Migalhas de Peso

Os desafios à candidatura das pessoas com deficiência intelectual no sistema eleitoral brasileiro

Em um país em que ainda é desafio garantir a participação política igualitária de mulheres e da população LGBT, falar em garantia à elegibilidade de pessoas com deficiência (especialmente a intelectual) parece ser ingênuo ou precipitado, mas o assunto não pode deixar de ter relevância.

29/6/2020

O Brasil possui cerca de 45 milhões de pessoas com deficiência – PCD, segundo dados mais recentes do IBGE. Todavia, na legislatura atual, apenas dois parlamentares com deficiência compõem o Congresso Nacional. Felipe Rigoni, deputado federal pelo Espírito Santo com deficiência visual, e Mara Gabrilli, senadora pelo estado de São Paulo, com deficiência motora. Dentro dos partidos, todavia, não existem dados concretos acerca do número de PCD filiadas. Dentre estes, aqueles com deficiência intelectual são raríssimos, praticamente desconhecidos1.

De acordo com Martha Nussbaum, uma das principais teorias da justiça do ocidente decorre do contratualismo, segundo o qual um conjunto de indivíduos racionais se une em busca de um benefício mútuo, e decide abandonar o estado de natureza para governar a si próprio através da lei. Essa teoria, ao especificar certas capacidades (racionalidade, linguagem e aptidão mental) como requisitos necessários para a participação na escolha dos princípios sociais básicos, tem como consequência a exclusão das pessoas com deficiência intelectual do processo político2.

A concretização plena dos direitos políticos é um processo ainda em construção no Brasil. A despeito de a Constituição Federal estabelecer em seu artigo 14 que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal, não é possível ignorar que existem coletividades à margem do processo político – a exemplo das pessoas com deficiência intelectual. Esse grupo ainda sofre segregação nas esferas educacional, profissional, familiar e social, bem como pela falta de oportunidade de exercer, em iguais condições, sua participação no meio eleitoral.

O tratamento jurídico a esse grupo sofreu grande impacto no meio internacional a partir Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela ONU em 2006. O diploma previu a necessidade de os Estados signatários garantirem a participação “efetiva e plena” das pessoas com deficiência na vida política, com a máxima igualdade de oportunidades.

Aludida Convenção foi internalizada no Brasil pelo decreto legislativo 186, de 9 de julho de 2008, e resultou na lei federal 13.146, de 6 de julho de 2015. O chamado Estatuto da Pessoa com Deficiência – EPD tem como objetivo romper antigos paradigmas de caráter excludente e possibilitar que esse grupo de pessoas possa ser incluído de forma plena em todos os âmbitos da convivência social. Na intenção de promover a inclusão política da pessoa com deficiência – e, especialmente, da pessoa com deficiência intelectual –, a lei trouxe ao campo normativo garantias jurídicas e exigências materiais impostas à viabilização de sua participação, tanto na condição de eleitor, como na de candidato.

É necessário pontuar que uma das mudanças centrais realizadas pelo Estatuto foi no sentido de definir, em seu artigo 6º, que a deficiência (inclusive a intelectual) não afeta a plena capacidade da pessoa. Com a revogação dos incisos II e III do artigo 3º do Código Civil pelo EPD, houve, por consequência, a diminuição do âmbito de incidência do artigo 15, II, da Constituição Federal, o qual define como uma das causas de suspensão dos direitos políticos a incapacidade civil absoluta. Assim, este dispositivo se dirige, atualmente, apenas àqueles que não atingiram os dezesseis anos. Também com o objetivo de promover a participação política da pessoa com deficiência, o EPD definiu, em seu art. 85, §1º, que o instituto da curatela não se estende ao direito ao voto3.

