O STJ decidiu em 31 de maio último os embargos de declaração apresentados por diversos sindicatos rurais do Rio Grande do Sul em ação por eles proposta contra a MONSANTO. Atuou no caso o IBPI (Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual) na qualidade de amicus curiae.
Numa breve memória do caso, os Sindicatos promoveram ação de indenização contra a multinacional pleiteando a devolução a todos os plantadores de soja integrantes dos Sindicatos dos valores pagos à MONSANTO a título de cobrança de royalties devidos pelo uso de sementes de soja resistentes ao defensivo Round-up (Round-up Ready).
Tais sementes modificadas resultam do bombardeamento do gene da semente mediante processo patenteado pela MONSANTO. Em virtude da existência dessa patente, a empresa vinha cobrando dos agricultores que utilizavam o Round-up Ready um valor a título de “taxa de tecnologia”.
É fato que a patente brasileira protege tal processo de fabricação e que a mesma lei prevê que a patente de processo abrange, também, o produto resultante, exceto quando o produto está compreendido na proibição de patenteamento dos arts. 10 e 18 da Lei de Propriedade Industrial, entre eles o todo ou parte dos seres vivos, exceto micro-organismos transgênicos.
Os Sindicatos foram vitoriosos na ação promovida no Rio Grande do Sul em 1ª Instância. Todavia, em apelação perante o TJ/RS foi revertida a decisão da ação por ter decidido o Tribunal que a semente de soja seria um micro-organismo. No Resp apresentado ao STJ pelos Sindicatos, o IBPI enfatizou que a semente de soja não era um micro-organismo e, portanto, não gozava da isenção à aplicação dos arts. 10 e 18 da LPI.
O acórdão do STJ, que manteve a decisão do TJ/RS omitiu-se quanto a esse ponto, o que ensejou a formulação dos embargos de declaração ora julgados.
A denegação da Resp, da lavra da ministra Maria Thereza de Assis Moura, de 31 de maio, inadmitiu o recurso extraordinário em sede de denegação dos embargos de declaração. Fundou-se a decisão no fato de que "as patentes não protegem a variedade vegetal, mas o processo de inserção e o próprio gene inoculado nas sementes de soja". Ou mais: “os recorridos ostentam a condição de titulares dos direitos, decorrentes do patenteamento de um processo específico de transgênico e do produto respectivo (relativo ao gene CP4 EPSPS)."
Outras referências no texto da decisão denegatória deixam claro o seu fundamento: “...inserção de um gene que conferiu à planta uma função distinta” ou “tal como um gene com uma nova função" (item 7. Conclusão). Ou, ainda, “patentes de produto e/ou processo relacionados à transgenia cuja tecnologia esteja presente no material reprodutivo de variedades vegetais” (item 8. TESE FIRMADA).
O fundamento último das decisões (TJ/RS e STJ) é que a MONSANTO detém patente sobre processo, o qual alcança o produto resultante, e este produto resultante consiste em um micro-organismo (ou a semente de soja RR ou seu gene engenheirado).
Ora, nem a semente é um micro-organismo, pois visível a olho nú, nem o gene modificado o é, pois não é um organismo, mas parte da semente ou da própria planta.
Assim, as decisões sob comento laboram em erro de fato (supor que o gene é um organismo) o que contraria a biologia e, portanto, a CIÊNCIA.
NOTA TÉCNICA SOBRE A PATENTEABIIDADE DE SEMENTES E DE GENES NO BRASIL (C.S.)
A presente nota técnica foi elaborada em atendimento à solicitação do prof. dr. Newton Silveira, Diretor Geral do IBPI – Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual, que nos consultou sobre a patenteabilidade de sementes e genes no Brasil.
Em minha experiência profissional diária com depósitos de fases nacionais de pedidos internacionais de patente de inventores e titulares estrangeiros, que envolvem biociência e biotecnologia, tenho me deparado com invenções relacionadas à engenharia genética como, por exemplo, para a obtenção de plantas e animais transgênicos.
É comum serem depositados no Brasil tais tipos de pedidos de patente em que a matéria para a qual o inventor pretende exclusividade inclua reivindicações de métodos transgênicos e de microrganismos transgênicos. Tal ponto seria absolutamente regular, desde que não incluíssem reivindicações de organismos transgênicos, tais como ratos oncológicos, sementes e plantas transgênicas, objetos que são expressamente excluídos da patenteabilidade no Brasil, pela lei 9.279/96, como será examinado mais à frente.
