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A inconstitucionalidade dos decretos estaduais sobre medidas restritivas nos municípios

Breves comentários sobre as decisões do STF na ADPF 672/DF e nas ADIn 6.341/DF e 4.102/RJ, e os limites do exercício da Competência dos Estados em face dos municípios para adoção de medidas restritivas durante a pandemia.

3/7/2020

Tornou-se recorrente em meio a pandemia a publicação de decretos estaduais por Governadores estes ratificados por decisões judiciais em ações civis públicas -, que impõem a suspensão de decretos municipais que autorizavam e flexibilizavam o funcionamento das atividades econômicas locais durante o período de "crise" ocasionada pelo novo coronavírus (covid-19).

Conforme recente decisão do STF na ADIn 6.341, restou claro que a União pode legislar sobre medidas de polícia sanitária, mas que o exercício desta competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes federadosEstados, Distrito Federal e municípios -, de modo que a possibilidade do chefe do Executivo Federal – presidente da República -, de definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais e regionais, afronta diretamente o princípio da separação dos poderes.

Com tais razões de decidir, deve-se buscar alicerce no Princípio Constitucional da Simetria, o qual determina que há de existir uma relação de paralelismo entre as disposições constitucionais destinadas à União e os demais entes federativos, aqui incluídos os Estados e municípios.

Em outras palavras, os Estados e municípios, tanto quanto possível, no exercício das suas competências, devem adotar os modelos normativos constitucionalmente adotados pela União.

Com forte em tais premissas, ab initio, observa-se que tais decretos estaduais - em homenagem ao citado princípio da simetria -, viola a um só tempo às recentes decisões proferidas pelo STF na ADPF 672/DF e nas ADIn 6.341/DF e 4.102/RJ, que reconheceram e asseguraram o exercício da competência concorrente dos governos municipais para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia.

É de se observar que esses decretos – em sua grande maioria -, não atendem a realidade local, pois exigem que os Municípios obedeçam com exclusividade as normas estaduais - lista de atividades essenciais nos decretos -, o que, por si só, já viola a própria autonomia municipal e as razões de decidir do Supremo Tribunal Federal.

Registre-se que da mesma forma que a União, o Estado não deve ter o monopólio de regulamentar todas as medidas que devem ser tomadas para o combate à pandemia. O governo Estadual – no âmbito regional -, tem o papel primordial de coordenação entre os municípios respectivos, mas a autonomia destes deve ser respeitada.

Conforme bem decidido pelo STF, é impossível que o poder central conheça todas as particularidades locais, de modo que não é possível exigir que Municípios se vinculem a autorizações e decisões de órgãos estaduais para tomar atitudes de combate à pandemia.

Diante disso, resta possível compreender um verdadeiro excesso na atividade do Poder Executivo estadual - constitucionalmente garantido -, de expedir decretos de forma prematura e sem analisar sequer concretamente o conteúdo e eficácia de aplicabilidade de decretos locais, impondo por via reflexa uma verdadeira hierarquia entre entes federados, na qual os Municípios ficam sob o jugo do Governo Estadual.

Não obstante isso, possível perceber ainda que as medidas previstas nos referidos decretos sequer são precedidas de recomendações técnicas, muito menos fundamentadas, violando mais uma vez o que foi decidido pelo Supremo e em manifesta invasão e supressão da competência municipal para regular a matéria.

Não obstante, observa-se ainda que o Estado - com tais decretos -, demonstra vontade em imiscuir-se de forma indevida na definição das políticas públicas sanitárias definidas em nível local – municipal -, afrontando mais uma vez as razões que transcendem ao já decidido na ADIn 4.102.

Fato é que a manutenção dos referidos decretos – referendados por liminares judiciais -, torna mais ainda inconstitucional a perspectiva aqui elencada, pois se o Estado não tem o conhecimento técnico das políticas públicas sanitárias locais, quiçá o Poder judiciário, o qual não tem legitimidade constitucional em fazer juízo de valor acerca da conveniência e oportunidade de políticas públicas.

Em verdadedesde que respaldado por estudos técnicos sanitários locais -, deve-se preponderar as recomendações dos experts em políticas públicas municipais, o quais, em verdade, são os responsáveis e verdadeiros conhecedores das medidas locais inerentes ao combate à pandemia.

Fato é que, com tais decretos estaduais, passa-se a existir uma clara interferência na gestão da pandemia em âmbito local - municipal -, eis que resta latente que em sendo mantido tais decretos e decisões judiciais referendando-os, inevitavelmente causará danos irreparáveis ao erário público e à economia popular local, tendo em vista a indefinição de tempo de duração, sem considerar, ainda, eventuais prorrogações.

Assim, diante dessas breves considerações, entendemos que a Administração Pública - no caso os municípios -, podem negar validade ou eficácia a tais decretos Estaduais, pois tais atos normativos contrariam frontalmente a Constituiçãoviolação ao princípio federativo e das regras de repartição de competência entre os entes nacionais e subnacionais -, de modo que não há como exigir o seu cumprimento, algo já referendado pelo próprio STF.

Por fim, outra solução jurídica seria o Município manejar eventual Reclamação Constitucional perante o STF, fazendo valer a autoridade das decisões da ADPF 672/DF e nas ADIn 6.341/DF e 4.102/RJ, já bem explanadas.

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A Constituição e o Supremo. Disponível clicando aqui. Acesso em 24 de junho de 2020.

Informativo 976, STF. Disponível clicando aqui Acesso em 24 de junho de 2020.

LEONCY, Ferreira Léo. Uma proposta de releitura do “princípio da simetria”. São Paulo, 2012. Acesso em 24 de junho de 2020.

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais Julgados STF e STJ Comentados 2019. Manaus: Dizer o Direito, 2020.

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*Vamário Soares Wanderley de Souza é advogado, membro da OAB Pernambuco e da Anacrim de Pernambuco. Especialista em Direito Administrativo e Penal, atuante nos Tribunais Superiores.

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