O centro do debate público hoje parece ser as famigeradas fake news. Há hoje uma legítima preocupação em se combater a difusão da mentira no meio jornalístico. Ocorre que, infelizmente, a discussão vem se tornando muito menos técnica do que política, e hoje o que se vê é que muitos querem não tanto combater as fake news quanto atingir inimigos políticos e desafetos de diferentes ideologias por meio da perseguição e da censura, usando a “guerra” contra as fake news como pretexto. É preciso, assim, identificar com precisão o fenômeno de que ora nos ocupamos para, aí sim, poder elaborar as conclusões devidas.
O conceito de fake news não oferece dificuldade: “fake news indica histórias falsas que, ao manterem a aparência de notícias jornalísticas, são disseminadas pela Internet (ou por outras mídias).”1 São, em última análise, notícias deliberadamente falsas. A dificuldade reside em se estabelecer, sem possibilidade de erros, o que é uma notícia falsa, os meios para se identificar essa falsidade e o encarregado de fazê-lo, e, não menos importante, quem é que, deliberadamente, a engendra.
Primeiramente, percebe-se que muitas pessoas incautas não se atentaram para o fato de que a imputação das fake news às mídias digitais atende aos interesses dos grandes conglomerados tradicionais da imprensa, que perderam o monopólio da informação com o surgimento da internet. Com efeito, alega-se que o fenômeno das fake news é algo que surgiu com as mídias de internet, e que as únicas fontes confiáveis de informação seriam as mídias tradicionais, assim entendidas a imprensa televisiva e a impressa. Existe um fenômeno mais sutil que emerge da liberdade de imprensa que desmente todo esse raciocínio.
Para entender esse fenômeno, torna-se imprescindível viajar aos EUA do séc. XIX junto com Tocqueville, que testemunhou o verdadeiro significado da liberdade de imprensa naquele país:
“Nos Estados Unidos, não há patente para os impressores, selo, nem registro para os jornais; (...). Daí resulta que a criação de um jornal é empresa simples e fácil. Poucos assinantes bastam para que o jornalista possa cobrir suas despesas. Por isso, o número de escritos periódicos ou semiperiódicos, nos Estados Unidos, está além do imaginável. Os americanos mais esclarecidos atribuem a essa incrível disseminação das forças da imprensa seu parco poder. É um axioma da ciência política, nos Estados Unidos, que o único meio de neutralizar os efeitos dos jornais é multiplicar seu número.”2
No Brasil, nunca desfrutamos dessa liberdade de imprensa...até o aparecimento da internet. A internet, para nós, produziu aquele estado de fato que existia no EUA do séc. XIX: a criação de um jornal se tornou algo simples, fácil e imediato. Em questões de horas uma pessoa, que sequer precisa ser jornalista, pode criar um blog, um jornal digital ou um canal no Youtube, e, a partir daí, passar a poder influenciar a opinião pública tanto quanto e as vezes até mais do que as mídias tradicionais. Isso diminuiu de forma irreversível o poder que as grandes mídias tradicionais tinham. Elas detinham, por força de um modelo de concessão estatal3 que sustenta oligopólios e dificulta a entrada de pequenas forças comerciais nesse setor, a exclusividade de informar e desinformar ao seu bel prazer. Antigamente, para o cidadão obter notícias ele tinha que ou ligar a TV, ou comprar um jornal na banca. Daí o poder considerável que as grandes mídias tradicionais tinham de manipular e guiar a opinião pública com notícias não necessariamente verdadeiras. O judicioso Tocqueville percebeu que é justamente a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos que atribui à imprensa um poder ilimitado de manipulação sobre o público. “Toda potência”, disse o francês, “aumenta a ação de suas forças à medida que centraliza sua direção.”4 Quando você tem poucos meios de comunicação em um país, isso produz a centralização da direção de suas forças, isto é, das informações que divulgam. “Quando um grande número de órgãos da imprensa consegue caminhar no mesmo sentido”, insiste Tocqueville, “sua influência se torna, com o tempo, quase irresistível, e a opinião pública, atingida sempre do mesmo lado, acaba cedendo a seus golpes.”5 Esse poder de forjar a opinião pública num único sentido é impossível hoje à imprensa, pois o poder de informar o público se encontra hoje difundido em um número cada vez mais crescente de blogueiros, youtubers e mídias digitais.
