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A Constituição Federal, energia elétrica e invasão de competência legislativa na pandemia

Temos um órgão da União que atua de maneira especializada no controle, fiscalização e regulamentação da atuação das Distribuidoras de Energia Elétrica. Dito isto, temos o seguinte quadro: A competência privativa da União para legislar sobre Energia Elétrica, pode ser relativizada em relação aos Estados e municípios?

14/7/2020

1. Introdução

Em apertada síntese, uma breve introdução: A Constituição Federal é a norma maior do nosso ordenamento jurídico, algo incontestável, impondo o dever de obediência a todas as demais normas. O Supremo Tribunal Federal tem como um de seus papéis ser seu guardião, encargo irrenunciável, inclusive. Deve, ainda, zelar pela sua proteção e impedir violações contra a mesma.

Este artigo visa evidenciar um desrespeito ao que prevê a Lex Matter. Ultrapassa a disputa entre consumidor e concessionárias. Buscamos pôr em evidência a ADIn 6.406/PR, que discute mais uma das sucessivas tentativas dos estados/municípios de “usurpação” da competência privativa da União para legislar sobre Energia Elétrica, prevista nos artigos 22, IV e 175 da CF/88. Além disso, o art. 21, XII, “b” da CF/88 prevê a competência administrativa exclusiva da União para explorar os serviços e instalações de energia elétrica.

A competência quanto aos serviços de energia é delegável, porém, não aos Estados-membros, e, sim, somente à ANEEL, autarquia federal criada através da lei 9.427/96, que tem sua finalidade e competência previstas, respectivamente, nos artigos 2º e 3º. Destaque-se o art. 2º:

Art. 2º. A Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL tem por finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal.”

A ANEEL tem como atribuição, conforme o art. 3º, Inciso IV, “gerir os contratos de concessão ou de permissão de serviços públicos de energia elétrica, de concessão de uso de bem público, bem como fiscalizar, diretamente ou mediante convênios com órgãos estaduais, as concessões, as permissões e a prestação dos serviços de energia elétrica.”

Assim sendo, temos um órgão da União que atua de maneira especializada no controle, fiscalização e regulamentação da atuação das Distribuidoras de Energia Elétrica. Dito isto, temos o seguinte quadro: A competência privativa da União para legislar sobre Energia Elétrica, pode ser relativizada em relação aos Estados e municípios? Cabe a nós, neste momento, passar a explorar o tema discutido, a ADIn 6.406/PR.

2. O tema em pauta

Desde muitos anos, o setor elétrico se depara com a tentativa por outros entes da federação (municípios e estados), de legislar em matérias atinentes à energia elétrica, mas o STF, como guardião da Constituição, conforme inúmeros julgados, declarou as referidas leis inconstitucionais.

Diante da publicação da lei 20.187/20 do Estado do Paraná, que trata sobre matéria de energia elétrica, a ABRADEE (Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica) ajuizou a ADIn 6.406/PR, questionando a violação da competência da União, e sinalizou a ausência de competência estadual.  

No entanto, surpreendentemente, em julgamento iniciado, mas ainda não concluído, alguns ministros1 do STF proferiram votos dissonantes com a jurisprudência consolidada da própria casa, negando pedido de liminar que visa suspender os efeitos de Lei do Estado do Paraná, que claramente trata sobre energia elétrica. É bem verdade que há o voto-vista, do ministro Gilmar Mendes, pela concessão da liminar, em face da flagrante inconstitucionalidade da norma. Aguarda-se a continuidade do julgamento após pedido de vista do ministro Dias Toffoli, mas o placar atual não deixa de gerar preocupação no setor.

É fato incontroverso que estamos diante de uma pandemia mundial quase sem precedentes, que afeta todas as classes sociais do planeta. Para minorar os efeitos desta, os Entes Políticos procederam com diversas ações como a referida lei paranaense que determinou, entre outros pontos, hipóteses amplas de proibição das suspensões do fornecimento de energia elétrica durante a pandemia do covid-19, bem como, impôs a possibilidade de parcelamento dos débitos após o fim da mesma.

