No século passado, as correntes contratualistas e institucionalista se confrontaram sobre os fundamentos do interesse societário válido. Tullio Ascarelli, um dos grandes expoentes da teoria contratualista, defendia que a vontade da sociedade seria uma espécie de vontade dos sócios reunidos em conclave1. Walther Rathenau, por sua vez, sustentava uma teoria institucionalista, segundo a qual a sociedade deveria cumprir um papel precipuamente público.
Esse embate encerra 2 (duas) questões de importância prática: por um lado, os fundamentos e pressupostos do ato constitutivo de sociedade e, por outro, os fundamentos da própria personalidade jurídica que se autonomiza do seu instrumento germinador, que é a aptidão da sociedade para obter direitos e contrair obrigações2.
O contrato plurilateral é a expressão do liberalismo jurídico societário, enquanto doutrina que delega primordialmente ao mercado o papel de regulação societária, tendo na figura do sócio controlador, a priori, o verdadeiro comandante do dia a dia da sociedade, porque vocacionado para melhor proteger o patrimônio e a atividade social, enquanto pessoa que aportou a maior quantidade de recursos no projeto societário. Em última análise, a vontade societária seria a própria expressão do controlador.
Por outro lado, o desenvolvimento do institucionalismo societário teve por origem a compreensão de que as sociedades, comandadas por seus controladores, não seriam capazes de atender aos interesses que seriam merecedores de tutela jurídica. Embora erigida em período de avanço de um autoritarismo na Europa, o institucionalismo societário acabou ganhando força e teve seu desenvolvimento até mesmo na doutrina norte-americana, com o reconhecimento de valor jurídico da figura dos stakeholders, em contraposição aos shareholders.
A recepção do direito societário brasileiro das teorias contratualista e institucionalista do direito societário por meio da lei federal 6.404/76 (“Lei das Sociedades por Ações” ou “LSA”) consagrou a vitória de uma espécie de corrente contratualista mitigada. Por um lado, o artigo 121 da LSA3 estabeleceu uma soberania da decisão assemblear, a qual pode versar sobre “todos os negócios relativos ao objeto da companhia”; por outro, o artigo 116, parágrafo único, da LSA4 atribui à figura do acionista controlador também zelar pelos interesses externos à sociedade.
Ainda que se possa discutir a eficácia do referido artigo 116, parágrafo único, da LSA, porque a legislação societária carece de instrumentos diretos que permitam a tutela dos interesses externos à sociedade, é certo que o legislador inclui, como dever do acionista controlador, a sua responsabilidade não só com o interesse dos acionistas minoritários, mas também com os trabalhadores e a comunidade que a rodeia.
Diante disso, a questão que se coloca aos juristas do pós-pandemia é se os impactos sociais e econômicos decorrentes do coronavírus no país seria suficiente para chacoalhar as estruturas do direito societário, de modo a se rever as suas bases fundamentais. O ex-presidente da República Federativa do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, por ocasião de uma Live realizada em meio à crise sanitária, manifestou expressamente que “esse monstro está permitindo que os cegos comecem a enxergar que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises”5.
Sem adentrar em questões políticas da referida fala, que devem ficar em seu campo próprio, é fato que o ex-presidente manifestou uma preocupação séria, do ponto de vista econômico, que deve ser avaliada também sob o aspecto dos fundamentos do direito societário. Ou seja, a pandemia e seus impactos sociais e econômicos possuem a capacidade de alterar as estruturas fundamentais do direito societário ou não e qual seria o papel do Estado?
A aplicação do direito não se dá de modo puramente abstrato, mas sim em concreto, em observância aos fatos, de sorte que a mudança do paradigma social e econômico pode provocar mudanças no esquema de aplicação do direito. Os próprios constitucionalistas falam, como critério de modificação da Constituição Federal, da mutação constitucional, a qual ocorre sem a votação de emenda constitucional com alteração do seu texto.
Por isso, é possível reconhecer que as estruturas do direito deverão ser absorvidas para solução dos novos problemas e das novas questões, como o controle da pandemia, melhoria das condições da saúde pública e redução da aglomeração. Esse reconhecimento, contudo, jamais pode significar que o sistema jurídico societário deva ser revisto.
Em função do paradigma econômico brasileiro, o qual lega a atividade econômica primariamente aos agentes do mercado, permitindo ao Estado agir apenas de modo subsidiário, isto é, quando o exercício da atividade empresarial pelos particulares for inviável ou ineficiente, conforme artigo 37, caput6, e 1737 da Constituição Federal, nenhuma lei infraconstitucional poderá desnaturar a estrutura do interesse societário.
As sociedades sempre serão dos sócios e a decisão dos atos jurídicos a serem praticados por ela sempre serão, em último caso, tomadas por eles — ainda que indiretamente, mediante influência sobre os administradores. O legislador poderá, quando conveniente, por meio de lei específica, estabelecer o modo como os sócios deverão observar os demais agentes implicados no cotidiano societário, como esclarece o artigo 116 da LSA.
Assim, ainda que se reconheça a importância do papel do Estado na atividade empresarial das sociedades, a sua intervenção somente será possível através da aprovação segura de normas especiais próprias, votadas no Congresso Nacional, em respeito ao devido processo legislativo e ao Estado Democrático de Direito.
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1 Sobre a teoria do contrato plurilateral, ASCARELLI, Tulio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Societário. São Paulo: Saraiva, 2009.
2 Para uma compreensão do institucionalismo societário, COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2013; e SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria critico-estruturalistica do direito comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015.
3 “Art. 121. A assembleia-geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento.”
4 “Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.”
6 “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)
7 “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.”
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