Num passado muito recente foram realizadas inúmeras previsões sobre o futuro das relações de trabalho, em que se pretendeu antecipar as possíveis formas de trabalho dentro de um mundo cada vez mais tecnológico. O tema “novas tecnologias” se apresentou como uma ameaça aos empregos e profissões, com potencial para tornar as habilidades e expertise humanas desnecessárias, dando lugar a inteligência artificial, aos algoritmos e à machine learning.
O Fórum Econômico Mundial publicou em 2018 o relatório “Futuro do Trabalho”, cujas previsões projetaram que as profissões emergentes do futuro representarão 6,1 milhões de oportunidades em todo o mundo ao longo de 2020 e 2022 e que os avanços na automação resultarão na substituição por atacado da força de trabalho humana.
Há quem considere que 100% dos empregos irão mudar, o que acarretaria uma crise de habilidades, direcionando os profissionais que quiserem sobreviver no mercado de trabalho a compreenderem as novas dinâmicas.
O que os estudiosos do futuro das relações de trabalho não puderam prever é que parte desse novo futuro laboral pudesse surgir de forma tão repentina e presente, apresentando uma nova realidade às empresas e aos trabalhadores, que devido a uma pandemia, foram direcionados ao trabalho remoto, como única alternativa.
Muitos profissionais tiveram a oportunidade de vivenciar a interação da tecnologia ao trabalho, como ferramenta de manutenção do emprego. Isso possibilitou que eles desenvolvessem suas atividades a partir de suas residências, utilizando plataformas tecnológicas como meio de comunicação entre seus pares e gestores, numa reinvenção do desempenho das atividades laborais, conciliando trabalho-casa-filhos e passando a conhecer os desafios e oportunidades do home-office.
O conceito de home-office
E quais serão os desafios para regular essa nova realidade diante das poucas normas trabalhistas sobre trabalho remoto previstas na legislação?
A previsão legal de trabalho remoto foi inicialmente tratada na lei 12.551/11, especificando que o trabalho executado no domicílio do empregado e o realizado à distância não se distinguem daquele realizado no estabelecimento do empregador.
A reforma trabalhista produzida em 2017 (a lei 13.467/17 alterou a CLT) incluiu o teletrabalho na CLT, definindo-o como “a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo”.
E destacou que “o comparecimento às dependências do empregador para a realização de atividades específicas que exijam a presença do empregado no estabelecimento não descaracteriza o regime de teletrabalho”.
De início, percebe-se a diferença entre teletrabalho e home-office. O primeiro é muito mais abrangente, uma vez que o trabalho pode ser realizado de qualquer lugar fora da empresa, utilizando meios tecnológicos que permitam a execução do trabalho à distância. Ou seja, o home-office é uma das espécies de teletrabalho. Vale ressaltar que o uso de tecnologia da informação é condicionante para que o trabalho possa ser caracterizado como teletrabalho, pois do contrário estaríamos diante do trabalho externo, cujo conceito é outro.
O legislador também abriu espaço para que o empregado possa estar fisicamente presente na empresa em situações necessárias, sem descaracterizar o teletrabalho, desde que essa modalidade “prevaleça” na relação de trabalho.
E aí temos um ponto para reflexão. Como quantificar a preponderância do teletrabalho? Quantos dias do mês ou da semana deverão ser cumpridos em teletrabalho para que seja caracterizada a modalidade remota? Essa diferenciação acaba sendo importante em razão dos benefícios concedidos aos empregados e o próprio controle de jornada, por exemplo.
Pela lógica, de pronto, é possível concluir que dentro de uma semana em que o trabalhador permanece três dias em home-office e dois presenciais na empresa, a atividade é preponderantemente na modalidade teletrabalho. Porém, há situações impensadas e, portanto, atípicas.
Uma situação que pode se tornar um exemplo é pensarmos na atividade de um trabalhador que dentro de uma semana trabalha dois dias em home-office, um terceiro dia em viagem e os outros dois dias na empresa. O dia da viagem configura trabalho remoto?
Vale acompanhar o posicionamento jurisprudencial nesse assunto, uma vez que ainda não é possível constatar uma tendência nas decisões. Possivelmente, a partir da nova realidade, questões relativas ao teletrabalho sejam frequentes na Justiça do Trabalho e outros exemplos surgirão dividindo as opiniões dos juízes.
Formalização
A lei também prevê que “a modalidade de teletrabalho deverá constar expressamente do contrato individual de trabalho, que especificará as atividades que serão realizadas pelo empregado”, e que “poderá ser realizada a alteração entre regime presencial e de teletrabalho, desde que haja mútuo acordo entre as partes, registrado em aditivo contratual”.