Há um descompasso entre a lei paranaense e a Constituição, visto que o art. 22, IV garante a legitimidade privativa para legislar sobre energia elétrica à União, que a exerce também através da ANEEL. A Agência o faz através de suas resoluções, vide a conhecida 414/10, que trata sobre as condições gerais de fornecimento de energia elétrica. Todavia, o debate não visa o contexto geral, e, sim, a pandemia. E sobre o tema tratado na lei Estadual, a ANEEL não se omitiu perante a pandemia, tendo publicado, de forma célere, a resolução ANEEL 878/20.

Esta surge para minorar os danos causados pela pandemia e possui o objetivo principal de preservação da prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica em todo o país, abrangendo todas as Concessionárias.

É indiscutível que a pandemia reduziu a capacidade econômica de grande parte da população, e deu início ao questionamento de como atuar para evitar os cortes do fornecimento de energia, sem gerar desequilíbrio econômico financeiro dos contratos de concessão das Distribuidoras. Uma certeza há: Não é o estado do Paraná, com visão restrita, regionalizada e carente de capacidade de avaliação de todos os impactos sistêmicos setoriais do Brasil, que deve endereçar o tema.

Neste contexto, a res. 878/20 foi precisa ao não se omitir, garantindo àqueles que estão no rol de maior vulnerabilidade, um tratamento especial salvaguardando sua integralidade, sem colocar em risco as Concessionárias e o setor elétrico como um todo.

Além disso, União, através da MP 950/20, buscou sanear os efeitos da pandemia ao prever desconto de 100% para determinada classe de consumidores, mas tudo isso após uma análise técnica e econômica dos impactos, com alternativas para não desequilibrar o contrato de concessão das distribuidoras garantidos por lei. Ou seja, todo um esforço pautado no que prevê nossa maior norma, sem usurpações de competência. 

Da mesma forma que as normas visaram preservar o direito daqueles menos favorecidos ou mais vulneráveis, também o fizeram em relação ao direito das Concessionárias de suspender o fornecimento dos demais consumidores em situação diversa.  

Permitir que estados e municípios, que não tem capacidade técnica de conhecer todos os impactos do setor de energia, autorizem que boa parte da população/empresas simplesmente pare de efetuar pagamentos é algo perigoso, com risco de colapso no setor. E isso interfere diretamente na capacidade financeira das distribuidoras de energia, que continuam com o custo operacional do fornecimento ativo. Não se trata de lucro, e sim de custeio operacional necessário para viabilizar a prestação adequada do serviço. Portanto, ao nosso entender, completamente equivocada a fundamentação do ministro Marco Aurélio de que a Lei Estadual não teria adentrado no “núcleo” do serviço de distribuição de energia elétrica. Adentrou profundamente!

Existe alguma dúvida de que uma norma que (I) amplia o rol de consumidores que não podem ter o fornecimento suspenso e (II) impõe o parcelamento para após a pandemia, interfere nas condições contratuais das distribuidoras? Certamente não. E isso é suficiente para concluir pela indiscutível violação da competência privativa da União, vide artigos art. 21, XVII, “b”; 22, IV e 175, todos da CF/88, não havendo que se falar em competência concorrente, prevista no art. 24 da CF/88.

E não se diga que o efeito para as Concessionárias é menor porque a lei estadual não proibiu a cobrança das faturas de energia por outros meios, pois a referida lei diz que “o poder executivo poderá regulamentar o parcelamento após o término da pandemia”, ou seja, pode-se entender que será imposto à Concessionária o parcelamento das dívidas, após a pandemia. Quem pagará nessa situação? Além disso, é sabido por quem atua no setor há anos, que a proibição de corte tem altíssimo impacto no caixa das Distribuidoras, gerando uma inadimplência acumulada em grande parte irrecuperável. Novamente, quem tem capacidade técnica para fazer essa avaliação é a ANEEL!

Apesar do direito das Concessionárias de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, por meio de revisão tarifária ordinária ou extraordinária, nem sempre isso ocorre integralmente e em tempo hábil, tendo que suportar impactos de caixa pela ausência de receita e isso interfere diretamente nos investimentos necessários para manutenção, expansão e qualidade da prestação dos serviços.