Quanto à patenteabilidade de sementes e de genes, é inicialmente oportuno considerar que, no caso de serem sementes e genes naturais, enquadrar-se-iam no artigo 10 da LPI que, em seu inciso IX, exclui seres vivos naturais (o todo ou parte) bem como materiais biológicos encontrados na natureza, ainda que dela isolados, dentre estes genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural; e ainda os processos biológicos naturais, por não se enquadrarem no conceito legal de invenção. Por decorrência, não são patenteáveis em nosso país, verbis:
Art. 10. Não se considera invenção … :
(...)
IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais.
Portanto, depreende-se que animais, plantas, sementes, genomas, genes etc., se encontrados na natureza (logo meramente revelados ou descobertos), não são patenteáveis no Brasil, uma vez que somente invenções ou inventos são patenteáveis.
Contudo, a questão mais intrigante que nos interessa examinar é a patenteabiidade de organismos e microrganismos não naturais. Aqui são referidas aquelas tecnologias obtidas por meio da engenharia genética, a saber, os organismos e microrganismos transgênicos.
Essa matéria é definida e regulada pelo artigo 18 da LPI, na seção II Das Invenções e Dos Modelos de Utilidade Não Patenteáveis, verbis:
Art. 18. Não são patenteáveis:
(…)
III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais.
Do inciso III do artigo 18 depreende-se que:
i) Seres vivos ou suas partes não são patenteáveis no Brasil, sejam naturais ou transgênicos.
ii) Dentre os seres vivos transgênicos apenas os microrganismos são patenteáveis, desde que sejam de fato uma invenção e que atendam aos demais requisitos de patenteabilidade.
iii) Os microrganismos transgênicos patenteáveis devem ter uma característica inexistente em condições naturais, resultante de intervenção humana direta em sua composição genética.
Com base nas considerações acima já seria possível concluir que um rato, um coelho, uma orelha de um rato, uma planta, uma semente, assim como qualquer outro ser vivo transgênico, ou seja, obtido por meio de engenharia genética, ou parte destes, não são patenteáveis no Brasil, por não se enquadrarem na definição legal de microrganismo transgênico.
Portanto, respondendo à primeira questão, sobre a patenteabilidade de sementes no Brasil, entendo não serem patenteáveis em nenhum caso: se naturais, impedidas pelo artigo 10 da LPI e, se transgênicas, pelo artigo 18, como esclarecido acima, sobre o que não deve pairar dúvida.
Para um não-especialista nas questões acima abordadas, ainda que de maneira expedita, em sintética nota técnica, poderá pairar ainda alguma dúvida a respeito da segunda questão, a patenteabilidade de genes.
Para melhor esclarecer essa questão, é oportuno, além da definição legal de microrganismo transgênico, considerar os conceitos de organismo, microrganismo, gene e outros termos correlatos, utilizados na Ciência, em especial na Biologia.
Organismo1
A Biologia entende por organismo todo ser individual que incorpore as propriedades da vida. O termo é sinônimo de organismo vivo, ser vivo, forma de vida, vida, criatura, espécime, espécimen, indivíduo, ser, e ente dentre outros.
Os organismos podem ser classificados em organismos multicelulares, tais como animais, plantas e fungos e em microrganismos celulares, tais como protistas, bactérias e arqueias. Todos os tipos de organismos são capazes de reprodução, crescimento e desenvolvimento, manutenção e resposta a estímulos.
Exemplos de organismos multicelulares são os humanos, as lulas, os cogumelos e as plantas vasculares, que diferenciam tecidos e órgãos especializados durante seus desenvolvimentos existenciais.
Microrganismo2
Microrganismo ou micróbio é um organismo que só pode ser visualizado por meio de um microscópio. São microrganismos os vírus, as bactérias, os protozoários, as algas unicelulares, os fungos (leveduras unicelulares e demais fungos pluricelulares) e os ácaros. Os seres microscópicos não são necessariamente unicelulares, a exemplo dos próprios ácaros.
Na Biologia, genoma é toda a informação hereditária (passada para seus descendentes) de um organismo, que está codificada em seu DNA (em alguns vírus, no RNA). Isto inclui tanto os genes como as sequências não-codificadoras, que são muito importantes para a regulação gênica, dentre outras funções.