Na verdade, o exagero, a mentira e a dissimulação sempre existiram. A internet não inventou as fake news. O que ela fez foi aumentar o número de notícias e informações que se chocam entre si em seu conteúdo, daí surgindo um benefício inestimável para a verdade. Explico. As variadas versões de um mesmo fato, quando entram em pública colisão, impedem com que uma delas ingresse instantaneamente na opinião pública como uma verdade absoluta, pois o público verá com certa reserva uma versão pelo simples fato de ter diante de si outra com conteúdo exatamente oposto. Gustave Le Bon chegou a observar, em sua importante obra Psicologia das Multidões, que é “a recente difusão da imprensa, que faz passar incessantemente sob os olhos as opiniões mais contrárias. As sugestões produzidas por cada uma delas são logo destruídas por sugestões opostas.”6 Será que as pessoas não percebem, como percebeu John Milton no séc. XVII, que “todas as opiniões, todos os erros são – uma vez conhecidos, lidos e comparados – de grande serviço e ajuda na obtenção da verdade?”7 Nesse contexto, a presença contínua de informações que se contradizem diante do público permite as pessoas a se precaverem quanto às informações que recebem, e as convidam a insistir na busca pela verdade dos fatos.
Há, nesse contexto, um fenômeno mercadológico que contribui nesse processo: assim como uma empresa que tem muitos concorrentes no mercado é forçada a vender honestamente seu produto, sem vícios, sob pena de atrair má reputação para si e perder clientes, um jornal, mutatis mutandis, também é forçado a “vender seu produto” de maneira honesta e sem vícios. Se o produto que o jornal vende é o produto “notícia”, ele perderá clientes ao se tornar conhecido, em comparação com inúmeros outros concorrentes, como um mentiroso, aquele que “vende” notícias falsas, ou seja, um produto viciado. E uma vez que nenhum desses jornais e mídias detêm o monopólio da informação, sucede daí que também nenhum deles terão condições de manipular a verdade a seu bel prazer, pois não terão como assegurar o êxito da sua falsidade, que corre o risco de ser desmascarada ao menor sinal de confronto com uma informação oposta. Isso gera uma tendência nas mídias e jornais de trilhar na direção da verdade, pois, se caminharem no sentido oposto, correrão o risco de se verem associados às fake news e, no fim das contas, de perder credibilidade. O resultado disso é que a verdade ganha força e visibilidade com todo esse processo, pois os jornais, nesse processo concorrencial em busca por fidedignidade e, portanto, por mercado, clientes e seguidores, buscarão sempre “vender o melhor produto”, a saber, a notícia verdadeira e fiel aos fatos. O próprio excesso de liberdade de imprensa, portanto, corrige os abusos iniciais que ela produz. “Se for do interesse de um indivíduo difundir máximas ruins”, observou o francês Benjamin Constant, “será do interesse de milhares de outros refutá-las.”8 Se a liberdade de imprensa permite que pessoas mal-intencionadas publiquem notícias falsas, permite pari passu que as bem-intencionadas denunciem essa falsidade. Basta que estas últimas gozem da mesma liberdade que as primeiras para publicar. Fica fácil perceber, assim, porque é conveniente às mídias tradicionais atribuírem às mídias digitais a nódoa de fake news, como se a mentira jornalística fosse um fenômeno ligado a estas últimas. Com isso, as mídias tradicionais pretendem reivindicar para si o monopólio da verdade e, por consequência, atribuir a todo os meios alternativos de comunicação a pecha de fake news, com o objetivo oculto de se livrar da concorrência por meio da censura. E mais: o interesse de se livrar das mídias digitais, além de ser um interesse das grandes mídias tradicionais, também o é primordialmente do governo, pois o diminuto número delas torna mais fácil ao governo, financeira e logisticamente, “domesticar”, por assim dizer, a imprensa.
Noutro giro, a solução estatal para as fake news engendra uma pergunta óbvia: quem é que vai definir o que é fake news? Qual é o órgão? Quem o elege? Quem será, portanto, esse oráculo onisciente e infalível que irá, sabe-se lá por meio de qual critério, definir o que é a verdade? John Milton levanta a questão de “como confiar nos censores, a não ser que se lhes atribua, ou que eles mesmos se arroguem, por cima da cabeça dos demais na terra, a graça da infalibilidade e a da incorruptibilidade?”9 O cenário que se descortina para nós, assim, é que, para combater aquilo que se imagina ou se acusa ser fake news, o governo fatalmente terá de se valer da censura, prévia e posterior. Instaurar-se-á, então, na sociedade, uma perpétua, detalhada e opressiva vigilância do Estado sobre os escritos, os discursos e toda forma de manifestação do pensamento. Se dependesse dos aguerridos combatentes das fake news, o governo já teria criado uma agência reguladora repleta de “iluminados” agentes encarregados de conceder os seus “nihil obstat”10 aos blogueiros, twitteiros jornalistas e articulistas digitais. Um Index tupiniquim...