Sobre esse aspecto, nunca é demais ressaltar que uma das competências da ANEEL, além das já mencionadas, é a definição de tarifas e qualquer alteração unilateral de contrato/legislação (Fato do Príncipe) que impactem significativamente os resultados econômicos devem ser recompostos através de revisão tarifária extraordinária (RTE).

Ora, qual o reflexo que leis estaduais sobre energia elétrica podem causar a longo prazo? Em todo estado de calamidade poderá haver a “usurpação” de competência à livre e espontânea vontade dos Estados/Municípios? Assim como os Estados, durante a própria pandemia, provocaram o judiciário para preservar sua autonomia em face da União em temas de saúde pública, o mesmo deve ser respeitado no caso em tela (ação direta de inconstitucionalidade 6.341/20).

Estamos, portanto, diante de risco de um efeito dominó negativo. Os Estados ao criarem tais leis acabam gerando uma afronta constitucional, e, ainda, condicionando as Concessionárias, no médio e longo prazo e talvez até mesmo no curto, a depender da amplitude, a uma crise operacional pela falta de recursos advindos do serviço prestado.

A ANEEL e a União diligenciaram com as criações da Res. 878/20 e da MP 950/20, assim, não se pode permitir a criação de leis por Entes Políticos ilegitimados sem a devida competência técnica. Além de usurpar a competência, está impondo uma obrigação com alto potencial de interferir no equilíbrio econômico e financeiro das Concessionárias, afetando, inclusive, o futuro do fornecimento de energia elétrica no seu próprio Estado, e consequentemente em todo o país ao criar tais precedentes.

A RES. 878/20 da ANEEL criou, entre outros, a obrigação de que as Concessionárias não suspendam o fornecimento dos mais vulneráveis, atividades essenciais, aqueles que dependam ininterruptamente do fornecimento para sobreviver, dentre outras situações. A Resolução não se restringiu à cobrança ou à suspensão, mas também entre outras medidas a temas como juros e mora (§3º do art. 2). Isto, por si só, demonstra o comprometimento de preservar os consumidores necessitados. Atuando de maneira mais especializada, com expertise na matéria, evitando lacunas ou omissões que poderiam gerar maiores problemas e conflitos.

Diferentemente das leis estaduais que apontam aos seus territórios, a Resolução afeta todas as Concessionárias e consumidores por categoria, em respeito a um princípio constitucional, qual seja: a Isonomia. A ANEEL tem sua atuação pautada no objetivo de atender aos anseios dos consumidores, especialmente nesse complexo período de pandemia, mas ao mesmo tempo sem gerar instabilidade jurídica e econômica ao setor.

Não podemos nos esquecer que essa inadimplência, gerada pela Lei Estadual ao impor obrigações superiores às constantes nos contratos de concessão das distribuidoras, pode causar desequilíbrio econômico-financeiro dos referidos contratos, resultando na necessidade de aumento tarifário de energia elétrica futura. No entanto, a inadimplência daqueles que tem capacidade de pagar (menos vulneráveis), gerada pela Lei do Paraná, acabará também sendo repartida por todos os consumidores no futuro. Ou seja, resultará em injustiça na isonomia de tratamento buscada pela ANEEL.

A importância de ressaltar que a ANEEL tem mais propriedade para regulamentar o tema é essencial ao deslinde de toda a causa. Inclusive, entendimento similar fora feito pelo STF em diversos julgados2, dentre eles destacamos o seguinte sobre impossibilidade de suspensão por ausência de pagamento, temática similar a ora discutida:

“(...) lei do Estado do Rio Grande do Sul que isenta trabalhadores desempregados do pagamento do consumo de energia elétrica e de água pelo período de seis meses. Configurada violação aos arts. 21, XII, b; 22, IV e 30, I e V, CF, pois a lei estadual afronta o esquema de competências legislativa e administrativa previsto na Constituição”. [ADI 2.299, rel. min. Roberto Barroso, j. 23-8-2019, P, DJE de 13.12.19.]

