No início da pandemia decorrente do covid-19, quando os efeitos do isolamento social começaram a serem sentidos nos mais diversos setores econômicos, muito se questionou sobre o que poderia ser feito, principalmente no tocante aos contratos, sejam eles administrativos ou privados.
À época, abril/20, publicamos o artigo “Contratos vs coronavírus: o que fazer?”, no qual exploramos as possibilidades já existentes na legislação brasileira, tendo sempre em vista a manutenção da relação contratual e a solução consensual como a opção mais benéfica, ao menos, na maioria dos casos.
Após alguns meses de pandemia, é possível encontrar alguns planos mais consistentes e projetos de lei em tramitação, como o projeto de lei 2.139/20, que se encontra no Plenário do Senado Federal, e o projeto de lei 1.179/20, remetido à sanção presidencial.
Mas o que esses projetos nos trazem de útil diante de tantas normas que vêm sendo editadas nesse curto período de tempo?
Pois bem. O projeto de lei 2.139/20 institui um regime jurídico emergencial e transitório para mitigar os efeitos resultantes do estado de calamidade pública especificamente sobre os contratos administrativos, de qualquer gênero e objeto, desde que estejam vigentes ao tempo da publicação da lei (artigo 1º).
Interessante perceber que na justificação do referido projeto de lei, o autor reconhece a existência de normas aplicáveis ao presente momento, como a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB (decreto-lei 4.657/42), mas reforça que as regras existentes podem não ser suficientes, tendo em vista a especificidade das circunstâncias que estamos vivenciando.
Por esse motivo, o autor da proposição, o senador Antonio Anastasia, afirma que o projeto de lei foi desenvolvido com o intuito de facilitar o emprego de medidas por parte do gestor público e preservar a segurança jurídica exigida tanto pelo contratante quanto pelo contratado.
De modo geral, o projeto de lei 2.139/20 valoriza a conservação dos contratos administrativos por meio da readequação dos termos, pois entende que, ao proteger as contratações públicas, garante o cumprimento da finalidade primordial da Administração, que é atender o interesse público primário. E, do mesmo modo, permite a manutenção da atividade empresarial e o cumprimento da função social das empresas, imprescindível para sustentar a economia neste momento de crise.
Nessa lógica, no intuito de preservar a relação contratual, o contratado poderá apresentar - voluntariamente ou a pedido da Administração Pública - um plano de contingência que contenha propostas para o enfrentamento das dificuldades e vise a conservação do objeto essencial do contrato.
As propostas, é claro, precisam vir acompanhadas de justificativas econômicas que amparem as diretrizes contidas no plano, bem como de evidências capazes de ilustrar os possíveis danos caso haja a extinção antecipada do contrato (art. 2º, §2º).
A partir dessas diretrizes, a Administração poderá revisar ou suspender, por tempo determinado, algumas das obrigações contratuais ou, até mesmo, modificar a metodologia de execução contratual (artigo 2º, §1º, c/c artigo 3º), o que denota uma grande flexibilização por parte do legislador, já que, em tempos “normais”, as referidas alterações podem configurar um objeto completamente distinto daquele inicialmente concebido, fato que viola as disposições da lei 8.666/93 e contraria o entendimento do Tribunal de Contas da União (TCU).
Para o TCU, as modificações contratuais que descaracterizam o objeto, sejam elas de caráter qualitativo ou quantitativo, violam o princípio da legalidade e frustram a diretriz de obter a proposta mais vantajosa para a Administração Pública.
Isso ocorre, pois, se no momento da licitação fosse especificado o objeto que acabou sendo alterado substancialmente, a Administração poderia ter atraído um número maior de licitantes interessados, aumentando a competitividade do certame e, por conseguinte, propiciando a oportunidade de obtenção de propostas mais vantajosas.
Aliás, a descaracterização do objeto também pode ser verificada quando o texto do projeto prevê que o Administrador poderá “promover a alteração das especificações e quantidades do objeto contratual” (artigo 3º, inciso III).
Ultrapassada essa questão, percebe-se, ainda, que o projeto atenua o “poder-dever” de agir da Administração quando admite a suspensão da exequibilidade de sanções previstas em contrato (art. 3º, inciso I).
É evidente que a implementação de todas essas medidas acaba por afetar sobremaneira a distribuição dos ônus contratuais, motivo pelo qual o projeto também destaca que a recomposição deve ter em vista a preservação do equilíbrio econômico-financeiro, de modo que os interesses de ambas as partes sejam atendidos (artigos 6º e 7º).
Essa distribuição, por sua vez, impacta diretamente na matriz de riscos originalmente projetada para o contrato, preocupação que não foi negligenciada pelo legislador (art.6º, §2º), uma vez que previu a adequação dos riscos ante a repactuação econômico-financeira que ocorrer de forma consensual.
