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É hora de avançar na ratificação do Protocolo de Nagoya

Qualquer acordo vem atrelado a direitos e também a deveres. O terreno incerto que era a implementação do Protocolo de Nagoya, quando ele foi assinado, vem se tornando cada vez mais firme, sendo que agora temos inclusive o respaldo de nossa legislação interna.

2/7/2020

O tema da (possível) ratificação do Protocolo de Nagoya pelo Brasil vem se arrastando há anos, mas há de se dizer que essa é uma situação totalmente justificável ante as diversas incertezas que pairavam sobre o assunto. Não seria razoável esperar uma ratificação célere, por parte de um país grande, burocrático e heterogêneo como o Brasil, quando diversos impactos do referido Protocolo ainda são discutidos pelos especialistas.

A ‘ratificação’, para o direito internacional, é o ato que faz determinado acordo ter efeito legal e vinculativo para o país signatário. Para isso ocorrer, em nosso país, é necessário que o texto receba uma maioria de votos no Congresso Nacional, que então editará Decreto Legislativo aprovando a matéria, a ser ratificada pelo Presidente da República para só depois entrar em vigor. Apesar de estagnada, atualmente a matéria tramita na Câmara dos Deputados por meio de proposição MSC 245/12.

Evidente que a ordem do dia é a necessária preocupação com os efeitos devastadores do covid-19 em nosso sistema de saúde e em nossa economia, mas é certo também que a sociedade e seus representantes estão tendo a oportunidade de rever diversos assuntos que andavam adormecidos em velhas gavetas. Afinal, servidores públicos e agentes políticos continuam (pelo menos até o momento da elaboração deste artigo) recebendo seus salários integralmente e tendo o privilégio de exercer suas atividades de forma remota, de modo que a continuidade de suas atividades e de sua produtividade é algo que se espera. Mas como esperar aprovação da maioria do Congresso se diversos parlamentares sequer sabem do que trata o Protocolo?

O Protocolo de Nagoya é um acordo multilateral, baseado na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), que tem por objetivo viabilizar a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais a eles associados. Para o acordo, a expressão ‘utilização de recursos genéticos’ significa “a realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento sobre a composição genética e/ou bioquímica dos recursos genéticos, inclusive por meio da aplicação da biotecnologia”. Trata-se de conceito que muito se aproxima à definição de “acesso ao patrimônio genético” adotado no Brasil pela lei 13.123/151.

De forma simplificada, busca resguardar direitos sobre recursos genéticos ao seu país de origem, dando a este a possibilidade de fixar exigências e procedimentos de acesso a tais recursos, tudo isso seguindo os princípios fundamentais de acesso e repartição de benefícios consagrados na própria CDB.

Ao contrário de quando o Protocolo foi assinado pelo Brasil, em fevereiro de 2011, hoje dispomos de uma lei federal que trata sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade. Ou seja, criamos o instrumento normativo que criou as balizas necessárias para a implementação do Protocolo de Nagoya no Brasil, trazendo segurança jurídica a todos os envolvidos.

O que se observa do texto do Protocolo de Nagoya é que certamente não havia grande consenso entre os países signatários, pois suas disposições são demasiadamente amplas e subjetivas, remetendo diversos aspectos de sua implementação para as normas internas de cada país. Isso tornou a ratificação do Protocolo inviável para um país como o Brasil, grande fornecedor e usuário de recursos genéticos, pois não contávamos com a legislação de apoio necessária para evitar possíveis prejuízos de interpretações anômalas do texto.

Afinal de contas, a agricultura do país (responsável por quase 1/4 de nosso PIB) é fortemente baseada em culturas cujo ponto de origem não é o Brasil – o café é oriundo do Chifre da África; a cana-de-açúcar e o arroz, do sudeste asiático; a soja e a laranja, do leste asiático; o trigo, do Oriente Médio – e nossos pesquisadores precisam ter acesso aos recursos genéticos provenientes destes centros de origem ou de institutos de pesquisa internacionais, a fim de proteger as plantas de doenças, melhorar sua produtividade e adaptação aos impactos das mudanças climáticas2.

De modo a prestigiar a segurança jurídica e a atividade agrícola no Brasil, a lei 13.123/15 ressalvou que a repartição de benefícios prevista no Protocolo de Nagoya não se aplica à exploração econômica de material reprodutivo de espécies introduzidas no País pela ação humana até a entrada em vigor do tratado (art. 46, parágrafo único), definindo, ainda, atividades agrícolas como aquelas de produção, processamento e comercialização de alimentos, bebidas, fibras, energia e florestas plantadas (art. 2º, XXIV). Portanto, culturas como as do milho, soja e trigo estariam ressalvadas e somente seriam englobadas em casos de novas amostras obtidas de seus países originários.

Ainda sobre a atividade agrícola no país, é importante ressaltar que Nagoya deixa expresso que acordos mais específicos prevalecem sobre seu texto, de modo que os recursos vegetais utilizados para alimentação e agricultura abarcados pelo Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura (TIRFAA), que foi celebrado no âmbito da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e já ratificado pelo Brasil, possuem um regime próprio de repartição de benefícios.

Além disso, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, internalizada por meio do decreto 7.030/09, dispõe de forma literal que “a não ser que uma intenção diferente se evidencie do tratado, ou seja estabelecida de outra forma, suas disposições não obrigam uma parte em relação a um ato ou fato anterior ou a uma situação que deixou de existir antes da entrada em vigor do tratado, em relação a essa parte”, tornando equivocada qualquer interpretação que busque dar retroatividade aos efeitos do Protocolo de Nagoya.