Em princípio, observa-se que a opção pelo teletrabalho é das duas partes envolvidas, trabalhador e empregador, afastando-se a participação do sindicato, e que deve prevalecer a opinião do empregado, uma vez que não cabe ao empregador a imposição do teletrabalho, pois estaria desequilibrando a relação de acordo mútuo. Nesse contexto, é imprescindível que a empresa consulte o empregado, que poderá assinar um termo de declaração de vontade em que expresse seu livre interesse em aderir a modalidade teletrabalho.
Uma vez que essa modalidade seja definida pelas partes, a possibilidade de reversão para o trabalho presencial ficará a cargo da empresa, cuja decisão é unilateral, prevalecendo o poder diretivo do empregador, que segundo a lei poderá exigir que o empregado retorne às atividades presenciais num prazo mínimo de 15 dias.
A lei diz que “poderá ser realizada a alteração do regime de teletrabalho para o presencial por determinação do empregador (...)”. Fica evidente que os níveis hierárquicos na relação entre empregado e empregador são equiparáveis no momento da implementação do home-office. Mas uma vez estabelecido, a empresa é quem terá o comando da situação, que poderá, a qualquer momento, reverter para atividade presencial ou negá-la, em caso de pedido do empregado. O trabalhador que optar pela atividade remota deve saber que a reversão dependerá da anuência do empregador.
Ocorre que essa parte da lei parece não ter sido elaborada para aplicação nos casos de contratação direta em sistema remoto, quando a vaga é oferecida nessa modalidade. A vontade do empregador é dominante nesses casos? O empregado poderá alegar prejuízo?
Há algumas possibilidades para afastar questionamentos e minimizar riscos, como, por exemplo, a inclusão de cláusulas no contrato de trabalho autorizando o empregador a alterar o regime para presencial. Porém, devem ser consideradas as peculiaridades de cada contratação. O posicionamento jurisprudencial dará o rumo nesses casos.
Estruturação
Compete à empresa documentar os termos da nova relação. A lei diz que “as disposições relativas à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado, serão previstas em contrato escrito”.
A MP 927, editada para atender ao momento de pandemia e de caráter transitório, flexibilizou essas regras, estabelecendo o prazo de 30 dias para que o contrato seja elaborado. No entanto, criou a obrigação de a empresa fornecer, em sistema de comodato, os equipamentos necessários para o trabalhador executar as atividades remotamente, pois na impossibilidade de provê-los, o período da jornada normal de trabalho será computado como tempo de trabalho à disposição do empregador. Em outras palavras, é o mesmo que dizer: ou fornece ou terá que pagar pelos dias não trabalhados por falta de equipamento apropriado.
De qualquer forma, é importante frisar que, diante de uma situação de normalidade, é ideal que todos os custos assumidos pelo empregado sejam antevistos, especificados em contrato e reembolsados pela empresa, que por sua vez, deverá avaliar seu investimento, bem como especificar as obrigações do empregado de zelar pelos bens que a ele forem disponibilizados, com possível previsão de indenização em situações de mau uso.
As empresas também podem oferecer pacote de benefícios para cobrir as despesas assumidas pelo empregado no teletrabalho, pois são valores que não integram a remuneração, uma vez que a própria lei afasta seu caráter salarial.
Saúde e segurança do trabalho
Uma última preocupação do legislador sobre o tema foi advertir sobre as medidas de saúde e segurança do trabalho remoto. A lei estabelece que “o empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções, a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho”, e determina que “o empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador.’”
Essa talvez seja a medida de maior dificuldade de execução. O empregador não tem o poder, por exemplo, de entrar na residência do empregado para fiscalizar se as orientações estão sendo seguidas. A alternativa pode ser, além de fornecer equipamentos ergonômicos, criar uma cartilha orientativa, adequada à atividade do empregado, e dedicar esforços para criar uma cultura de boas práticas, através de avisos online permanentes, demonstrando que há uma preocupação com a saúde do trabalhador.
Para que a empresa não seja responsabilizada, convém adotar medidas ostensivas, pois o cumprimento à lei será observado na atuação insistente da empresa para que o empregado cumpra as regras, e não no simples fato de ele assinar um documento comprometendo-se a seguir as regras.
Esse é mais um tema em que não há jurisprudência demonstrando a tendência dos tribunais mas, considerando que prevalece a realidade dos fatos sobre a norma no direito do trabalho, uma atuação pouco ostensiva do empregador pode ser interpretada como falta de cuidado com as regras de saúde e segurança no ambiente de trabalho.