Gene3
Na Genética clássica gene é a unidade fundamental da hereditariedade. Cada gene é formado por uma sequência específica de ácidos nucleicos, que são as biomoléculas mais importantes do controle celular, por conterem a informação genética. Há dois tipos de ácidos nucléicos, a saber o ADN (ácido desoxirribonucleico) e RNA (ácido ribonucleico).
Na linguagem da Genética pós-moderna, o gene é entendido como uma sequência de nucleotídeos do ADN, que pode ser transcrita em uma versão de RNA mensageiro responsável pela síntese proteica (expressão). É um segmento de um cromossomo que corresponde um código distinto, uma informação para produzir uma determinada proteína ou controlar uma característica como, por exemplo, a cor dos olhos.
Atualmente, diz-se que um gene é um segmento de DNA que leva à produção de uma cadeia polipeptídica e inclui regiões que antecedem e que seguem a região codificadora, bem como sequências que não são traduzidas (introns) que se intercalam aos segmentos codificadores individuais (exons), que são traduzidos.
Do exame conjunto dos conceitos acima apresentados depreende-se que um gene não é um microrganismo, senão apenas uma parte de um cromossomo, um segmento de DNA, uma sequência de ácidos que contém informação relevante para a hereditariedade.
Depreende-se ainda que os genes engenheirados pela inventividade e intervenção humanas não se enquadram na definição legal de microrganismo transgênico, objeto do artigo 18 da Lei de Propriedade industrial - vigente no Brasil desde 1996 - não sendo portanto possível protegê-los por patente no Brasil, nem que sejam o resultado de um método de produção patenteado.
Por todo o acima exposto, é forçoso concluir que nem sementes nem genes são patenteáveis no Brasil.
Como tal conclusão em nada se altera por eventual manipulação genética havida em cromossomos ou seus segmentos, todo e qualquer ato administrativo que resulte em uma patente no Brasil com reivindicações de sementes ou de suas partes será inválido.
Isto não significa que desenvolvimentos tecnológicos desta sorte ficariam desprotegidos, já que há um diploma específico para tal forma de criação, o regulado pela Lei de Proteção aos Cultivares (Lei 9.456/97).
A propósito, como esclarece o art. 2º da LPC, trata-se da “única forma de proteção de cultivares e de direito que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa, no País”.
Conclusão (N.S.)
O Acordo TRIPS, promulgado no Brasil pelo decreto 1355, de 30 de dezembro de 1994, estabelece no art. 27 (matéria patenteável), n. 3 que os Membros também podem considerar como não patenteáveis, b: plantas e animais, exceto micro-organismos.
Em virtude do permissivo do Acordo internacional, estabeleceu a Lei de Propriedade Industrial, em seus artigos 10 e 18, a não patenteabildiade de “todo ou parte dos seres vivos naturais, exceto micro-organismos transgênicos”.
O parágrafo único do art. 18 define: “Para os fins desta Lei são ORGANISMOS, exceto o todo ou parte de plantas ou de animais...”
Essa redação, que decorre do texto do Acordo TRIPS, foi introduzida na Lei brasileira após longos debates, dos quais participou a cientista brasileira Glaci Zancan, então presidente da SBPC, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que defendeu com brilho o texto introduzido na Lei brasileira.
Assim, é certo que a semente da soja não é um micro-organismo porque não é micro, mas visível a olho nú. Por outro lado, o gene da semente de soja, modificado pelo processo da MONSANTO, não é um micro-organismo porque não é um organismo, mas parte do organismo planta.
Um organismo, na biologia, é um ser vivo, com vida própria, dotado de pele que o separa do mundo exterior. Lembro-me de um engenheiro do Instituto Florestal que desiguava árvore de indivíduo arbóreo. Já Millor Fernandes, certa feita, escreveu que micróbio era um ser tão pequeno que mesmo um monte deles não era visível!
Em suma, podemos dizer que um micro-organismo é um indivíduo vivo não visível a olho nú, como os micróbios, bactérias, etc...
Indefensável a posição do TJ/RS e STJ adotada no caso em questão, pois contraria os fatos e a ciência. Mero erro de fato.
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*Newton Silveira é diretor-geral do Instituto Brasileiro De Propriedade Intelectual. Sócio do escritório Newton Silveira, Wilson Silveira e Associados - Advogados.
*Clovis Silveira é presidente da Comissão de Patentes do IBPI.