Como visto, o Supremo Tribunal Federal, pela concepção do federalismo, já consolidou em diversos julgamentos acerca da Competência Privativa da União no que se refere ao artigo 22, IV, não só em razão da energia elétrica como também de outros setores como telecomunicações, águas, informática e radiodifusão.

Portanto, não há o que se falar em legitimidade dos Estados-membros para legislar sobre a matéria ainda que durante a Pandemia, muito menos tendo a resolução 878/20 abordado todos os temas da referida lei. Ainda que passível de questionamentos e modificação, percebe-se ser mais específica, técnica e abrangente que as leis estaduais. Podemos concluir que a União e a ANEEL trabalharam, em prol da sociedade, e em especial àqueles mais vulneráveis ou dependentes do sistema.

Refletindo acerca desta situação: Se o STF aceitar esta conduta dos Estados-membros, abrirá precedente perigoso para que a competência privativa da União seja tomada em situações similares. Os ilustres ministros devem rechaçar tal possibilidade visando a segurança jurídica do nosso país, com base nos diversos julgados anteriores em que o STF declarou inconstitucional normas municipais e estaduais sobre energia elétrica. Frise-se que o custo da insegurança é imensurável, pois afasta investidores vitais para a sustentabilidade do setor elétrico, nacionais ou estrangeiros.

Em que pese o voto do min. Marco Aurélio de Melo que entendeu a lei paranaense como “uma garantia de preservação do bem maior do cidadão”, em verdade, se está condicionando a uma desvantagem exagerada para as Concessionárias de Energia Elétrica, e pior, em flagrante violação o texto Constitucional.

A lei paranaense gera – até pela ausência de conhecimento específico sobre o tema em detrimento da ANEEL – uma injustiça. Aqueles que possuem a capacidade econômica inalterada passaram a ter um “passe-livre” para não quitar suas obrigações. Gerando um efeito dominó negativo para o fornecimento em seu Estado. Inclusive, mister ressaltar que um percentual pequeno da fatura de energia elétrica efetivamente fica com as Concessionárias, pois a maior parte diz respeito a repasses de custo de energia de geração e transmissão (sistema interligado), encargos setoriais e tributos, sendo que em relação a esse último impacta o próprio cofre público. Mais uma vez, não são os Estados que tem expertise para essa avaliação técnica e econômica de abrangência nacional!

Por fim, devemos nos atentar à última movimentação no julgamento deste caso. O ministro Dias Toffoli pediu vistas no julgamento da apreciação de deferimento de liminar e espera-se que possa proferir um voto garantidor da norma constitucional, em consonância com os precedentes anteriores do STF, e com isso permitir uma melhor reflexão até mesmo dos ministros que já votaram em sentido contrário.

A expectativa é de que o risco de injustiça seja corrigido a tempo, suspendendo a Lei Estadual para que se evite um risco de efeito multiplicador de normas inconstitucionais, dano irreparável ao setor de energia elétrica. Devemos sim nos humanizar e compadecer perante os mais desprotegidos, mas não podemos impor uma desvantagem exagerada, imprudente e cercada de imperícia. E mais do que isso, não podemos aceitar violação à Constituição Federal.

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1 Ministros Marco Aurélio (relator), Ricardo Lewandowski e Celso de Mello.

2 ADI 3866, rel. min. Gilmar Mendes, j. 30-08-2019, P, DJE de 16/09/2019; ADI 5.610, rel. min. Luiz Fux, j. 8-8-2019, P, DJE de 20-11-2019; ADI 3.343, rel. p/ o ac. min. Luiz Fux, j. 1º-9-2011, P, DJE de 22-11-2011; ADI 5.575, rel. min. Luiz Fux, j. 25-10-2018, P, DJE de 7-11-2018; ADI 4.739 MC, voto do rel. min. Marco Aurélio, j. 7-2-2013, P, DJE de 30-9-2013; ADPF 235, rel. min Luiz Fux, j. 14-/-2019, P, DJE de 30-8-2019.

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*José Vinícius de Cristo Leal Araújo é sócio do Urbano Vitalino Advogados.

*Vinícius Oliveira da Silva é sócio do Urbano Vitalino Advogados.

 
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