Controle da jornada
As regras de teletrabalho são muito recentes e os critérios para sua aplicação ainda estão em fase de amadurecimento, de modo que surgirão situações não previstas pelo legislador, como, por exemplo, dúvidas sobre a aplicação das normas que tratam do controle de jornada.
Apesar de constar na lei que o teletrabalho é incompatível com o controle de jornada, ou seja, que os trabalhadores em home-office não estão elegíveis ao recebimento de horas extras pela impossibilidade de controle, vale lembrar que a lei 12.551/11, já mencionada acima, diz que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
Há uma percepção nesse texto da lei de que o legislador incluiu o controle da jornada de jornada de trabalho através dos meios telemáticos. A verdade é que as inovações tecnológicas permitem que as empresas controlem o momento em que o empregado inicia e finaliza sua jornada. Além disso, o teletrabalho indica que as atividades serão realizadas no âmbito digital, onde todos os acessos serão registrados. Aliás, uma característica inerente ao mundo digital é o registro de tudo o que é acessado, desde a navegação do usuário até a sua geolocalização.
Os antigos conceitos de organização industrial conhecidos como fordismo e taylorismo, baseados na supervisão contínua do trabalho e focado no controle da linha de produção, em que as atividades do empregado eram regularmente conduzidas pelo seu superior hierárquico, que controlava sua produtividade pelas horas dedicadas à produção, não faz mais sentido no século XXI e o teletrabalho encerra, definitivamente, essa lógica de controle de jornada e subordinação.
Os novos modelos de negócio demostram que mais importante do que o tempo em que empregado passa à disposição do empregador, é aquilo que ele é capaz de produzir. O home-office oferece ao empregado a oportunidade de testar sua autonomia e impor o controle da sua produção. Claro que ele continuará sendo avaliado pelo seu desempenho, no entanto, dentro de um conceito de subordinação estrutural, onde ele é parte de um processo produtivo, em que o foco está no resultado e não mais nos meios e no tempo dedicados ao trabalho.
Portanto, se a produtividade está menos atrelada ao tempo à disposição, será que os empregadores continuarão a dar a mesma importância ao controle da jornada? O fato é que, se a empresa decide implementar o controle de jornada, mesmo que informalmente, deverá estar atenta ao registro dos horários para posterior comprovação em eventuais demandas judiciais.
Vale lembrar que os tribunais em decisões anteriores à reforma trabalhista se posicionavam, em grande maioria, pela condenação ao pagamento de horas extras, quando havia a possibilidade de controle da jornada pelo empregador. De acordo com o entendimento, o simples fato de a empresa poder controlar, mesmo que ela não o fizesse, garantia ao empregado o direito às horas extras.
É certo que a nova regra afastou o dever do empregador de estabelecer o registro de ponto e, consequentemente, o pagamento de horas extras. No entanto, aquela lógica estabelecida pelos tribunais, reconhecendo o dever de pagar quando o controle era realizado, possivelmente, será incorporada às novas decisões, pós reforma, se houver prova de que o empregador, apesar de não dever, controlava o horário de trabalho do empregado em home-office.
Benefícios
Outros temas que surgem são aqueles relativos aos benefícios. O vale-transporte deixa de ser obrigatório e o vale-refeição parece perder o sentido para quem trabalha à distância. Por outro lado, o vale-alimentação ganha força, assim como o custeio de internet e equipamento tecnológico, que podem integrar pacotes de benefícios mais interessantes.
Os benefícios trabalhistas nasceram de negociações coletivas, ajustadas para atender as demandas de classe de trabalhadores, mas com o passar do tempo, também ganhou um caráter motivacional, tornando-se um diferencial para fins de contratação. A modalidade de trabalho em home-office requer uma revisitação desses benefícios.
Aspectos processuais e sindical
Há discussões, ainda, relacionadas à competência territorial de representatividade dos sindicatos. Um trabalhador que é contratado por uma empresa com sede em São Paulo, mas que exerce o teletrabalho numa cidade de Minas Gerais, por exemplo. Qual o sindicato que deve representá-lo? O que tem base territorial em Minas ou em São Paulo? Qual convenção coletiva deve ser aplicada?
Nessa mesma linha surge a dúvida quanto à competência para ajuizamento de ação trabalhista. A lei prevê que a ação deve ser proposta no local da prestação de serviços. Porém, ela foi criada numa realidade em que o trabalho à distância sequer existia e, portanto, o local de trabalho era sempre onde a empresa estivesse sediada.
