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A causa e o efeito da recuperação judicial em tempos de pandemia

Busca-se entender a causa por meio das ações que antecedem a ação final que foi processar a questão, pois precisa se compreender a racionalidade das ações.

24/6/2020

A retórica da pandemia leva a crer que as recuperações judiciais, deflagradas no período da quarentena, têm como causa a covid-19, entretanto o que se busca analisar não é a causa em si, mas as ações que motivaram a distribuição do pedido de recuperação judicial e entender através da pesquisa empírica as ações que desmotivaram a grande maioria das empresas em não buscar o Poder Judiciário.

Busca-se entender a causa por meio das ações que antecedem a ação final que foi processar a questão, pois precisa se compreender a racionalidade das ações. Não se trata de uma indução simples e pura, como foi feito anteriormente pelas agências de fomento, de que a covid-19 seria a causa e o efeito seria a busca desenfreada pelo Poder Judiciário para conter a crise.

O artigo pretende mostrar que as agências de fomento muitas vezes são induzidas a erros pelo sistema operacional dos Tribunais. Dessa forma, com mais de noventa dias de decretação oficial de lockdown parcial na cidade do Rio de Janeiro, que suspendeu as atividades não essenciais das atividades, conforme decreto 46.973, busca-se apresentar dados concretos por meio de uma pesquisa que demandou análise de processo a processo na cidade do Rio de Janeiro e entender a racionalidade do agente econômico no período de 20.03.20 a 19.06.20.

As ações dos agentes políticos, com base no pensamento aristotélico de causa e efeito, fizeram com que se buscassem medidas legais que pudessem conter a crise do judiciário, prevendo inúmeras recuperações judiciais e falências e, principalmente com a introdução de institutos no projeto de lei 1.3971, como a negociação preventiva, a fim de conferir fôlego para as empresas diante do lockdown parcial, que atingia quase que a totalidade das cidades no Estado brasileiro.

O número de casos da covid-19 em todo o Brasil, agregado à falta de informações sérias e precisas, motivou ações subjetivas, que se fundamentavam em um contexto de confusão e insegurança, tanto de um poder, que se desintegrava, como da falta de mecanismos jurídicos, que pudesse conter a epidemiologia econômica que crescia vertiginosamente no Brasil e no mundo. Diariamente eram noticiados o fechamento de empresas e pedidos de recuperação judicial, como o da Hertz e da Latam2 no Tribunal novaiorquino, que mostravam uma crise sem precedentes, ou com precedentes, como já pronunciou o ministro Moura Ribeiro se referindo à gripe espanhola. Porém, não há dúvida que é grave!

Com base nessas premissas iniciais, verificou-se que experiências de outros países foram importadas, como no caso da negociação preventiva prevista no PL 1397, amplamente discutida para conter a crise de judicialização, anunciada preventivamente em virtude da covid-19. Cada vez mais métodos autocompositivos ganhavam espaço em discussões, lives e artigos, como uma forma de conter a demanda judicial.

Então, passados três meses da decretação oficial da pandemia, buscaram-se analisar os processos de recuperação judicial que entraram na Comarca do Rio de Janeiro, para saber se, diante da crise epidemiológica, os agentes econômicos necessitariam de um tratamento mais prolongado com o auxílio do Poder Judiciário ou se amargariam seus prejuízos financeiros de forma assintomática. O termo agente econômico foi utilizado nesse contexto, porque entre as pessoas jurídicas, que pleitearam a recuperação judicial, uma delas tem natureza não empresária.

Foi baseado nesse pensamento analógico com a covid-19, que a pesquisa de campo se tornou essencial para se entender um pouco sobre a saúde das empresas no judiciário carioca. Daí dos 1368 (mil trezentos e sessenta e oitos) processos pesquisados na página do Tribunal de Justiça, verificou-se que nas 7 (sete) varas foram propostas apenas 3 (três) recuperações judiciais e nenhuma recuperação extrajudicial. E os demais processos teriam qual natureza? A maior parte desses processos é de habilitação de crédito que são cadastradas incorretamente pelos advogados no sistema. Nesse sentido, o judiciário carioca padece de um problema sério de subnotificação, conforme já foi objeto de pesquisa por um dos autores3.

É importante salientar que essas recuperações judiciais teriam sido distribuídas da seguinte forma: uma na terceira vara empresarial, da empresa de ônibus Expresso Pégaso, outra na quarta vara empresarial, da João Fortes Engenharia e a terceira do Instituto Cândido Mendes foi distribuído na 5ª vara empresarial.

As agências de fomento sinalizaram uma corrida pelo judiciário brasileiro no meses de março e abril e vários artigos foram feitos com base na crise já deflagrada, mas o que se vê na prática do judiciário carioca são números inexpressivos de recuperações judiciais. Esses números demonstram que caso o PL emergencial 1.397 for aprovado, o instituto da negociação preventiva, previsto no artigo 6º, já perderia a eficácia por ser um instrumento pré crise, até porque a crise já foi deflagrada pelo tempo. Esse instituto é eficaz em países como a França, pois lá ele é aplicado como uma fase efetivamente anterior a um processo de estágio avançado à crise.

