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As contratações públicas em tempos de pandemia em sintonia com a futura "Nova Lei de Licitações"

Diante do gravíssimo cenário instaurado pela pandemia do novo coronavírus no país, novas regras em matéria de contratações públicas precisaram ser editadas enquanto uma nova lei geral não se consolida.

2/6/2020

Com a missão de substituir as principais legislações sobre contratações públicas1 e após muitas alterações em seu texto original, o projeto de lei 1.292/95 foi aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados e, atualmente, tramita no Senado Federal.

A nova Lei de Licitações se propõe a atualizar as regras de contratação da Administração Pública direta e indireta, em níveis federal, estadual e municipal, com exceção das empresas públicas e sociedades de economia mista, já submetidas à lei 13.303/16 – Lei de Responsabilidade das Estatais2.

Ocorre que, diante do gravíssimo cenário instaurado pela pandemia do novo coronavírus no país, novas regras em matéria de contratações públicas precisaram ser editadas enquanto uma nova lei geral não se consolida.

Assim, foi publicada a lei federal 13.979/203 e, mais recentemente, a medida provisória 961/204, regras transitórias, que vigerão durante o período de pandemia e poderão ser incorporadas à Nova Lei de Licitações e Contratos.

Pois bem. Sem externar aqui qualquer juízo de valor sobre o conteúdo desses recentes textos legais (em muitos pontos polêmicos), cabe destacar o alinhamento dessas novas regras à inteligência do art. 22, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro quanto à necessidade de se considerar o contexto fático em que os atos administrativos estão sendo praticados.

De fato, resguardadas as críticas cabíveis à novel legislação federal, é incontroversa a necessidade de se garantir maior dinamismo nos procedimentos administrativos de contratações públicas em casos tão urgentes e excepcionais como os atuais, em prestígio à celeridade e à eficiência esperada do Estado (em sentido amplo).

Nesse contexto, a lei federal 13.979/20 prevê que as contratações relacionadas ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus podem ser concretizadas diretamente por dispensa de licitação - enquanto perdurar o estado de emergência de saúde pública de importância internacional.

O objeto desses contratos diretos varia desde a aquisição de bens, até serviços de engenharia, independentemente do valor.

As contratações baseadas nessa lei devem ainda ser imediatamente disponibilizadas em sítio oficial específico na internet, contendo (no que couber) as informações previstas na Lei de Acesso à Informação (lei federal 12.527/11), à luz do princípio da publicidade.

Em caráter de exceção, admite-se (I) a aquisição de bens e a contratação de serviços com uso de equipamentos “seminovos”, resguardada a responsabilidade do fornecedor/contratado pelas condições de uso do referido bem; e (II) a contratação de empresas declaradas inidôneas ou que estejam cumprindo penalidade de suspensão do direito de licitar e contratar com o poder público.

Nesse último caso, além da ordinária justificativa para a celebração do contrato administrativo, deve ser comprovado que contratada é a única capaz de executar o objeto pretendido pela Administração Pública.

Essa condição, na verdade, revela que a disposição do art. 4º, § 3º da lei 13.979/20 cuida de inexigibilidade de licitação, e não de dispensa, sendo recomendável (I) o registro dessa atecnia no respectivo procedimento administrativo de contratação e (II) a observância (mesmo que subsidiariamente) dos requisitos previstos na lei 8.666/93 para essa hipótese de contratação.

Ainda de acordo com a comentada lei federal5, admite-se a adoção do sistema de registro de preços para as contratações e compras por mais de um órgão ou entidade pública (que serão, assim, consideradas compras nacionais).

Nesse caso, fica a cargo do gerenciador da compra o estabelecimento de prazo (entre dois e quatro dias úteis) para que outros órgãos e entidades manifestem seu interesse em participar do sistema de registro de preços.

Importante também ser ressaltado que as contratações baseadas na lei federal 13.979/20 pressupõem: (I) a ocorrência de situação de emergência; (II) a necessidade de pronto atendimento dessa situação emergencial; (III) a existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e (IV) a limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da situação de emergência. 

