fez: fomos premiados com uma opinião legal nada menos que magnífica, quase um tratado sobre o assunto.

Da opinião legal desejamos destacar os seguintes pontos, dispensando demais comentários a respeito:

CONDIÇÕES PARA VALIDADE DA ELEIÇÃO DE FORO

A voluntariedade e a paridade das partes na eleição de foro diverso daquele previsto no CPC, é requisito inerente à validade do afastamento da jurisdição natural. Não se pode admitir a relativização do direito individual da parte ao juízo nacional, sem que esteja expressa sua vontade e, ainda assim, a vontade só pode prevalecer, quando se tratar de competência relativa, nunca de competência absoluta 

(...) 

O conhecimento de transporte – BILL OF LANDING – que embasa não só a contratação do transporte, mas também constitui recibo de entrega da mercadoria e título de crédito, é, no caso de transporte internacional marítimo, elaborado unilateralmente pelo armador, estando, o detentor da carga, adstrito às regras impostas por aquele que é o mais forte na relação, no caso, o prestador do serviço

É um documento de adesão, sendo que o impresso é fornecido pelo armador e preenchido de acordo com as características do próprio conhecimento de embarque, bem como da carga que vai representar. Suas cláusulas, que representam a frente do conhecimento desembarque, não podem ser modificadas e devem ser aceitas integralmente pelo embarcador. No máximo podem ser colocadas algumas observações de interesse do embarcador, no corpo do conhecimento, como número de carta de crédito, ordem de compra ou venda, trânsito, transbordo, etc.

(...)

Para o STJ, no contrato de adesão pode haver liberdade de contratar. Essa nos parecer uma contradição em si, já que, nessa espécie de contrato, o contratante ou adere ao contrato - escrito unilateralmente pelo contratado - ou se vê impedido de tomar o serviço ou de obter o bem; logo não há que se falar em autonomia da vontade. Liberdade de contratar envolve escolha, ou seja, a liberdade de não contratar e ainda: a liberdade de escolher a contraparte contratual e a de estabelecer o conteúdo do contrato. Nada disso se vê na relação entre tomador do serviço e prestador do serviço de transporte marítimo internacional de cargas. 

(...) 

O mesmo STJ acima referenciado entende ausente a autonomia da vontade, sempre que houver hipossuficiência da parte contratante, observando, assim, a teoria objetiva para configuração do abuso de direito, consagrada pelo Código Civil. Essa é, sem dúvida, a posição do tomador do serviço de transporte internacional de cargas por via marítima. Os armadores, detentores dos navios e prestadores do serviço internacional de transporte, são grandes e conhecidos conglomerados, todas empresas internacionais ou multinacionais. O Brasil não possui empresas de navegação marítima que prestem serviço de transporte marítimo internacional de mercadorias e a regulação setorial da ANTAQ não alcança essa realidade. O Brasil só tem tomadores de serviços de transporte marítimo.

(...)

Há, ainda, um último ponto a reforçar a conclusão de invalidade da cláusula de eleição de foro estrangeiro, nos contratos internacionais de transporte marítimo em face do segurador sub-rogado, consistente no dado da realidade de que ele não participou da contratação. O segurador subrogado não integra o contrato de transporte, desconhece a cláusula de eleição de foro, que só lhe será comunicada, se e quando houver o sinistro por si reparado, gerando, daí, seu direito de regresso. Não lhe pode ser imposta cláusula de eleição de foro que não contou com sua anuência, sob pena de ofensa do direito individual fundamental de acesso à jurisdição. Nem se alegue que, em virtude da sub-rogação, estaria o segurador investido de todos os ônus do segurado, inclusive o de se sujeitar a foro de cuja eleição não participou. Esse raciocínio não procede por duas razões:

- A cláusula de eleição de foro é inválida também com relação ao segurado (tomador do serviço de transporte marítimo internacional de carga) pelos fundamentos supra aduzidos; 

- O segurador sub-roga-se no crédito do segurado, mas não na sua posição jurídica no contrato firmado com o prestado do serviço internacional de transporte marítimo, especialmente no que toca a restrições processuais 

Entusiasmados, elaboramos tópico específico para nossas petições iniciais, usado em parte como abre-alas de juntada da opinião legal.

Por questão de espaço, não reproduziremos o tópico inteiro, aqui, mas nos permitimos transcrever poucos trechos, destacando os que mencionam a excelente opinião legal da banca Gandra Martins.

Abrimos aspas

“ (...)

Ajustar o art. 25 ao contrato internacional de transporte marítimo de carga é validar o abuso do direito. É ferir garantia constitucional fundamental. É desrespeitar a soberania da Justiça brasileira, relegando o país à periferia do mundo jurídico. A Autora o dizia antes. Diz hoje. E dirá amanhã.

(...)

O segurador não é parte original do contrato internacional de transporte marítimo de carga. Isso implica dizer que a abusividade, a ilegalidade, a inconstitucionalidade, a imoralidade em relação ao contratante débil, ao dono da carga danificada pelo transportador, ao segurado, é muito mais grave quando dirigida ao segurador sub-rogado, no polo ativo da demanda. Seria o bis in idem da ilegalidade.

