Em tempos de pandemia do covid-19, muitas tem sido as proposições legislativas que alteram a legislação vigente do direito da concorrência. O PL 1.175/20, em seu artigo 211, propõe alteração da lei 12.529/11 para conceder uma suspensão da eficácia dos incisos IV do art. 90 e incisos XV e XVII do §3º do art. 36, permitindo que as empresas, se se tratarem de contratos associativos, consórcios ou joint-ventures, no período da pandemia, possam se fundir ou adquirir umas às outras sem que haja a notificação prévia ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE.
Já para os incisos XV e XVII do §3º art. 36, ainda que a redação pareça se tratar de “suspensão da eficácia”, entende-se que o PL 1.175/20, em verdade, propõe uma verdadeira isenção antitruste, permitindo que ocorra venda injustificada abaixo do preço ou o encerramento das atividades sem justa causa, sem que haja, a posteriori, qualquer possibilidade de se buscar ao CADE para a apuração e condenação dessas infrações à ordem econômica ocorridas nesse período.
Além dessas questões pontuais especialmente previstas, as demais infrações à ordem econômicas cometidas nesse período, pela redação do projeto de lei, também deverão ser analisadas do ponto de vista das dificuldades financeiras decorrentes da covid-19, ou seja, na formação do convencimento judicial, dever-se-á levar em consideração as condições “extraordinárias” do momento, para efeito não só de dosimetria da pena, como também de aplicação de caracterização das próprias infrações à ordem econômica.
A primeira consideração importante é a de que no que concerne ao inciso IV do art. 90, haverá a possibilidade do CADE, conforme dispõe o §7º do art. 88 da lei 12.529/11, avocar as operações que possam trazer qualquer prejuízo concorrencial, podendo no prazo de 1 (um) ano requerer a submissão desses atos de concentração ao CADE. Nesse ponto específico, relembre-se que à época da vigência da lei 8.884/94, a notificação dos atos de concentração era feita à posteriori, tal como se verifica para as hipóteses previstas no referido projeto de lei. O mesmo já não ocorrerá com a “suspensão da eficácia” dos incisos XV e XVII no período previsto no PL, já que a “suspensão”, a nosso sentir, se transforma em uma verdadeira isenção antitruste, uma vez que não há qualquer dispositivo na lei de defesa da concorrência brasileira que preveja a sua reconsideração, tampouco o PL o prevê.
A segunda consideração relevante é a da produção dos efeitos negativos do ponto de vista jurídico e econômico.
No que se refere aos aspectos jurídicos, o dispositivo cria um vácuo legislativo, impedindo que haja qualquer configuração de crime contra a ordem econômica pelo cometimento das práticas insculpidas no inciso XV e XVII do §3º do art. 36 da lei 12.529/11 no período da pandemia. Diante desse cenário, desperta-se gravíssima preocupação com as empresas que possuem participação de mercado irrelevante, na medida em que o único caminho que se terá será a judicialização (art. 5º, XXXV, CRFB/88). Já os efeitos econômicos também não são desprezíveis para a economia brasileira, notadamente, para àqueles segmentos que são umbilicalmente dependentes de outros na cadeia produtiva, como é o caso do setor de saúde suplementar, sobretudo, considerando o poder de monopsônio/oligopsônio das Operadoras de Planos de Saúde (OPS) e da extrema dependência dos hospitais, clínicas de medicina diagnóstica e laboratórios do atendimento dos beneficiários das OPSs para a sua sobrevivência financeira.
É de se ver que na vigência da lei 12.529/11, já se verifica um movimento das OPSs, em claro abuso de posição dominante descredenciando inúmeros prestadores de serviços médico-hospitalares (hospitais-gerais, clínicas de medicina diagnóstica, laboratórios etc) ao passo que direcionam o atendimento dos beneficiários para a sua rede própria (integrada/verticalizada). Para essa conduta, a principal infração à ordem econômica relacionada a essa prática está associada com o inciso XII do mesmo §3º- dificultar ou romper a continuidade ou desenvolvimento de relações comerciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra parte em submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ou anticoncorrenciais.
O elevado poder de mercado das OPSs nos mercados relevantes geográficos de planos de saúde e o abuso de posição dominante que se dá por meio dos seus poderes de monopsônio/oligopsônio fazem com que os prestadores de serviços médico-hospitalares a jusante sejam extremamente prejudicados com inúmeras práticas anticoncorrenciais, como descredenciamentos imotivados ou com fundamentação viesada, rompimento da continuidade das relações comerciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra parte em submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis e vendas abaixo do preço de custo, dentre outras.
Exemplos como esses poderão deteriorar o ambiente concorrencial de muitos setores no Brasil. Portanto, o dispositivo apresentado no art. 21 do PLS 1.175/20 tem o condão potencializar o abuso de posição dominante por parte das OPSs em desfavor dos prestadores de serviços médico-hospitalares que podem ser levados a praticar preços abaixo dos custos para se manterem no mercado e não serem descredenciados.
Portanto, as alterações legislativas sob análise não tendem a favorecer o mercado, mas gerar incentivos perversos para o cometimento de infrações à ordem econômica, sobretudo, por àqueles que detém posição dominante, sem que, nesse período da pandemia do covid-19, haja mecanismos antitruste para frear e penalizar esses comportamentos junto ao CADE. Melhor seria que o mercado se ajustasse, sem a publicação de leis como esta.
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1 CAPÍTULO XI DO REGIME CONCORRENCIAL Art. 21. Fica suspensa até 31 de outubro de 2020 a aplicação dos incisos XV e XVII do § 3º do art. 36 e do inciso IV do art. 90 da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Parágrafo único. As demais infrações previstas no art. 36 da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, quando apreciadas pelo órgão competente, se praticadas a partir de 20 de março de 2020, deverão considerar as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia do coronavírus (covid-19).
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*Elvino de Carvalho Mendonça é ex-conselheiro do CADE e consultor econômico do escritório Mendonça Advocacia.
*Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça é sócia do escritório Mendonça Advocacia.