Já nos casos em que for possível a realização de procedimento licitatório (via que deve ser privilegiada), igualmente, devem ser observadas as alterações temporárias introduzidas pela referida lei.

Nesse sentido, os pregões (eletrônicos ou presenciais) cujos objetos sejam a aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de que trata esta Lei, tiveram seus prazos legais reduzidos pela metade.6

Além disso, os recursos administrativos eventualmente interpostos serão recebidos apenas no efeito devolutivo (sem suspensão do procedimento licitatório durante suas análises), havendo ainda dispensa de realização das audiências públicas trazidas no art. 39 da lei 8.666/937.

Como forma de abreviar o procedimento tradicional de contratação de bens e de serviços comuns, a nova legislação federal também desobriga os gestores dos estudos preliminares e prevê o gerenciamento de riscos da contratação somente durante a gestão do contrato.

Também é permitida a apresentação de termo de referência ou de projeto básico simplificados, desde que contenham, ao menos: (I) a declaração do objeto, (II) a fundamentação simplificada da contratação, (III) a descrição resumida da solução apresentada, (IV) os requisitos da contratação e (V) os critérios de medição e pagamento e (VI) as estimativas de preços.

Quanto aos preços obtidos a partir da estimativa de que trata o inciso VI do caput, frise-se não haver impedimento à contratação pelo Poder Público por valores superiores decorrentes de oscilações nos preços, especialmente em razão do cenário atual, hipótese que deverá ser justificada nos autos.

Excepcionalmente, as contratadas também poderão ser dispensadas da apresentação de documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista e de outros requisitos de habilitação (não definidos em lei), resguardados a exigência de comprovação de regularidade junto à Seguridade Social e o disposto no art. 7.º, inc. XXXIII, da CR/888.

Já os prazos de duração dos contratos regidos por esta lei serão de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto for necessário enfrentar a referida situação de emergência em saúde pública.

Por último, merece ser destacado que, nos termos da lei 13.979/20, os contratados estão obrigados a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões ao objeto ajustado até o limite de cinquenta por cento do valor inicial atualizado do contrato.

Quanto às contratações não relacionadas ao enfretamento desse cenário de calamidade pública9, mas firmadas nesse período10, a recente medida provisória 961/20 cuidou de trazer importantes novidades (não menos polêmicas) ao ordenamento jurídico.

Segundo a MP, de 06 de maio de 2020, a Administração Pública (de todos os entes federativos, de todos os Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos – art. 1º) está autorizada a celebrar contratos administrativos diretos, por dispensa de licitação, nos limites estabelecidos na lei 13.303/16 (Lei das Estatais).

Logo, (I) para as obras e serviços de engenharia de até R$ 100.000,00 (cem mil reais), desde que não se refiram a parcelas de uma mesma obra ou serviço, ou, ainda, para obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente e (II) para os outros serviços e compras no valor de até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez, a contratação poderá ser direta, dispensando-se a realização de licitação.

A MP também autoriza a antecipação de pagamentos nos contratos administrativos, desde que (I) represente condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço, ou, ainda, propicie significativa economia de recursos; (II) haja previsão expressa em edital ou no processo administrativo de contratação direta; e (III) seja exigida a devolução integral do valor antecipado em caso de inexecução do objeto contratado.

Diante dos riscos inerentes ao pagamento anterior à efetiva execução do contrato, está previsto no § 2.º do art. 1.º da MP 961/20 a possibilidade de se exigir: a comprovação da execução de uma parte ou de etapa inicial do objeto contratado, para que haja antecipação apenas do valor remanescente; a prestação de garantia nas modalidades de que trata o art. 56 da lei 8.666/93, de até trinta por cento do valor do objeto; a emissão de título de crédito pelo contratado; o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração; e a exigência de certificação do produto ou do fornecedor.

Ademais, é vedado o pagamento antecipado pela Administração na hipótese de prestação de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra.

Por fim, a MP 961/20 estende a aplicação do Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC, de que trata a lei 12.462, de 04 de agosto de 2011, para licitações e contratações de quaisquer obras, serviços, compras, alienações e locações.