Uma vez analisados os números há a necessidade de se entender a racionalidade das ações anteriores desses agentes econômicos, entender a natureza das sociedades que pleitearam a recuperação judicial e verificar se as causas dos pedidos decorrem da covid-19, pois muito se alerta quanto aos efeitos nefastos para a microempresa e empresa de pequeno porte.

Constatou-se que o Instituto Cândido Mendes, uma associação com mais de cem anos que, embora, a princípio, não ostentasse a natureza de sociedade empresária teve sua recuperação judicial concedida pela juíza da 5ª Vara Empresarial e confirmada pela 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, com base no entendimento de que embora não registrada como sociedade empresária praticava atividade empresarial como se o fosse e a lei não elencava as associações dentro do rol de proibições previsto no artigo 2º da lei 11.101/05. É importante ressaltar que conforme consta nos autos, a deliberação pelo pedido de recuperação já tinha ocorrido no dia 03 de março de 2020, antes mesmo da covid-19 suspender as atividades desse agente econômico.

Já a João Fortes Engenharia, um verdadeiro gigante do setor, veio com 62 (sessenta e duas) sociedades do grupo em litisconsorte ativo, buscando alcançar o benefício da recuperação judicial no dia 27.04.20. Longe de uma realidade de pequeno empresário, na sua inicial informa que nos anos de 2016, 2017 e 2018 tinha enfrentado sérias crises, inclusive tendo cinco requerimentos de falências anteriores distribuídos por esses períodos, além de constar como executada em inúmeras execuções de título extrajudicial, cujas penhoras restaram infrutíferas, informações estas que demonstram cabalmente que o grupo econômico já se encontrava em crise há alguns anos.

Não se trata de uma recuperação judicial deflagrada pela covid-19, mas verifica-se que, pela quantidade de autores e documentos juntados, não se trata de uma recuperação judicial que foi planejada às pressas em decorrência dos efeitos da crise do covid-19.

Por fim, as sociedades Expresso Pégaso Eireli e Auto Viação Palmares Ltda, duas gigantes no ramo de transporte público, também pleitearam a recuperação judicial no dia 12.05.20 em litisconsórcio ativo. Outras empresas de ônibus já entraram com a recuperação judicial anteriormente, pois todas padecem do mesmo problema há anos, com o congelamento das tarifas de ônibus, concorrência com o transporte ilegal e alternativo, o consórcio do BRT, o acordo operacional de bilhetagem e o covid-19 caracteriza mais um dos fatores de agravamento da crise.

Um dos fatores que denota a crise pré-existente dessas empresas é que quando da propositura da ação, as recuperandas do transporte público possuíam um Plano de Execução Centralizada, regulado pelo Tribunal Regional do Trabalho, o qual somente poderia ser aderido pela empresa que possuía um alto grau de endividamento trabalhista o que, por si só, já denotava um passivo descoberto trabalhista.

O que se constatou pela análise pormenorizada de cada um dos processos de recuperação judicial é que nos noventa dias de quarentena, em que foram suspensas as atividades não essenciais, nenhum agente econômico era microempresa ou de pequeno porte. Daí, pergunta-se: será que preferiram não entrar com a recuperação judicial e buscar o auxílio do judiciário? Será que estão esperando não ter mais caixa para buscar a ajuda? Com tantos fechamentos sendo anunciados, será que estariam amargando prejuízos de forma assintomática à tutela estatal? Um coisa é certa: não estão no Poder judiciário carioca!

Um ponto muito importante que o artigo chama a atenção é em relação ao tempo certo da recuperação judicial, pois as empresas para manterem a continuação da atividade econômica necessitam de dinheiro para mover o fluxo de caixa e para conseguirem se soerguer necessitam apresentar viabilidade econômica. Irão negociar preventivamente já com a crise em estágio avançado ou já estão o fazendo extrajudicialmente? Tem que se tomar cuidado, caso o PL 1.397 seja aprovado com a crise já deflagrada, para que a crise da empresa não se torne uma crise do empresário e a causa das recuperações judiciais seja a intervenção do Estado.

Diante da crise pretérita que já fundamentavam as ações racionais dos agentes econômicos, que pleitearam a recuperação judicial no judiciário carioca, o que se constata é que a covid-19 pode ser um elemento de agravamento da crise, mas não é a sua causa, pelo menos não até agora!

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1 Encontra-se no Senado e com 14 (quatorze) emendas propostas.

3 Artigo apresentado pela Dra. Taíssa Romeiro, na live transmitida pelo IBDE, no dia 16 de junho de 2020, às 19h, em que apresentou artigo sobre a: “As subnotificações no Judiciário Carioca e o PL Emergencial nº 1397”.

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*Taíssa Romeiro é sócia da Romeiro Advogados. Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF. Professora da UFRRJ. Administradora Judicial e integrante da Comissão de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falências da OAB/RJ.




*Rafael Cotta é sócio do Navega Advogados. Pós-graduado pela UERJ. Administrador Judicial e coordenador da área de Falência e Recuperação de Empresas da ESA da OAB/RJ.


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