Existem dois outros problemas que os defensores do controle estatal negligenciam. O primeiro é que eles tratam a mentira como se ela fosse algo detectável icto oculi. Não lhes ocorre o perigo de que, em meio a toda essa repressão, a verdade seja atingida ao ser confundida com a mentira, uma vez que ambas, tal como o bem e o mal, caminham juntas, e tal como “o conhecimento do bem, está de tal forma envolvido e entrelaçado com o conhecimento do mal” e “é tão difícil distingui-los em suas astuciosas aparências”11, a verdade e a mentira também se entrelaçam. E talvez seja essa a intenção da Infinita Sabedoria, quando fez o homem “conhecer o bem pelo mal”12, pelo que podemos dizer, parafraseando Milton, que irá conhecer a verdade pela mentira. O segundo problema é que eles acreditam tão inocentemente que a censura estatal será infalivelmente certeira e incidirá exclusivamente sobre a notícia falsa, e que a verdade permanecerá incólume frente a esse vasto poder do Estado de reprimir as manifestações do pensamento. O processo natural da liberdade não traz esse perigo: ele permite que a verdade e a mentira caminhem juntas até que a primeira prevaleça, sem precisar sufocar nem uma nem outra.
Essa histeria em torno do “combate” às fake news não tardará em se degenerar num perigoso instrumento de censura e perseguição de inimigos políticos, jornais, jornalistas, blogueiros, youtubers e todo cidadão que calhar exercer seu direito à liberdade de expressão. Seja qual for o pretexto que o Estado se utilize nesse terreno, incidirá ele inevitavelmente em severas inconstitucionalidades. A nossa Constituição eliminou qualquer resquício de censura: no art. 5º, IX, declarou a proteção à “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”; e no §2º do art. 220, vedou qualquer forma de censura: “§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.” Daí se vê que qualquer tentativa arbitrária de se censurar as mídias digitais, a pretexto de combater as fake news, incorrerá em flagrantes inconstitucionalidades, pois a Constituição não dá qualquer margem de se flertar com a censura.
A imprensa, numa democracia, deve gozar de absoluta independência e liberdade. Com liberdade plena, ela corrige seus próprios excessos. O desejo de “regulamentar” as mídias sociais e jornais digitais é um arroubo totalitário de tiranetes que não aceitam o pluralismo político e a concorrência de ideias. A democracia não convive com esse tipo de investida à imprensa e à livre manifestação do pensamento do cidadão, pois democracia e imprensa formam um todo indissolúvel, e se quisermos preservar aquela, teremos que proteger esta, como advertiu Tocqueville: “A soberania do povo e a liberdade de imprensa são, pois, duas coisas inteiramente correlativas. A censura e o voto universal são, ao contrário, duas coisas que se contradizem e não podem se encontrar por muito tempo nas instituições políticas de um mesmo povo.”13
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1 Clique aqui. Acesso em 27.05.20.
2 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, Livro I: Leis e costumes, Trad. Eduardo Brandão, Martins Fontes, 2014, p. 212. (sem grifos no original)
3 Veja como o artigo 223 da CF e seus parágrafos condicionam o empreendimento jornalístico à concessão estatal. Chamar de liberdade essa “permissão” do Estado para atuar no mercado da mídia é um insulto à liberdade de imprensa!
4 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, Livro I: Leis e costumes, Trad. Eduardo Brandão, Martins Fontes, 2014, p. 212.
5 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, Livro I: Leis e costumes, Trad. Eduardo Brandão, Martins Fontes, 2014, p. 214.
6 LE BON, Gustave. Psicologia das multidões, Trad. Mariana Sérvulo da Cunha, Martins Fontes, São Paulo, 2016, 2ª Edição, p. 168.
7 MILTON, John. Discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra, Trad. Raul de Sá Barbosa, Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 1999, p. 87.
8 CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos, Trad. Joubert de Oliveira Brízida, Editora Topbooks Rio de Janeiro, 2007, p. 744.
9 MILTON, John. Discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra, Trad. Raul de Sá Barbosa, Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 1999, p. 99. (sem grifos no original)
10 Nihil obstat quominus imprimatur, que quer dizer "nada obsta para que seja impressa". Era a autorização dada pelos censores da Igreja permitindo a publicação de algum escrito...
11 MILTON, John. Discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra, Trad. Raul de Sá Barbosa, Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 1999, p. 91.
12 MILTON, John. Discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra, Trad. Raul de Sá Barbosa, Editora Topbooks, Rio de Janeiro, 1999, p. 91. Eis o trecho de Milton na íntegra: “E talvez consista nisso a Queda de Adão: conhecer o bem e o mal, quer dizer, conhecer o bem pelo mal.”
13 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, Livro I: Leis e costumes, Trad. Eduardo Brandão, Martins Fontes, 2014, p. 209.
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TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América, Livro I: Leis e costumes, Trad. Eduardo Brandão, Martins Fontes, 2014, p. 226.
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*Nadir Mazloum é advogado colaborador do escritório Lopes, Rezende & Mazloum Advogados.