Nesse contexto, Marcelo Roseno (2016) explica que os menores de 16 anos passaram a ser os únicos que incorporam a incapacidade absoluta, desconsiderando a presunção de que aqueles com deficiência mental não teriam discernimento para a execução dos atos na vida civil, bem como o de sufrágio ativo e passivo no campo político4. Notavelmente, as mudanças estabelecidas pelo Estatuto fomentaram debates. Para alguns, a nova lei representa verdadeira conquista social; para outros, seria uma aberração jurídica, pois “ignoraria a vulnerabilidade das pessoas com deficiência” (SCHMIDT, 2016).5

Em relação às alterações na esfera política, Resende (2018) afirma que as capacidades eleitorais ativa e passiva da pessoa com deficiência mental deveriam ainda permanecer sob restrição, visto que não há dúvidas que são absolutamente incapazes para a Constituição Federal, destituindo-se de autonomia para escolher ou se tornar representante do povo6. Segundo Roseno, por outro lado, a redação do artigo 85, §1º, do EPD, garantiria apenas o direito ao voto das pessoas com deficiência intelectual, a partir do regime da curatela, sendo vedado seu acesso aos mandatos eletivos7

Tais interpretações, no entanto, não se mostram alinhadas aos propósitos do Estatuto. Isso porque este impõe ao poder público o dever de garantir à pessoa com deficiência todos seus direitos políticos e os meios necessários para seu exercício (artigo 76, §1º). Cumpre frisar que tanto o direito de votar como de ser votado são igualmente abrangidos e, para sua materialização, o EPD impõe as seguintes garantias: “de que os procedimentos, as instalações, os materiais e os equipamentos para votação sejam apropriados, acessíveis a todas as pessoas e de fácil compreensão e uso, sendo vedada a instalação de seções eleitorais exclusivas para a pessoa com deficiência” (inciso I); “incentivo à pessoa com deficiência a candidatar-se e a desempenhar quaisquer funções públicas em todos os níveis de governo, inclusive por meio do uso de novas tecnologias assistivas, quando apropriado” (II); “garantia de que os pronunciamentos oficiais, a propaganda eleitoral obrigatória e os debates transmitidos pelas emissoras de televisão” possuam, ao menos, legenda oculta, recurso de libras e audiodescrição inciso III); e “garantia do livre exercício do direito ao voto e, para tanto, sempre que necessário e a seu pedido, permissão para que a pessoa com deficiência seja auxiliada na votação por pessoa de sua escolha” (inciso IV).

A Justiça Eleitoral já tem se atentado para garantir os meios de participação eleitoral das pessoas com deficiência. Especificamente, a resolução no 23.381/12, que institui o “Programa de Acessibilidade da Justiça Eleitoral”, e pelas resoluções que disciplinam os atos preparatórios de cada eleição, como é o caso da resolução TSE 23.611/19, referente ao pleito municipal de 2020. Todavia, essas normas se concentram nos meios e instrumentos para exercício do voto das pessoas com deficiência e quase nada dispõem acerca de sua elegibilidade. Verifica-se, também, que o foco se dirige especialmente à acessibilidade, não havendo previsões destinadas à promoção do voto e da elegibilidade do deficiente intelectual.

Porém, mesmo que livres da antiga restrição e franqueado o acesso aos direitos de ordem política, o fato de os deficientes intelectuais serem considerados civilmente capazes não afasta sua vulnerabilidade e sua necessidade de medida especiais de apoio. Mas, por outro lado, a vulnerabilidade não mais representa óbice à participação da pessoa com deficiência intelectual na política.

Conforme explica Tereza Rodrigues Vieira, os vulneráveis dependem de tutela social, material e psicológica adequada ao caso concreto, tendo em vista que cada indivíduo apresenta limitações específicas8. A Constituição de 1988, ao definir a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, centralizou a tutela jurídica no indivíduo concreto e vulnerável. Compromete-se o texto constitucional com a redução das vulnerabilidades específicas dos sujeitos, a partir do princípio da solidariedade social e da isonomia substancial9. Nesse sentido, a pessoa com deficiência intelectual tem o direito ao gozo de seus direitos e deveres como cidadã, devendo ser a ela garantido todo auxílio e tratamento diferenciado necessário a tal desiderato, dentro de suas necessidades.

