Não é precipitado afirmar que a crise instaurada pela disseminação do coronavírus inaugura novo paradigma das relações sociais brasileiras. Não somente porque invoca aceleração nos processos de transformação digital, impõe a revisão de contratos privados ou convida um novo olhar sobre as relações de trabalho. Mas também porque joga luz na necessidade de ser revisitado o Direito Administrativo.
A melhor doutrina administrativista, com a robustez de nomes como Maria Sylvia Zanella Di Pietro e José dos Santos Carvalho Filho, sempre se dedicou a esmiunçar os procedimentos, regras, princípios e particularidades das operações que envolvem a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada. Mais recentemente (a partir da lei 13.019/14), foram objeto de proveitosas discussões as parcerias em que não há transferência alguma de recursos. Tudo isso é inequivocamente importante: assegura a manutenção do erário e da própria ordem democrática.
Mas os novos caminhos pelos quais tem percorrido a Administração Pública exigem do aplicador do Direito um olhar no sentido contrário: quais são os procedimentos, regras, princípios e particulares que envolvem as operações de transferências de recursos privados para o poder público sem a existência de qualquer contrapartida? É verdade que o Direito brasileiro não é desprovido de ferramentas para operar as parcerias público-privadas, ou para incluir nas políticas públicas as organizações da sociedade civil. Mas o que a disseminação do coronavírus impõe é um olhar ainda mais aprofundado.
Pois bem.
Três são aspectos pelos quais este texto percorrerá: (I) a instrumentalização das relações de repasses da iniciativa privada ao Poder Público; (II) os esforços legislativos quem têm sido propostos durante a pandemia; e (III) as expectativas para manutenção do paradigma pós-coronavírus.
Deixando de lado as eventuais discussões hermenêuticas acerca da vontade do legislador, diante da inteligência da lei 8.666/93 (que regula as licitações e os contratos administrativos) e da lei 13.019/14 (que versa sobre as parcerias entre administração pública e organizações da sociedade civil), é possível afirmar que não existe uma determinação expressa acerca das nuances do instrumento jurídico que vise à formalização de repasses de sociedades empresárias com fins lucrativos para o poder público sem a imposição de encargos ou contraprestações.
É verdade que o decreto 9.764/19 ensaiou o procedimento por meio do qual podem ser oferecidos às entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional bem móveis e/ou serviços. Por meio de plataforma digital denominada Reuse, os interessados podem realizar manifestação de interesse ou aderir a chamamentos públicos para fazer doações. Mas, apesar do esforço, não é possível adotar tal norma como resposta porque não se reveste de regra geral aplicável a todos os entes da federação, sendo uma solução desenvolvida pelo Ministério da Economia para viabilizar a transferência de recursos para a União. Há, portanto, um hiato entre as regras que precisa ser preenchido pelo legislador. E talvez seja permitido afirmar que a experiência do coronavírus despertou os olhares necessários para suprimir tal lacuna.
O art. 116 da lei 8.666/93 indica que esta se aplica, no que couber, a “convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração”. No entanto, da leitura de seus incisos e parágrafos, é possível depreender que não se destina ao verdadeiro financiamento das atividades do Poder Público por sociedades empresárias com fins lucrativos – notadamente porque apresenta obrigações relacionadas à execução de atividades pelos entes privados, o que não se amolda à perspectiva do financiamento mencionada.
A importância de uma regulamentação específica se deve ao fato de que, uma vez recebidos os recursos, estes passarão a ser classificados como coisa pública, submetendo-se a todas as exigências de compliance, devendo o percurso de tal recurso estar baseado nos princípios constitucionais que regem a Administração Pública. É dizer: sob pena de serem violados os arcabouços da impessoalidade e da moralidade, por exemplo, não é bom para o ordenamento que não haja regras e limites específicos.
A afirmação de que a crise tirou o legislador da inércia sobre questões que orbitam a problemática ora ventilada demonstra-se verdadeira quando, por exemplo, pode-se verificar a existência de duas propostas atualmente em tramitação. A despeito de não se tratar de discussões que toquem a transferência de recursos privados para entes públicos, reflete a tendência social de mobilização em prol de interesses comuns.
A primeira delas é a proposta de emenda à constituição – PEC 14/20 que visa a alterar o art. 155, da CF/88, para afastar a incidência do imposto de transmissão causa mortis e doação sobre as doações realizadas às organizações da sociedade civil e aos institutos de pesquisa sem fins lucrativos. A segunda é o projeto de lei 2.289/20 que isenta de tributos federais as doações de produtos importados do exterior destinadas às organizações da sociedade civil enquanto perdurar a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional em decorrência do novo coronavírus.
Mas é possível (e assim esperamos que o sejam) que se discutam os contornos que delimitam a transferência de recursos privados para o Poder Público. Interessante iniciativa é a lei 16.839, de 25 de março de 2020, editada pelo Governo do Estado de Pernambuco, que institui um fundo específico para o enfrentamento do coronavírus no Estado e indica as formas de transferência de recursos conectando-a aos procedimentos próprios para prestação de contas.
A despeito de se tratar de norma local e limitada a evento específico, é capaz de refletir o espírito da mudança que se pretende provocar na presente discussão: o envolvimento livre, direto e desinteressado de sociedades empresárias com fins lucrativos na manutenção do bem estar social.
É nesse ponto que importa trazer à tona a ideia de que tem sido amadurecida uma mentalidade empresarial cada vez mais comprometida com a função social da empresa (destacada inclusive na Constituição Federal). Evidenciada na oportunidade do coronavírus, esse comportamento não é tão recente quanto parece – mas precisa ser estimulado. Os entraves que sociedades anônimas, por exemplo, têm encontrado para fornecer recursos e insumos a instituições de pesquisa podem ser traduzidos tanto pela burocratização das estruturas públicas, quanto pela falta de clareza acerca dos caminhos que devem ser percorridos.
É preciso ultrapassar a ideia de que iniciativas privadas e Administração Pública encontram-se sempre em polos opostos. Essa perspectiva foi mitigada pela lei 13.019/14, é verdade, mas ainda não atingiu o patamar capaz de incentivar a cooperação contínua entre empresas e Poder Público.
As licitações, por exemplo, fazem parte da realidade de grande parcela do empresariado brasileiro - que conhece os protocolos que devem ser observados, nos termos da legislação. O que se ora pretende propor é que o financiamento de objetivos de interesse social também o sejam. A garantia da transparência e da segurança dos procedimentos vêm, inevitavelmente, com a regulamentação legislativa.
Ainda que se deva atribuir ao Direito o papel de acompanhar as mudanças sociais, não se pode descartar a função que ele tem de promover (no sentido de divulgar) comportamentos pretendidos. Como resposta da moral vencedora, instrumento para assegurar o ideal universal de justiça e ferramenta de manutenção de bem estar, o Direito deve vislumbrar a pandemia do coronavírus como oportunidade de instauração de um novo e melhor paradigma.
Com participação e responsabilidade social é possível superar crise. Não se pode deixar que faltem instrumentos para tanto.
_________