O Regime Diferenciado de Contratação – RDC, criado em 2011 para atender às obras da Copa do Mundo de 2014 e, posteriormente, estendido a empreendimentos da Olimpíada de 2016 e a algumas obras do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, prevê a possibilidade de sigilo do orçamento, de contratação sem projeto executivo e a existência de fase única de recursos.

Em síntese, as contratações sob esse regime devem buscar: (a) padronização dos objetos contratados e dos instrumentos convocatórios; (b) a maior vantagem para a Administração Pública; (c) condições de aquisição, de seguros, de garantias e de pagamento compatíveis com as condições do setor privado, inclusive mediante pagamento de remuneração variável conforme desempenho; (d) a utilização, sempre que possível, de mão de obra, materiais, tecnologias e matérias-primas existentes no local da execução, conservação e operação do bem; (e) o parcelamento do objeto, visando à ampla participação de licitantes, sem perda de economia de escala; e (f) a ampla publicidade, em sítio eletrônico, de todas as fases e procedimentos do processo de licitação, assim como dos contratos.

Conclusão

Pontuadas as principais inovações trazidas pelas legislações federais transitórias, é de se reconhecer a necessidade de dinamizar os processos de contratações públicas, principalmente diante desse grave cenário de calamidade pública causada pela pandemia da covid-19.

Com efeito, essa tendência desburocratizante também está presente no projeto de lei 1.292/95, em tramitação no Congresso Nacional, por isso é razoável acreditar que algumas novidades introduzidas pela lei 13.979/20 e pela medida provisória 961/20 podem ser incorporadas à nova Lei Geral de Licitações.

Isso porque não é demais ressaltar que essas inovações legislativas não afastam a necessidade de motivação dos atos administrativos; o respeito ao equilíbrio econômico-financeiro dos negócios firmados; e, principalmente, o dever de observância aos princípios norteadores da Administração Pública e das condutas probas dos seus agentes.

Na verdade, o dinamismo e a simplificação dos procedimentos de contratação pública devem trazer consigo grande responsabilidade aos gestores no emprego inteligente e cauteloso dos recursos públicos disponibilizados para o enfretamento dessa pandemia, impondo-lhes maior cuidado no registro de todos os obstáculos fáticos justificantes da adoção dessas inovações legislativas para o atendimento ao interesse público envolvido no combate ao novo coronavírus.

_________

1 Notadamente, a Lei de Licitações (lei 8.666/93), a do Pregão (lei 10.520/02) e a do Regime Diferenciado de Contratações (lei 12.462/11).

2 Ressalvado o disposto no art. 182 do PL, que acrescenta capítulo ao Código Penal sobre crimes em licitações e contratos administrativos.

3 Com as alterações trazidas pela medida provisória 926/20 e pela medida provisória 951/20.

4 Medida provisória 961/20 publicada em 06 de maio de 2020.

5 Inclusão realizada pela medida provisória 951/20.

6 Os prazos em dias ímpares serão arredondados para os números inteiros anteriores. Por exemplo, se o prazo original for de 05 (cinco) dias úteis, o novo prazo será de 02 (dois) dias úteis.

7 Licitação ou conjunto de licitações simultâneas ou sucessivas, com valor total superior a R$150.000.000,00, serão, obrigatoriamente, iniciadas com uma audiência pública concedida pela autoridade responsável com antecedência mínima de 15 (quinze) dias úteis da data prevista para a publicação do edital, e divulgada, com a antecedência mínima de 10 (dez) dias úteis de sua realização, pelos mesmos meios previstos para a publicidade da licitação, à qual terão acesso e direito a todas as informações pertinentes e a se manifestar todos os interessados.

8   Art. 7°. (...) XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.

9   Segundo o decreto legislativo 06/20.

10 Independente do seu prazo ou do prazo de suas prorrogações.

_________

*Flávio Cheim Jorge é professor titular da UFES. Mestre e doutor em Direito, sócio advogado do escritório Cheim Jorge Abelha Rodrigues Advogados Associados.





*Mariana Fernandes Beliqui
é especialista em Direito Administrativo. Advogada e consultora jurídica do escritório Cheim Jorge Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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