Afinal, nenhum indivíduo pode ser reduzido a condição de mero objeto quando em fruição de seus direitos em participação política10. O sufrágio (ativo e passivo), por outro lado, deve ser enxergado como direito a ser assegurado universal, isonômica e irrestritamente, e não privilégio concedido a indivíduos com elevada moralidade ou inteligência11.

A Constituição garante a elegibilidade do cidadão desde que preenchidas todas as suas condições (artigo 14, §3, CF/88) e não incidindo alguma inelegibilidade constitucional (art. 14, § § 4, 6 e 7, CF/88) ou infraconstitucional (LC 64/90). Desta forma, para Sidney Madruga (2016), a restrição da capacidade eleitoral ativa e passiva da pessoa com deficiência mental deverá sempre atender ao postulado da autonomia e da igualdade, dentro de um contexto democrático de inclusão social e política, na medida de cada caso concreto12. A autonomia individual é um princípio geral da Convenção da ONU e está associada com o princípio de “vida independente”. Isto é, além da prática dos atos da vida civil, exercer também a cidadania e o direito de ascender a um cargo eletivo ou participar da escolha deste.

De todo modo, a restrição antecipada à elegibilidade de pessoas com deficiência sob curatela ou tomada de decisão apoiada não parece se adequar ao espírito da lei e às garantias asseguradas pelo artigo 76. Como entendem Frederico Alvim, Joelson Dias e Wendelaine Oliveira13, a decretação de curatela já não se encaixa mais na categoria de suspensão de direitos políticos, como já dito, e, “tampouco, pode operar como inelegibilidade ou como nova condição de elegibilidade, pois os institutos não convivem com a modalidade implícita”. Em outras palavras, salvo em excepcionalíssimas situações diante do caso concreto, a curatela ou a aplicação do regime de decisão apoiada do EPD a pessoas maiores de 18 anos com deficiência intelectual não pode implicar no impedimento automático da ocupação de um cargo eletivo.

Sendo assim, se acatados os critérios legais e constitucionais, deve-se afirmar, de forma profusa e coerente, que a pessoa com deficiência intelectual tenha assegurado seu direito de votar e de concorrer a qualquer cargo eletivo, ressalvados os casos de incapacidade em que a pessoa não consiga exprimir sua vontade14.

Para isso, o instrumento de curatela deve ser revisto de tempos em tempos e só será admitida a viabilidade da restrição do direito político se o responsável por esta fundamentar as razões pelas quais considera o sujeito incapaz de exprimir sua vontade. O desafio, portanto, seria o de saber como o poder público poderia garantir a igualdade política das pessoas com deficiência intelectual (mentally challenged), em uma realidade tão complexa, visto que, de acordo com Gonzaga e Figueiredo (2018), a atuação do Poder Público deve se dar no sentido de colocar um plano real para o cumprimento dessas normas de forma efetiva e eficiente, atingindo os objetivos de inclusão e emancipação da PCD15.

Em um primeiro momento, não devem ser restritos os esforços para a criação e divulgação em massa de espaços de comunicação específicos para incentivar a participação das pessoas com deficiência no meio eleitoral (inclusive pela própria Justiça Eleitoral, aos moldes das campanhas pelo voto e participação política das mulheres). Ainda, não há vedação legal para que partidos criem políticas afirmativas em seus quadros de direção ou para o lançamento de suas candidaturas. Também não podem estar fora de discussão medidas afirmativas como cotas para a eleição dessas pessoas, o que não encontraria óbices em face de todo o regime jurídico acima e em observância à igualdade democrática, inclusive representativa.

Infelizmente, há pouca esperança de mobilização imediata na pauta aqui defendida.

