Penhora do bem de família: Cabimento da declaração de Inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei 8.009
Luciane Hanke Kaiel*
Tão somente dois anos depois de entrar em vigor a Constituição da República Federativa do Brasil teve seu texto várias vezes alterados em razão da tentativa de implantação de um novo modelo econômico. O modelo neoliberal introduzido por Fernando Collor em 1990 encontrava obstáculos para seu funcionamento na própria Constituição, que impunha limites bastantes rigorosos à política econômica, restringindo a abertura de setores da economia e a captação de recursos estrangeiros, bem como outras medidas necessárias para fomentar a economia interna, desenvolver a indústria e aumentar o crédito público. Do capítulo que regula a atividade econômica nada menos que dez dos doze artigos tiveram seus textos alterados por emendas constitucionais para dar estrutura legal à implantação da política de modelo neoliberal.
A partir desse cenário começa a ficar mais fácil imaginar porque o artigo 82 da Lei 8.245 de 1991 retira do manto da impenhorabilidade o bem de família do fiador de contrato de aluguel. Condizente com o cenário político que o País vivia, esta inovação esdrúxula foi uma das tentativas desesperadas de impulsionar a economia, e ao mesmo tempo resolver o grave problema de falta de moradia. O mercado imobiliário é importantíssimo para o desenvolvimento de um País, participa de forma direita na impulsão da economia, faz girar uma cadeia que movimenta desde trabalhadores braçais, comerciantes e profissionais liberais a instituições financeiras - responsáveis pelo crédito. Em face deste cenário a Lei teria sustentabilidade, podendo ser invocado o princípio da proteção da ordem econômica, mas seriam esses argumentos suficientes para sustentar a constitucionalidade da Lei?
Quinze anos depois da promulgação da Lei o cenário econômico do País mudou drasticamente. Com a inflação controlada e a democratização ao acesso ao crédito surgiram outros meios de proteção ao locador como o seguro e o depósito. São meios mais condizentes com a amplitude do contrato de locação que a crueldade de penhorar o bem de família. O problema habitacional hoje não atinge amplitude suficiente para dar a atividade imobiliária privilégios, é uma atividade econômica como qualquer outra atividade, portanto não há fundamentos jurídicos para que receba tratamento diferenciado de tal intensidade.
Quanto à constitucionalidade bastaria, em tese, que a norma infraconstitucional entrasse em conflito com uma regra ou princípio constitucional. Podemos, questionar a constitucionalidade do artigo da Lei 8.245 em face, ao menos, de três outros princípios explícitos na Constituição e uma regra de diretriz, ainda na Constituição: o da isonomia (art. 5º caput), da dignidade da pessoa humana (art.1º, II I), da função social da propriedade (art.170, III) e ao direito de moradia (art.6).
Quando há um conflito aparente de princípios, a aplicação de um dos princípios ao caso concreto dependerá do afastamento de um para aplicação de outro, utilizando um terceiro princípio, o da razoabilidade e proporcionalidade.
O que seria mais razoável, garantir a utilização a um único bem de família à moradia ou à satisfação de uma dívida para proteger o crédito público? Segundo: cabe ao Estado preservar o direito a moradia de quem já tem um imóvel ou promulgar leis que deixa este passível à penhora para satisfação do credor deste imóvel? Terceiro: é mais razoável que a família perca sua moradia, e com ela tenha sua dignidade atingida ou que seja promovida a satisfação da dívida para proteção do crédito e impulsão da ordem econômica?
O artigo 226 da Constituição trás a família como base da sociedade, gozando de proteção especial do Estado. Ora, é por óbvio que a perda da moradia, especialmente quando haveria meios de evitá-la, desestrutura toda a família - a base da sociedade, fere o princípio da função social da propriedade, pois esta passaria de objeto de moradia para ser objeto de satisfação de dívida. Em razão desta discussão, a proteção à ordem econômica não é um pilar que sustenta a constitucionalidade da Lei 8.245.