Se a empresa tem filiais espalhadas pelo território nacional, a dificuldade talvez não seja percebida. Mas, a situação é diferente quando a empresa não tem filiais, porque o trabalho remoto pode fazer com que um pequeno empregador tenha que empreender defesa em local distante da sua sede, o que gera despesas adicionais. Por exemplo, no caso citado acima, da empresa paulista que contrata um empregado para fazer home office em Minas, o empregado poderia demandar, no foro do seu domicílio. Outro exemplo seria a situação em que o empregado é contratado para trabalho presencial, mas muda de cidade, assim que é transferido para o trabalho remoto. Certamente, nestes casos, as empresas irão enfrentar dificuldades relacionadas à competência territorial.
A solução só virá mesmo com o tempo, quando os tribunais se posicionarem. Porém, nada impede que os acordos e convenções coletivas pautem estas questões e, dependendo do perfil do empregado, é até possível definir o foro competente no próprio contrato de trabalho.
Compliance
E o que dizer sobre a atuação do empregado dentro das regras de conduta condizentes com a cultura organizacional da empresa, a observância das normas de segurança da informação e o respeito à proteção dos dados pessoais acessados à distância pelo trabalhador?
As organizações dedicam anos de sua história empenhadas na construção de uma cultura, compartilhando valores institucionais que norteiam os empregados a compreenderem quais atitudes são consideradas aceitas ou rejeitadas. Essa construção, em parte, ocorre através do compartilhamento de experiências e dos bons exemplos vivenciados pelas pessoas da empresa. O trabalho em home-office tem o potencial de romper essa relação e desconectar o empregado das relações éticas com a corporação.
Manter o empregado em conformidade com o regulamento da empresa será um desafio para a área de compliance. A elaboração de um código de conduta direcionado ao público remoto, pontuando exemplos de situações rejeitadas pela corporação e que podem ocorrer nessa modalidade de trabalho, é uma forma de mitigar deslizes éticos.
Além disso, proporcionar oportunidades de convívio e contato físico, ainda que espaçados no tempo, pode ser uma alternativa para que os empregados em home-office permaneçam conectados à cultura da organização e mantenham o senso de pertencimento.
Vale lembrar que o código de conduta é a legislação da empresa, reconhecido pelo poder judiciário e de cumprimento obrigatório. Porém, não basta elaborar regras, é preciso implementá-las corretamente, através de treinamento adequado e ostensivo, para que possam servir de base para ações punitivas trabalhistas e, ainda, afastar a responsabilidade da empresa pela má conduta de seus gestores e empregados.
Políticas de privacidade e segurança da informação
O mesmo cuidado é necessário com a segurança das informações acessadas pelo empregado remotamente. A aderência às políticas de privacidade e segurança da informação são imprescindíveis.
Em menos de um ano a Lei Geral de Proteção de Dados entrará em vigor. A data ainda está indefinida, mas é certo que toda a sociedade irá passar por um aculturamento sobre o tratamento de dados pessoais.
O trabalhador em home-office deve se apropriar e seguir as regras de tratamento de dados pessoais a que tiver acesso. Não se trata apenas de segurança da informação, e sim da conformidade dos empregados aos procedimentos de governança de dados. Há pesquisas que apontam que a maioria dos vazamentos de informação nas empresas decorrem do descumprimento das regras de segurança pelos colaboradores. Por exemplo, acessar e-mail ou sites corrompidos, conhecidos como sites de phishing. Esse tipo de ação é extremamente comum e difícil de ser evitada.
Há também o risco de compartilhamento dos equipamentos de trabalho com as pessoas da família, que mesmo agindo de boa-fé podem expor informações e dados pessoais, sejam eles sigilosos ou não. De outro modo, o excesso de controle pelo empregador através dos meios digitais pode gerar uma invasão à privacidade do empregado.
Conclusão
A sociedade trabalhadora está em constante transformação e nos últimos 10 anos o processo transformador se acelerou. A previsão mais assertiva sobre o futuro das relações de trabalho é aquela que reconhece sua imprevisibilidade.
Certamente não foi possível mencionar todas as dificuldades que o trabalho à distância oferece. Alguns desafios talvez só se apresentem com o passar dos anos, o que exigirá novos estudos e debates. Contudo, como premissa podemos considerar que as transformações do trabalho serão mais bem enfrentadas se valorizarmos a autonomia, disciplina, autocontrole, profissionalismo e a capacidade de reinvenção do trabalhador.
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*Caren Benevento Viani é sócia-diretora em Advocacia Viani. Especializada em direito e processo do trabalho pelo IICS-CEU e pós graduada em compliance trabalhista e negociações pela FGV-SP.