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Violência doméstica no contexto da pandemia do covid-19

Em tempos de covid-19, a violência doméstica necessita de uma cautela especial, pois a percepção da família como uma instituição inviolável, insubordinada ao Estado e à Justiça, permite que essa violência ocorra de forma invisível.

2/7/2020

Dados extraídos do Painel de Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres1, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revelam, ao menos, duas relevantes informações sobre o combate à violência ao sexo feminino durante o ano de 2019 no Brasil.

A primeira delas é que, nos casos de violência doméstica, houve um aumento de quase 10% (dez por cento) de novas demandas judiciais recebidas pelo Poder Judiciário Brasileiro e, a segunda, quanto aos casos de feminicídio, cresceram mais de 5% (cinco por cento) em relação ao ano anterior.

Diante disso, de acordo com o CNJ2, o Brasil terminou o ano de 2019 com mais de um milhão de processos judiciais de violência doméstica e 5,1 mil processos de feminicídio em tramitação na Justiça.

No início de 2020, sobretudo por conta do atual período de isolamento social decorrente da pandemia do coronavírus, da restrição dos serviços de proteção e de movimentação, da sobrecarga de trabalho doméstico, assim como do aumento das tensões do lar, da dependência econômica da mulher e do consumo de álcool e drogas, vários setores da sociedade mundial têm demonstrado altiva inquietação com o aumento excessivo da criminalidade praticada contra às mulheres.

Direto do Vaticano, por exemplo, o Papa Francisco externou grande preocupação com a possibilidade do crescimento da violência praticada contra o sexo feminino durante todo período da quarentena, comentando inclusive que as mulheres “correm risco de sofrer violência doméstica”3.

De acordo com a Organização das Nações Unidas, como bem salientou o seu Secretário-Geral António Guterres, “Para muitas mulheres e meninas, a maior ameaça está precisamente naquele que deveria ser o mais seguro dos lugares: as suas próprias casas”4.

No Brasil, inobstante o isolamento social em razão da pandemia de coronavírus tenha ajudado o controle do avanço do número de infectados e mortos por conta da covid-19, tal enclausuramento tem causado efeitos colaterais não apenas na economia, mas também na segurança pública, inclusive em relação ao combate da violência praticada contra às mulheres.

Devido à ampliação da violência doméstica a nível global, a Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou diversas recomendações para prevenir este aumento durante a pandemia. Tais orientações consistem na intensificação do investimento em serviços online, implementação de sistemas de alerta de emergência em farmácias e mercados, criação de abrigos temporários para vítimas de violência de gênero e ampliação de campanhas de conscientização pública.

No âmbito internacional, no decorrer da pandemia, os crimes praticados no âmbito de violência doméstica sofreram um aumento em diversos países, a exemplo da França, Espanha, Reino Unido, Argentina, Chile, México, Colômbia, China, Estados Unidos, Canada, Singapura, Chipre, Austrália e Itália. Notadamente, a França apontou um crescimento de 32% nos casos somente na primeira semana de isolamento5, as denúncias triplicaram na China6, o número de feminicídios duplicou na Argentina7 e houve uma ampliação em 73% nas ligações para o disque 1522 entre 1 a 16 de abril na Itália, segundo o Instituto Nacional de Estatística (ISTAT)8.

Por seu turno, no Brasil, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em abril, houve um crescimento de 35% nas denúncias de violência contra a mulher feitas ao Ligue 1809. Outrossim, no estudo elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no decorrer da segunda semana de abril, através da análise do quantitativo de registros de boletins de ocorrências, de medidas protetivas de urgência solicitadas e do número de ocorrências atendidas através do 190, foi verificado o registro de 50% mais casos de violência doméstica no Rio de Janeiro10, que os feminicídios quintuplicaram no Mato Grosso11 e quadruplicaram no Acre12.

Ademais, em São Paulo o acréscimo da violência doméstica foi de 44%, os crimes de feminicídios subiram de 13 para 19 casos (46,2%), os pedidos de medida protetiva de urgência e de prisões em flagrante ampliaram em 29% e 51%, respectivamente, na comparação entre março de 2019 e março de 2020. Também, no Rio Grande do Norte os casos de lesão corporal dolosa cresceram em 34,1%, o crime de ameaça ampliou em 54,3%, as notificações de estupro e estupro de vulnerável dobraram e o índice de feminicídio quadruplicou13.

Em Pernambuco,14 os crimes de estupros de mulheres e os registros de boletim de ocorrência de delitos praticados no âmbito de violência doméstica reduziram em 27,57% e 25,45%, respectivamente, consoante as forças de segurança. Contudo, a quantidade de feminicídios no estado subiu de 4 para 7 (75%), na comparação entre abril de 2019 e abril de 2020.

Esse gravíssimo cenário de aumento da violência doméstica e do feminicídio, no entanto, pode ainda ser mascarado, ou seja, não revelar e nem se saber exatamente ou mesmo aproximadamente os índices da violência contra o sexo feminino neste período de quarentena. Essa subnotificação, não obstante se ter constatado o avolumamento dos delitos desse tipo, ocorre tanto em virtude do isolamento social, do obstáculo para registrar a ocorrência, da dificuldade de acesso à serviços de proteção, da restrição da liberdade, quanto da ausência de apoio da família e de pessoas próximas.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública15, no caso dos registros de lesão corporal dolosa, por exemplo, que demandam a presença física das vítimas, o número de ocorrências caiu de 953, em março de 2019, para 744 em março do corrente ano no Mato Grosso, uma queda de 21,9%. Já no Rio Grande do Sul, foram 1.744 denúncias ante 1.925 registros feitos no ano passado, redução de 9,4%. No mesmo período houve queda, também, no Acre de 28,6% e no Ceará de 29,1%. Apenas no Rio Grande do Norte as denúncias cresceram 34%.