O STF, Tribunal competente para declarar a constitucionalidade das normas introduzidas ao ordenamento jurídico, insiste na constitucionalidade da lei. <_st13a_personname productid="Em Recurso Extraordinário" w:st="on">Em Recurso Extraordinário nº. 407.688 julgado pelo pleno em fevereiro deste ano, a penhorabilidade foi admitida por maioria de votos. O voto predominante, do Ministro-Relator Cezar Peluso, declara que a lei nº 8.009 é clara ao tratar da exceção à impenhorabilidade, e que o “cidadão têm a liberdade de escolher se deve ou não avalisar um contrato de aluguel e, nessa situação, o de arcar com os riscos que a condição de fiador implica”.
O voto do Ministro invocando os princípios clássicos Pacta Sunt Servanda e a liberdade contratual vai contra a corrente doutrinária predominante em relação à leitura constitucional de todo o ordenamento jurídico. São princípios clássicos que surgiram com o iluminismo, porém há muito perderam a força, tendo a eficácia restrita em face de outros princípios modernos.
Em um artigo intitulado “A Constituição e o Código Civil” Miguel Reale – o mais importante jurista na elaboração do Código Civil, defende que o Direito Civil deve ser compreendido em função de princípios jurídicos, como da eticidade e da socialidade, destacando as matérias do artigo 5º da Constituição como “preceitos civis fundamentais”. A partir desta interpretação sistemática seria inconcebível que qualquer família tenha sua única moradia penhorada para o pagamento de dívidas.
Há, no entanto, um outro grande problema a ser analisado sobre a possibilidade de inconstitucionalidade da Lei. A discussão sobre a constitucionalidade perdura há mais de uma década e apesar da inconstitucionalidade da Lei poder ser sustentada em face de vários princípios constitucionais, como analisado acima, seria totalmente inviável declará-la inconstitucional. A declaração de inconstitucionalidade pelo controle concentrado teria efeitos retroativos e erga omnes, ou seja, a norma que é declarada incompatível com a Constituição é inconstitucional desde seu nascimento, o que faz, nesse caso, com que todas as penhoras que ocorreram fundamentadas na Lei fossem tidas como nulas, destituídas de qualquer carga de eficácia jurídica. Em face desta situação e analisando as decisões passadas do SFT, a possibilidade da inconstitucionalidade ser declarada é praticamente inexistente.
Alexandre de Morais ensina que para que seja possível esta declaração devem estar presentes dois requisitos constitucionais: o formal, que consiste na decisão de maioria de dois terços, e o material que determina a observância da segurança jurídica ou do excepcional interesse social.
Partindo desta premissa a discussão sobre a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade passa a ser meramente intelectual, sem aplicabilidade no caso concreto, pois a declaração feriria diretamente o princípio da segurança jurídica, já que muitos anos foram passados.
A saída para o problema seria que os doutrinadores e a sociedade fizessem pressão para a revogação ou a suspensão da execução do artigo da Lei, que seriam os atos mais condizentes com a situação. Não há mais o cenário econômico que originou a Lei, mas ela fez algum sentido e teve utilidade no passado. No passado. Hoje não há mais a necessidade de manter a medida, ela não encontra escopo jurídico, econômico ou social, mas também não há mais a possibilidade de declará-la inconstitucional.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CAMBI, Accácio. Poder Judiciário Estado do Paraná. Disponível em: https://www.tj.pr.gov.br/download/cedoc/ArtigoDesCambi.doc. Acesso em: 05 Setembro 2006.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17º. ed. São Paulo: Atlas, 2005.
REALE, Miguel. A Constituição e o Código Civil. Disponível em: https://www.miguelreale.com.br/. Acesso em: 03 Setembro 2006.
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*Estudante do 6.º período do curso de Direito das Faculdades Integradas Curitiba