Em um país em que ainda é desafio garantir a participação política igualitária de mulheres e da população LGBT, falar em garantia à elegibilidade de pessoas com deficiência (especialmente a intelectual) parece ser ingênuo ou precipitado, mas o assunto não pode deixar de ter relevância. Ainda que as barreiras jurídicas e legais lentamente sejam derrubadas, os obstáculos reais ainda são muitos e a atenção à inclusão dessa importante parcela da população nos espaços de decisão jamais deve ser esquecida na pauta. A democracia é um processo constante, de inclusão e emancipação. Nesse processo, no entanto, o maior obstáculo ainda parece ser a superação dos estigmas sobre a PCD e a desconfiança em dar voz a quem geralmente sequer tem seu espaço para falar por si mesmo.

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1 As estatísticas de candidaturas postas à consulta pública pelo TSE não permitem a segregação dos dados relacionados a pessoas com deficiência, do que se depreende a raridade da situação.

2 NUSSBAUM, Martha. Las fronteras de la justicia: Consideraciones sobre la exclusión. Barcelona: Paidós, 2007. p. 36.

3 Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. § 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.

4 ROSENO, M. Estatuto da Pessoa com Deficiência e exercício de direitos políticos: elementos para uma abordagem garantista. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 18, n. 116, out. 2016./jan. 2017.

5 SCHMIDT, Bárbara Diettrich. "A Lei n.º 13.146/2015 e a (des)proteção civil da pessoa com deficiência". 2016. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade do Vale do Taquari - Univates, Lajeado, 05 dez. 2016. Disponível em: Clique aqui

6 CASTRO, Edson de Resende. Curso de Direito Eleitoral. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018.

7 ROSENO, Marcelo. Estatuto da Pessoa com Deficiência e exercício dos direitos políticos: elementos para uma abordagem garantista. Revista Jurídica da Presidência, v. 18, n. 116, out. 2016/ jan. 2017. pp. 559-581.

8 VIEIRA, Tereza Rodrigues. A vulnerabilidade do transexual. Bioética e Vulnerabilidades. P. 85-102. P. 85.

9 TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Personalidade e capacidade na legalidade constitucional. IN Pessoa e mercado sob a metodologia do direito civil-constitucional. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, vol. 1, 2016, p. 227-248. P. 228-229.

10 SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013

11 FAYT, Carlos S. Derecho político. 12. ed. Tomo I. Buenos Aires: La Ley, 2009.

12 MADRUGA, Sidney. A Lei Brasileira de Inclusão e a capacidade eleitoral das pessoas com deficiência mental grave: Não se pode tolher a pessoa com deficiência mental que deseja votar ou candidatar- e. JOTA, [S. l.], ano 2007, 20 jul. 2016. Acesso em: 23 ago. 2019.

13 ALVIM, Frederico Franco; DIAS, Joelson; OLIVEIRA, Wendelaine de Andrade. Cidadania revigorada: direito ao sufra'gio e inclusa~o poli'tica das pessoas com deficiência. In: Revista Justiça Eleitoral em Debate, v. 9. n. 1, Jan./Jul. 2009, p. 43-62. Disponível em: clique aqui. Acesso em 15 jun. 2020.

14 GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

15 FIGUEIREDO, Ana Cláudia Mendes. Gonzaga, Eugênia Augusta. Pessoas com deficiência e seu direito fundamental à capacidade civil. In: Gonzaga, Eugênia Augusta. Medeiros, Jorge Luiz Ribeiro (Org.). Ministério Público, sociedade e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 junho. 2020.

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*Amanda Batiston Dal Bosco é acadêmica em direito no Centro Universitário Univel.

*Luiz Eduardo Peccinin é advogado, Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP.

*Lygia Maria Copi é advogada doutoranda em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestra pela mesma Instituição. Docente do Curso de Direito do Centro Universitário – UNIVEL. 

 

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