Mas não é só de agricultura e produção de commodities que vivemos. O Brasil é cientificamente considerado um dos 17 países megadiversos pela Conservação Internacional (CI), de forma que nosso potencial econômico derivado do uso de recursos genéticos é promissor. Podemos vir a dar um salto em desenvolvimento econômico a partir dessa futura riqueza. A bioeconomia tem tudo para ser alavancada com o funcionamento eficiente de Nagoya, uma vez que se trata da implementação de um sistema comercial global para investimento, pesquisa e desenvolvimento na composição genética e bioquímica dos organismos vivos.

Justamente por ter partido de um texto excessivamente amplo, como já frisado, diferentes modelos regulatórios são capazes de atender as determinações do Protocolo. Desde questões como a definição da origem dos recursos genéticos, que há muito foram dispersos e utilizados pelo planeta, passando por questões relativas ao entendimento sobre o consentimento prévio informado para a realização do acesso, alcançando a não menos complexa questão da atribuição de propriedade ao conhecimento tradicional, os vazios a serem preenchidos são muitos3.

Diversos desses vazios vêm sendo preenchidos em reuniões entre o grupo de países que ratificaram o Protocolo, chamadas de COP-MOPs (Conference of the Parties e Meeting of the Parties), onde Decisões, que passam a integrar as diretrizes gerais do Protocolo, são tomadas de forma consensual pelo grupo. Países de grande relevância para o comércio externo brasileiro, como China, Argentina, México, e até a União Europeia, já aderiram integralmente ao Protocolo de Nagoya e vêm delimitando seu escopo sem a presença do Brasil.

A ratificação do Protocolo pelo Brasil fará com que nossa “nova” lei de recursos genéticos seja levada em consideração não só internamente, mas também pelo resto do mundo, e.g., qualquer país que acessar benefícios genéticos do açaí ou da jabuticaba deverão repartir os benefícios conosco – não estamos falando apenas de um possível novo produto de beleza, mas quiçá da cura de uma doença ou outro achado de alto retorno econômico e social ao país. De igual modo, a participação do Brasil nas COP-MOPs evitará que a regulamentação do Protocolo avance contra regras ou interesses nacionais.

A ratificação nos dará direito a voz, voto e veto em futuras regulamentações, o que por si só já a torna de extrema relevância. O próximo encontro (COP 15 da Convenção sobre Diversidade Biológica - CBD e COP/MOP 4 de Nagoya), inclusive, estava agendado para outubro de 2020 na China, mas foi adiado em razão da pandemia da covid-19, de modo que isso concederá ao Brasil um prazo hábil para, querendo, ratificar o texto e sentar à mesa quando o evento for remarcado.

É claro que, ao ratificar o Protocolo de Nagoya, o Brasil se torna também obrigado a cumprir suas diretrizes, Sendo que o cálculo global do real benefício ou prejuízo que será obtido pelo acordo deve ser sopesado e discutido exaustivamente por especialistas e pela sociedade em geral.

De forma a se concluir os argumentos, não há dúvida de que o Protocolo de Nagoya não pode ser ratificado de forma açodada, nem poderia ter sido ratificado sem que antes tivéssemos o escoro de uma lei federal que resguardasse nosso entendimento sobre patrimônio genético. No entanto, essa lei agora existe, e a ratificação do Protocolo dá sustentação para que ela seja respeitada também ao redor do mundo – e isso pode ser essencial quando o país começar a explorar de forma mais pujante seus recursos genéticos. O fato de que lacunas procedimentais e interpretativas do Protocolo estão sendo preenchidas nesse momento, sem a presença do Brasil, é preocupante mas pode ser revertido rapidamente caso o país delibere nesse sentido por meio de seus parlamentares.

Qualquer acordo vem atrelado a direitos e também a deveres. O terreno incerto que era a implementação do Protocolo de Nagoya, quando ele foi assinado, vem se tornando cada vez mais firme, sendo que agora temos inclusive o respaldo de nossa legislação interna, soberana, e a certeza da irretroatividade dos tratados, duas circunstâncias que nos acobertarão em face de eventuais interpretações prejudiciais do texto.

Diante disso, nos cabe finalizar a avaliação das consequências da ratificação do Protocolo, seja por meio de estudos ou de audiências públicas, para confirmar se os indicativos que apontam para um cômputo geral vantajoso no ato estavam corretos, e assim colocar o Brasil na mesa de discussão do assunto e consolidá-lo como significante agente conservador da biodiversidade e pesquisador do patrimônio genético.

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1 LIMA, João Emmanuel Cordeiro. Protocolo de Nagoia: dez questões fundamentais para entender esse acordo internacional sob a perspectiva brasileira.

2 GROSS, A. R. Diálogo sobre o Protocolo de Nagoia entre Brasil e União Europeia = Dialogue on the Nagoya Protocol between Brazil and the European Union. Brasília: MMA, 2013

3 Decisões da CDB e o Setor de Negócios / Confederação Nacional da Indústria. Brasília: CNI, 2014.

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*Fabio Monteiro Ferreira é advogado do escritório Ferraz Advogados, especialista em Direito Ambiental e mestrando em Políticas Públicas, Estado e Desenvolvimento.

 
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