Migalhas de Peso

Candidaturas femininas e o “novo normal”

As mulheres na política merecem um olhar especial, pois hoje além da violência doméstica, física e moral, existe a discriminação no trabalho e, também, nas rodas políticas.

16/6/2020

Exercitar-se em casa pela manhã, teletrabalho durante o dia e reunião com os amigos no ambiente digital à noite...

Para uma pequena parte dos brasileiros, o chamado “novo normal” se apresenta como um período de descobertas das novas possibilidades que a digitalização pode oferecer no âmbito cotidiano. Infelizmente, o atual cotidiano da maioria dos indivíduos não se assemelha à projeção romantizada do “novo normal”, que associa o período pandêmico a um pequeno inconveniente, cujos efeitos poderiam ser facilmente suavizados com técnicas de autocontrole e recurso à tecnologia. Contudo, a pandemia se apresenta para uma grande maioria com uma outra face, que se refere a uma intensificação das desigualdades já existentes.

As desigualdades de gênero não ficam imunes aos efeitos perversos dessa crise sanitária – pelo contrário. O mundo feminino torna-se ainda mais complexo, não apenas pelos cuidados domésticos, do lar, filhos, família, escola domiciliar entre tantas outras atividades, consideradas femininas e arremessadas às mulheres, mas também pela vulnerabilidade às agressões físicas no tempo que passam mais próximas aos seus agressores domésticos e pela vida mais difícil no ambiente de trabalho. Além disso, deve-se ter em consideração que as mulheres representam mundialmente, segundo a OMS, 90% dos profissionais de enfermagem1, o que evidencia a não somente a relevância do trabalho feminino no combate à crise, mas também a vulnerabilidade a que essas profissionais estão expostas.2 O trabalho feminino, como afirma a socióloga Lena Hipp3, torna-se visível aos olhos daqueles que sempre o ignoraram, sem a devida contrapartida financeira ou profissional. Infelizmente, essa questão não atinge somente o nosso País: nações mais desenvolvidas economicamente, como a Alemanha4, ou que compartilham outras matrizes culturais, como os países asiáticos5, também padecem do mesmo problema.

A Constituição de 1988 elevou, em seu art. 3º, a luta contra a desigualdade de gênero como um de seus objetivos. Assim, iniciou-se uma jornada, que parece interminável pelo alcance real do espaço feminino nas esferas públicas, pois dentro dos partidos, diversas lideranças partidárias não realizam o mínimo de esforço para conferir às mulheres o protagonismo no âmbito decisório dos partidos políticos. No entanto, esse quadro vem se alterando gradualmente nos últimos tempos. Pode-se mencionar, por exemplo, o surgimento de grupos organizados por mulheres – como o Visibilidade Feminina – que fomenta, de forma competente e organizada, o protagonismo feminino nos espaços de poder. Uma das ações do grupo foi a proposta de consulta ao TSE sobre a recusa da concessão de auxílio emergencial às mulheres candidatas nas últimas eleições, hoje suplentes.

De acordo com as regrais eleitorais, os partidos políticos precisam preencher os 30% dos registros de candidaturas femininas e devem realizar por mídias digitais cursos de formação políticas voltadas para as mulheres. Além disso, os partidos devem iniciar um trabalho técnico de preparo às mulheres para que ocupem os cargos de dirigentes partidários, pois esse é o vetor indicativo do TSE, assim como foi pelo STF quando decidiu pela reserva de 30 % do fundo partidário para políticas femininas e posteriormente o TSE reservou 30% do fundo de financiamento de campanha para as mulheres. Resta-nos indagar como será o fomento da participação feminina nos tempos de pandemia. Em caso de desconsideração do panorama atual que envolve a sobrecarga das mulheres em tempos pandemia, os partidos políticos correm o risco de retroceder no fomento à participação feminina no âmbito político.

As mulheres na política merecem um olhar especial, pois hoje além da violência doméstica, física e moral, existe a discriminação no trabalho e, também, nas rodas políticas. Após eleitas, sofrem a violência política. São afastadas de pautas importantes e comissões determinantes, pois a prática político-partidária brasileira foi dominada hegemonicamente no último século por homens – brancos e oriundos das classes superiores. Como dissemos anteriormente, a pandemia agrava consideravelmente as desigualdades já existentes e, na ausência de um plano de ação que desconsidere a vulnerabilidade feminina em meio a crise sanitária, iremos nos deparar com um parlamento mais masculino e mais distante do ditame constitucional da construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

É inegável que a crise sanitária implicará em ajustes às regras eleitorais, assim como em relação ao calendário de realização das eleições. Não nos posicionamos a favor da unificação das eleições federais e municipais; contudo, acreditamos que as eleições se tornam mais desiguais sob a perspectiva de gênero, caso as regras comumente vigentes sejam mantidas. Acertou o Tribunal Superior Eleitoral quando determinou que as convenções partidárias poderão ser realizadas por meio virtual6. Ora, como esperar de uma candidata, depois de uma dupla jornada extenuante, que se prontifique a participar presencialmente de uma reunião partidária? Não é apenas uma questão de logística, mas também de desigualdade material – preexistente, mas agravada pela pandemia – entre candidatos e candidatas. Outras questões práticas surgirão ao longo da eventual campanha, caso confirme-se a realização das eleições municipais no ano de 2020. Esperamos que não somente o argumento envolvendo a logística de realização do pleito, mas também aquele das condições desiguais, sob as quais os envolvidos disputam os cargos de poder em meio a pandemia, seja levado em consideração.

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*Ana Paula Barmann é advogada formada pela PUC/PR em 2000. Doutoranda e mestre em Democracia e Direitos Fundamentais pelo UNIBRASIL. Membro da Comissão De Direito Eleitoral da OAB/PR, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP. Diretora Jurídica e Legislativa da Câmara Municipal de Campo Largo.

*Douglas Carvalho Ribeiro é advogado doutorando em Direito pela Universität Hamburg (Alemanha). Graduado e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP.

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