(...)

Definitivamente não podem ser prejudicados na legítima luta por seus regressivos direitos. Seria um prejuízo especialmente gritante, em face desta imposição absurda de renúncia a jurisdição. Uma arbitrariedade clausular a mostrar-se inconstitucional, ilegal e imoral.

(...)

Em suma: a cláusula é abusiva, porque foi imposta unilateralmente ao dono da carga. Porém, caso o segurado, em convenção livre com o transportador, anuísse deliberadamente com seu conteúdo, o vício da abusividade não deixaria por isso de subsistir, ao menos em relação ao segurador. E por dois motivos: o segurador é parte estranha ao contrato de transporte e encontra-se protegido pelo §2º do art. 786 contra disposições que lhe prejudiquem o direito de regresso.

(...)

E aproveita para reproduzir, porque especialmente importante, alguns trechos de parecer elaborado pelo renomado jurista Ives Gandra da Silva Martins, ora juntado aos autos, a marcar, com letras de fogo, a incompatibilidade plena e incorrigível que existe, especialmente no contrato de transporte marítimo de cargas, entre a cláusula que pretende eleger foro estrangeiro, comprometer procedimento arbitral e a posição do segurador sub-rogado.

Em plena harmonia com o que diz esta autora, afirma o professor Ives Gandra sobre as cláusulas de eleição de foro:

Clara está, pois, a invalidade da cláusula de eleição de foro, nos contratos internacionais de transporte marítimo de cargas em face das seguradoras sub-rogadas, uma vez que:

1. Trata-se de contrato de adesão, sem liberdade na pactuação da cláusula;

2. O foro adotado nos conhecimentos internacionais de transporte implica não só inconveniente para aquele que precisar demandar judicialmente o armador, mas em verdadeiro impeditivo à jurisdição, afetando esse direito fundamental e, também, a soberania nacional;

3. O segurador não é parte no contrato de transporte, não anuiu com a cláusula de eleição de foro;

4. A sub-rogação da seguradora se limita aos aspectos materiais do crédito e não, aos aspectos procedimentais do contrato firmado entre o transportador e o tomador do serviço.”

(fl. 36 do parecer)

E depois, passando às cláusulas de arbitragem, o Jurista sepultará as tentativas de extinguir o processo em prol de compromissos arbitrais, não raro baseados em leituras equivocadas que os armadores fazem da decisão do STJ na SEC 14.930/US — que aliás afirma, expressamente, não ser precedente de rigorosamente nada:

Todas as considerações do presente trabalho relativas à cláusula de eleição de foro são ainda mais agudas, quando a hipótese versar sobre compromisso arbitral. A doutrina ressalta “que a filosofia da arbitragem se relaciona exclusivamente com a questão da autonomia da vontade, sendo correto dizer-se que a Lei da Arbitragem teve apenas o propósito de regular uma forma de manifestação da vontade, ...”. Pretender impor procedimento arbitral sem formal, prévia e expressa aceitação é violar o direito fundamental de acesso ao Judiciário e a soberania nacionais”.

(fl. 52 do parecer).

A verdade é esta: de um lado, costuma ficar a seguradora a defender, junto ao direito que possui, a soberania brasileira que o resguarda; de outro, a transportadora a opor as disposições contratuais com que tenta devastá-la, impondo-lhe a renúncia tácita do acesso à jurisdição.

Mas a seguradora é que está com a razão — como o parecer é claro em demonstrar. Pois, além de tudo o que se afirmou, como diz o Jurista: “Nenhuma garantia constitucional fundamental pode ser objeto de renúncia tácita, em um Estado de Direito. (fl. 53 do parecer)”.

A insistência em negá-lo não é algo que faça parte do digno exercício de defesa do transportador. Assemelha-se mais a um flerte com a litigância de má-fé, a rasgar claramente uma garantia constitucional fundamental, aliás desde já prequestionada. Ecoa como um grito de desespero, à vista da certeza da certeza da própria responsabilidade.

Esse subterfúgio processual nada mais é para o transportador senão pretexto para não enfrentar o mérito, mera fuga do dever de ressarcir a integralidade dos prejuízos que causou.

Em nome da urbanidade e da boa-fé a Autora espera que a Ré não enverede por essa via sinuosa, que acaba lesando o próprio Direito Marítimo no Brasil. De todo modo é questão de previdência expor a verdade antes que a confusão deliberada queira baixar sobre o caso.”

Fechamos aspas

Acreditamos piamente que a opinião legal do professor Ives Gandra fortalecerá substancialmente nossos argumentos, mostrando aos julgadores que, diante de um contrato de adesão desde sempre marcado pelo signo do abuso e do dirigismo, não há que se falar em eleição de foro ou compromisso arbitral.

Por fim, agradecemos ao ilustre jurista o fantástico parecer e ao mercado segurador a excelente parceria.

_________

*Paulo Henrique Cremoneze é advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes, sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados, mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP - Academia Nacional de Seguros e Previdência, diretor jurídico do CIST - Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo, autor de livros jurídicos e patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos.

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