O setor aéreo, antes da notificação do primeiro caso de Covid-19 no Brasil, já dava sinais de sufocamento em razão da crise econômica instalada no país deteriorada, ainda mais, com o anúncio do pedido de recuperação judicial da concorrente Avianca. A discussão da entrada de empresas de low-cost já tinha se iniciado e o burburinho no governo e em todo o setor já eram visíveis nos noticiários.
É inegável que a pandemia mundial agravou, ainda mais, a situação financeira das empresas aéreas, inclusive, com pedido de recuperação judicial da LATAM nos Estados Unidos, tendo como resultado, soluções como acordos de compartilhamentos que se intensificaram trazendo seríssimas preocupações anticoncorrenciais.
Semana passada foi a vez das empresas aéreas Azul e Latam anunciarem um acordo de compartilhamento de voos no mercado brasileiro. Segundo informações da imprensa, tal acordo incluiu, ao menos, 50 rotas que não tinham sobreposição de oferta e com origem ou destino nas cidades de Brasília, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre, Campinas Curitiba e Guarulhos, além do compartilhamento de programas de fidelidade, contando com 12 milhões de associados no programa Tudo Azul e 37 milhões e membros da Latam Pass, podendo os consumidores acumularem pontos no programa de sua escolha.
A alegação das empresas com relação a escolha dos parceiros foi no sentido da complementariedade das malhas aéreas e da maior quantidade de destinos internacionais da Latam. Apesar das explicações concedidas, a preocupação do ambiente concorrencial no setor aéreo agigantou-se, sobretudo, levando-se em consideração as participações de mercado de ambas as empresas que no ano de 2018 foram de 30,4% da Latam e 22,7% da Azul, conforme informações da ANAC.
No Inquérito Administrativo em trâmite no Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE n. 08700.005131/2019-161, a Azul anunciou que a Gol estaria supostamente abusando de seu poder de mercado por meio da celebração de acordos de interline e codeshare com as companhias regionais VoePass Linhas Aéreas S/A (“VoePass”), antiga Passaredo e com a Two Flex Taxi Aéreo Ltda (“TwoFlex”). O objetivo, segundo a denúncia, seria explorar os slots dessas companhias no aeroporto de Congonhas/SP, recebidos após a redistribuição dos slots da Avianca com a sua saída do mercado.
Em que pese o CADE ter definido na análise do Ato de Concentração nº 08700.002529/2017-39, de interesse da TAM Linhas Aéreas e Qatar Airways, que os acordos de codeshare não eram considerados atos de concentração e, portanto, não necessitavam ser notificados ao CADE, grande parte desses acordos têm como objetivo a conquista de slots nos principais aeroportos.
Considerando a periclitante situação financeira das empresas aéreas antes do início da pandemia do Covid-19 e as demais situações mercadológicas atuais questiona-se se estaríamos diante de um efeito Tostines. Foi o advento da Lei nº 14.010/2020 (PL 1.179/20) que gerou incentivos para a parceria anunciada entre a Azul e a Latam ou foi a necessidade de união de empresas em tempos de crise econômica agravadas pela pandemia do coronavírus que gerou incentivos para a promulgação da lei 14.010/20?
Assim como o efeito Tostines, também não é possível afirmar se foi a lei que gerou os incentivos para o acordo ou a possibilidade de acordo entre as empresas é que gerou a criação da lei. O que se sabe na verdade, inclusive já anunciado pelas empresas na imprensa, é que há uma probabilidade nada desprezível desse acordo de codeshare ser o pontapé inicial para processo de fusão entre as empresas.
Independentemente de que lado do efeito Tostines esteja o mencionado acordo, o fato é que a cronologia dos atos faz com que o prato da balança pese mais em favor da hipótese de que há uma relação de causa e efeito entre a Lei 14.010/20 e a elaboração do acordo entre as empresas do que o contrário. É importante lembrar que o PL 1.179/20 foi apresentado na Câmara dos Deputados em 13/4/20, a sua conversão na lei 14.010/20 ocorreu em 10/6/20 e a data da operação de compartilhamento Azul/Latam foi anunciada em 16/6/20.
Conquanto o acordo de codeshare não seja de notificação obrigatória ao CADE, a sua realização associada com ao disposto no art. 14 da lei 14.010/20, de que não precisarão submeter ao CADE operações de joint-venture, contratos associativos e consórcios enquanto estiver em vigor o decreto 6/20, gera os incentivos ideais para que as duas empresa se associem via joint-venture.
Apesar da lei 14.020/20 prever a possibilidade de notificação da operação posteriormente (à posteriori), os efeitos anticoncorrenciais nesse caso já terão gerado frutos no setor aéreo brasileiro, tendo em vista que informações concorrencialmente sensíveis já terão sido trocadas.
Ainda que se possa pugnar por uma possível reversão da operação em momento posterior com imposição de restrições comportamentais e estruturais, esse ato somente terá efeitos na esfera do direito societário, por meio de algum tipo de alienação de ativos, mas nunca na esfera do direito concorrencial.
É preciso lembrar que a concorrência e os seus efeitos sobre a economia são subliminares e nem sempre são perceptíveis a “olho nu”, de maneira que a produção de efeitos negativos em sede de ato de concentração não notificado foge ao alcance e ao controle de qualquer norma jurídica aplicada após o fato consumado. A troca de informações sensíveis entre concorrentes e o compartilhamento de slots sem análise prévia do CADE é como o vazamento de água, pode-se até escutar o seu barulho, mas não se sabe o tamanho do estrago.
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1 Nota Técnica n. 13/2020/CGAA4/SGA1/SG/CADE proferida nos autos do Inquérito Administrativo n. 08700.005131/2019-16.
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