Inclusive, prestigiando a solução consensual, o projeto prevê que os contratos administrativos poderão ser aditados a fim de incluir outros mecanismos de resolução de conflitos, como a arbitragem e a mediação, o que se relaciona com a ideia de cooperação, fundamental no momento pelo qual passamos e já abordada no material anteriormente publicado (artigo 10).
Logicamente que todas as providências tomadas com o respaldo do regime jurídico emergencial e transitório deverão ser registradas no processo de contratação, divulgadas no sítio eletrônico do contratante e, igualmente, levadas ao conhecimento do Tribunal de Contas (artigo 11).
Essa previsão, além de dialogar com o princípio da publicidade, está em harmonia com as ações dos órgãos de controle e da sociedade civil organizada relatadas no artigo “Responsabilidade compartilhada na crise: cooperação técnica, transparência e controle social”, que têm como objetivo aliar a transparência dos dados com o controle social.
De forma geral, o projeto de lei 2.139/20 parece cumprir aquilo que se propõe, já que se mostra atento à realidade e às implicações práticas decorrentes da crise.
Todavia, ao conferir tanta elasticidade ao instrumento contratual, o Administrador deve ter cuidado para não descaracterizar a contratação e ferir o mandamento constitucional que determina a obrigatoriedade de licitar, ou, ainda, causar dano ao erário e aos administrados.
Noutro prisma, o projeto de lei 1.179/20, de maneira menos sistemática, apresenta disposições de caráter emergencial e transitório referentes às relações jurídicas privadas.
O projeto reconhece as consequências da pandemia como caso fortuito ou força maior ao citar o artigo 393 do Código Civil e, de modo expresso, afirma que os efeitos jurídicos advindos desse reconhecimento não serão aplicados de forma retroativa (artigo 6º).
Nessa linha de delimitação, agora, no tocante à aplicação das regras previstas no Código Civil relativas à teoria da imprevisão, o texto exclui algumas situações do conceito de “fatos imprevisíveis”, como o aumento da inflação e a desvalorização do padrão monetário (artigo 7º).
Em termos de prazos, considera impedidos ou suspensos, de acordo com o caso, os prazos prescricionais e decadenciais, a partir da entrada em vigor da lei até a data de 30.10.20, marco que é utilizado pelo projeto como limite para a aplicação de muitas das suas disposições (artigo 3º).
Saindo do campo dos contratos em geral e adentrando na esfera dos contratos de locação, regidos pela lei 8.245/91, o texto proíbe a concessão de liminares para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo propostas a partir de 20.03.20 (artigo 9º).
Há, ainda, um ponto que afeta tanto as relações de consumo quanto aquelas firmadas entre empresários que é a suspensão da eficácia dos artigos da lei 12.529/11 relativos às hipóteses que caracterizam infração da ordem econômica (artigo 14).
A exposição de alguns dos seus artigos evidencia que, na verdade, o projeto de lei 1.179/20 mostra-se a uma verdadeira “colcha de retalhos”, abordando os mais variados temas pertinentes aos vínculos de cunho privado, sendo uma clara tentativa de regular as relações jurídicas de um modo geral.
E, quando o projeto entra em pauta, a par de todas a disposições citadas, a que mais ganha destaque é a redação do artigo 20 que altera a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18).
Isso porque, inicialmente, o PL 1.179/20 prorrogava a vigência da lei 13.709/18 (LGPD) para janeiro de 2021 e a aplicação das sanções para agosto do mesmo ano. Contudo, enquanto o projeto tramitava, a medida provisória 959/20 foi editada e postergou a vigência para 03 de maio de 2021, motivo pelo qual, o texto do PL sofreu uma redução ao ser votado na Câmara dos Deputados, passando a prever somente a prorrogação da vigência dos artigos 52, 53 e 54, relativos às sanções por descumprimento, para 1º de agosto de 2021 (Para saber mais sobre o tema: clique aqui).
Conclui-se, desta forma, que, diferente do projeto de lei 2.139/20, o PL 1.179/20 apresenta uma série de normas fragmentadas a fim de alcançar os campos mais afetados pela pandemia e não um efetivo itinerário para salvaguardar as relações durante o período de calamidade pública.
Portanto, muito embora ambos os projetos sejam intitulados de “regime jurídico emergencial e transitório”, como se percebe, o conteúdo e o impacto sobre as relações jurídicas se concretizam de maneiras muito distintas.
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*Marina Ferraz de Miranda é advogada, graduada em Direito pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina/CESUSC (2016). Administradora de Empresas. Mestre em Finanças e Desenvolvimento Econômico. Especialista em Processo Civil. Pós-graduanda em Compliance e Gestão de Riscos.
*Tayná Tomaz de Souza é graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), voluntária no Observatório Social de Florianópolis, membro externo da Comissão Parlamentar Especial pela Transparência da Administração Pública de Florianópolis.