É natural que o foco das atenções seja a debelação da covid-19. Afinal, é essa a patologia que vem ceifando vidas, enclausurando pessoas e esganando a economia nos quatro cantos do globo.
Muito embora seja uma doença democrática, na perspectiva de que colhe indistintamente crentes e ateus, brancos e negros, magros e obesos, um simples correr dos olhos nas páginas dos tabloides, ou o ouvir dos noticiários televisivos - de quaisquer emissoras, registre-se -, nos mostra um mundo que, para além do coronavírus, padece de males muito mais arraigados e, de tão reprisados, terminam por transparecer uma certa complacência social para com eles.
Falo, à guisa de exemplo, do racismo, da misoginia, do cerceio à liberdade de manifestação (free speech) e do cerceio à imprensa (free press). A semana passada nos mostrou quatro policiais no ato de prisão de um cidadão afrodescendente na cidade norte-americana de Minneapolis. Em razão da brutalidade da abordagem, George Floyd veio a óbito, redundando em mais uma onda de protestos em razão da violência policial em desfavor dos negros.
Em que pese os quatro policiais tenham sido de pronto demitidos da corporação e o policial Derek Chauvin tenha sido preso e denunciado, não deixa de causar espécie que um país com instituições sólidas e a mais madura democracia do mundo livre seja ainda palco de comportamentos desse jaez à plena luz do sol, sem qualquer inibição por parte daqueles que detém delegação para a mantença da lei e da ordem. Chama atenção na cena, a par da injustificada truculência - o vídeo da abordagem fala por si só -, a banalização do mal.
A mesma banalização que leva, ainda nos dias hodiernos, a mutilação da genitália de meninas no Continente Africano e em parte do Oriente Médio e Ásia, sob color de privar-lhes do prazer sexual. As estatísticas mostram que mais de 130 milhões de mulheres já sofreram o procedimento que, em certas localidades, é levado a cabo a partir dos cinco anos de idade.
Ainda que seja cediço que crenças religiosas sirvam como escudo para costumes que, ao menos no Ocidente, despertam repúdio social, a legitimação religiosa local não se presta a albergar tamanha violência, que vilipendia não apenas a compleição física feminina, mas, tanto quanto, sua identidade e autoestima, sendo inconteste que nenhum benefício médico advém da mutilação.
Por mais que a violência física seja a que desperta maior comiseração, aquelas perpetradas de formas mais insidiosas são em certos aspectos tão repudiáveis quanto. Caso do cerceio à livre manifestação de pensamento, como recentemente visto em países sob o signo da democracia, nestes trópicos e acima da linha equatorial. Pela força do exemplo - sempre o maior indutor de comportamento -, pouco valem as disposições constitucionais assinalando a liberdade de expressão de pensamento se líderes investidos de mandato popular rosnam à vista da mais sútil das críticas.
Vale memorar que a liberdade de se expressar não está plasmada apenas na nossa Constituição Cidadã (art. 5, IV e IX) e na primeira emenda à Constituição dos EUA, mas sim mundo afora, a exemplo do art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Afinal, do que vale à evolução das espécies e a projeção angariada pelo "homo sapiens" se as ideias dos seus descendentes permanecerem na clausura da incomunicabilidade? Na mesma toada segue a repressão ao trabalho da mídia, que ao difundir as notícias sem censura prévia exercita a voz da sociedade.
Num globo cada vez mais interconectado, no qual a pandemia propulsou para a interação digital os locais mais recônditos e mesmo os ambientes mais vetustos - mesmo futuristas não cogitariam de julgamentos em videoconferência há bem pouco tempo atrás -, como se imaginar o cerceio à propagação de boa fé dos atos e fatos da vida senão sob a malsinada intenção de garrotear o senso de crítica por parte do tecido social? Males físicos e intelectuais, a protraírem uma sensação de desapreço para com o próximo. Que a eloquência do silêncio, num mundo sitiado por um vírus invisível, não ecoe como consentimento àqueles.
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