Migalhas de Peso

Meu celular, meu universo particular

O acesso aos dados de aparelho celular, por parte da autoridade policial, como regra, carece de expressa ordem judicial, sob pena de configurar indevida invasão à esfera privada do cidadão.

25/6/2020

Há poucos dias, tomou-se conhecimento, por meio da imprensa, de uma abordagem realizada pela Polícia Militar do Estado do Ceará no bairro do Pirambu. O caso, que, naturalmente, deveria figurar como apenas “mais um” na (extensa) lista de abordagens policiais em localidades com grande incidência do tráfico de drogas, acabou ganhando significativa notoriedade por envolver uma famosa influenciadora digital cearense1.

Quando da abordagem policial, muito embora não portasse consigo quaisquer ilícitos, a influencer teve seu celular inteiramente vasculhado pela polícia, ocasião em que se haveria encontrado fotos de drogas e de armas de fogo no aparelho. A abordada, então, fora levada à delegacia, e o celular fora apreendido para posterior perícia.

O presente artigo não pretende analisar o caso concreto em si ou, ainda, criticar o trabalho exercido pelos policiais militares quando da aludida abordagem, mas sim refletir acerca da corriqueira prática de acesso a dados contidos em aparelhos celulares, sem autorização judicial para tanto, à luz dos direitos à intimidade e à privacidade.

A Constituição Federal preceitua serem invioláveis a intimidade e a vida privada do cidadão (art. 5º, X), conferindo-lhes status de verdadeiros direitos fundamentais.

Nada obstante, desvela-se medida rotineira a “vasculhada” de aparelhos celulares quando de abordagens de (meros) suspeitos na rua, por policiais, independentemente de ordem judicial nesse sentido.

Nesse particular, é preciso ter em mente que um aparelho celular não pode ser considerado como um bem material qualquer. Atualmente, os famigerados smartphones comportam uma infinitude de informações e de documentos intrinsicamente ligados à esfera íntima e privada, não só da pessoa abordada, mas, igualmente, de terceiros.

Diferentemente da revista de uma carteira ou de uma mochila, por exemplo, para fins de averiguar a existência ou não de drogas quando de uma abordagem policial diante de situação suspeita, o acesso ao conteúdo de um aparelho celular carece, como regra, de autorização judicial expressa e específica para tanto, por esbarrar, precipuamente, no óbice da intimidade e da privacidade do cidadão – aos quais o Estado deve conferir a necessária tutela de direitos fundamentais.

A bem da verdade, a ânsia de adentrar no universo particular de um smartphone pode acabar, na prática, se revelando como uma grande contribuição para a impunidade, na medida em que os tribunais pátrios já vêm consignando a ilicitude da prova obtida a partir do acesso a aparelhos celulares sem autorização judicial, mesmo nos casos de flagrante, em que a tão só apreensão do aparelho para posterior perícia, no mais das vezes, seria suficiente para subsidiar a investigação criminal 2 3.

Mas e quando, ainda que inexistente ordem judicial, a autorização de acesso é concedida pela própria pessoa do abordado?

Bem, neste caso, há de se considerar, inicialmente, que o abordado não tem o dever de proceder ao desbloqueio do aparelho para que o policial possa averiguar a sua inocência, a qual deve ser sempre presumida. Sem embargos, o consentimento espontâneo, livre e consciente do abordado, por certo, é suficiente para autorizar o acesso (difícil, conquanto, é vislumbrar situações na prática em que não haja qualquer vício nessa “concessão”).

Assim, salvo por situação excepcional, em que o acesso imediato aos dados do celular se faça imprescindível para evitar um risco iminente de perecimento de bem jurídico tutelado, não está autorizado o agente público a acessar os dados constantes do celular sem ordem judicial para tanto ou, em última análise, sem a liberação consciente e voluntária da pessoa do abordado.

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1 Clique aqui

2 “Esta Corte  Superior  de Justiça considera ilícita o acesso aos dados  do  celular  extraídos  do  aparelho  celular  apreendido  em flagrante,   quando   ausente  de  ordem  judicial  para  tanto,  ao entendimento  de  que,  no  acesso  aos  dados do aparelho, se tem a devassa  de dados particulares, com violação à intimidade do agente.” (STJ, 6ª Turma, HC 459824/SP, Rel. Min. Joel Ilan Parcionik, DJe 22.04.2019). 

3 v. também: STJ, 6ª Turma, AgRg no HC 542940/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe 10.03.2020; STJ, 5ª Turma, RHC 61.745, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 07.11.2016.

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*Matheus Andrade Braga é presidente da Comissão de Estudos em Direito Penal da OAB/CE. Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Advogado Criminalista. Sócio do escritório Alcimor, Silveira, Figueiredo, Sá Advogados, com sede em Fortaleza/CE.

 

 
 
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