Em consequência da elevação dos índices de infrações penais praticadas no ambiente doméstico a nível global, apesar das possíveis subnotificações ocorridas, foram implementadas novas formas para garantir a proteção de mulheres e crianças em tempos de isolamento social em razão da pandemia do novo coronavírus.

No âmbito internacional, mais precisamente na França, foram criados métodos de alerta de emergência em farmácias e mercados, como também o Governo Francês efetuou o pagamento de quarto de hotéis para as vítimas desabrigadas e investiu bastante em organizações de ajuda ao combate à violência doméstica. Outrossim, na Espanha, os atendimentos às mulheres foram declarados serviços essenciais pelo poder público, a fim de que não aconteça a interrupção parcial ou total dessas atividades.

No Brasil, com efeito, também foram praticados novos métodos para resguardar tais vítimas. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou um grupo de trabalho para desenvolver sugestões de atitudes urgentes para o enfrentamento da violência doméstica. Houve o fortalecimento da rede de apoio e um aumento da rede de atendimento online, uma vez a mulher encontra-se todo o momento na presença do seu agressor.

Além dessas medidas, foi determinada, também em âmbito Nacional, a concessão de medidas protetivas de urgência em caráter de urgência sem a apresentação do boletim de ocorrência, a implementação do registro de boletim de ocorrência online, a ampliação da rede de apoio, uma maior divulgação do ligue 180, a criação de campanha de conscientização em condomínios, uma maior disponibilidade de vagas em abrigos e a criação do aplicativo Direitos Humanos BR.

Por derradeiro, cabe salientar que em Pernambuco foram implementadas diferentes medidas para proteger as mulheres em tempos de pandemia do coronavírus.

No referido estado, a Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça de Pernambuco lançou o projeto “Cartas de Mulheres”, site que permite que sejam feitas denúncias através dele. Recomendou, ainda, aos magistrados das varas de violência doméstica que fossem prorrogados os prazos das medidas protetivas de urgência deferidas, concedidos pedidos de liberdade provisória e de revogação de prisão preventiva de agressores integrantes dos grupos de risco, decretassem, se possível, medidas cautelares diversas da prisão, a exemplo do monitoramento eletrônico e que as notificações\intimações fossem feitas por qualquer meio de comunicação.

Feitas tais considerações, constata-se que o isolamento social representa um aumento da exposição prolongada da mulher ao perigo, pois a vítima se encontra mais horas na companhia do seu agressor, usualmente em habitações precárias e pequenas. Logo, a permanência contínua no interior do lar se torna perigosa para a mulher, consoante se denota nas estatísticas acima referidas.

Ademais, infere-se que a violência contra a mulher, praticada no âmbito doméstico, é uma questão global e em pleno crescimento durante a pandemia no novo coronavírus. Portanto, salvaguardar vidas, tanto no combate do covid-19, quanto em medidas que visem diminuir a violência praticada no âmbito doméstico, principalmente no Brasil onde a taxa de feminicídio é 74%16 maior do que a média mundial, é uma responsabilidade tanto social quanto governamental.

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1 Disponível Clicando aqui . Acesso em 14.06.20.

2 Disponível Clicando aqui . Acesso em 15.06.20.

3 Disponível Clicando aqui. Acesso em 15.06.20.

4 Disponível Clicando aqui . Acesso em 13.06.20.

5 Disponível Clicando aqui. Acessado em: 12.06.20.

6  Disponível Clicando aqui. Acessado em: 12.06.20.

7 Disponível Clicando aqui. Acessado em: 15.06.20.

8 Disponível Clicando aqui. Acessado em: 15.06.20.

9  Disponível Clicando aqui. Acessado em: 14.06.20.

10 Disponível Clicando aqui. Acessado em: 13.06.20.

11 Disponível Clicando aqui. Acessado em: 09.06.20.

12 Ibdem.

13 Disponível Clicando aqui. Acessado em: 08.06.20.

14 Disponível Clicando aqui. Acessado em: 10.06.20.

15 Disponível Clicando aqui . Acesso em 08.06.20.

16 Disponível Clicando aqui. Acessado em: 28.05.20.

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*Ricardo de Albuquerque do Rego Barros Neto é advogado criminalista, sócio administrador do escritório Nunes & Rêgo Barros Advogados Associados. Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET). Cofundador e diretor Financeiro do Instituto Brasileiro de Ciências Jurídicas e Sociais (IBJUS). Membro da Comissão de Orientação e Fiscalização do Exercício Profissional da OAB/PE (COFEP/OAB/PE).

*Luciana Pessôa de Melo Corrêa Gondim é advogada criminalista, sócia administradora do escritório Lyra Gondim Advogados Associados. Pós-graduada em Direito Penal Empresarial pela PUC/RS. Atualmente, é membro da Comissão de Direito Penal da OAB/PE (CDP/OAB/PE). 

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