"No Brasil, até o passado é incerto." Supostamente cunhada pelo ex-ministro Pedro Malan, e repetida por muitos, essa frase reflete muito bem vários aspectos sobre o país. Infelizmente, ela também se aplica ao Direito Tributário. Não só o passado, como também o futuro é (sobremaneira) duvidoso.
Como é sabido, nas últimas semanas, a programação originalmente estabelecida para os trabalhos do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) foi significativamente afetada em decorrência da pandemia causada pelo coronavírus (covid-19). Em função dela (e também por motivos diversos), várias discussões tributárias que deveriam ter sido finalizadas no STF no 1º semestre de 2020, não o foram, por terem sido retiradas de pauta, para não mencionar os casos que tiveram suas análises interrompidas por pedidos de vistas dos ministros da Corte.
A título exemplificativo, cabe mencionar o conflito da tributação de software (ADIn 5.659 e RE 688.223 - tema 590, retirados da pauta da sessão de 18.03.20) que, a depender da delimitação e alcance das decisões a serem proferidas pelo STF, podem gerar significativas contingências fiscais aos contribuintes, ou representar vultosos valores a serem recuperados (indébito tributário).
No âmbito federal, um exemplo significativo é a discussão envolvendo a exclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, que, após longos anos, teve julgamento favorável aos contribuintes no STF, em março de 2017 (RE 574.706/PR).
Em relação a esse tema, os contribuintes seguem aguardando ansiosamente o desfecho definitivo da questão com o julgamento dos Embargos de Declaração opostos pela União Federal, por meio do qual se busca a modulação dos efeitos daquela decisão para averiguação das implicações práticas (indicação do valor ou “qual” o ICMS a ser excluído da base de cálculo das contribuições – o destacado nas notas fiscais ou o efetivamente pago). Desfecho esse, que deveria ter ocorrido no último 1º de abril, mas foi retirado da pauta de julgamento da Suprema Corte.
Nesta discussão, verifica-se que após o trânsito em julgado das decisões judiciais próprias, alguns contribuintes vêm habilitando seus créditos e praticando a compensação dos valores, observados os limites (contestáveis) estabelecidos pelo Fisco Federal, nos termos da Solução de Consulta Interna COSIT 13 de 2018 e do artigo 27, parágrafo único, da instrução normativa (IN) RFB 1.911 de 2019.
É sobre este particular, a recuperação de indébitos fiscais, que o presente artigo pretende tratar. Considerando os efeitos dessas decisões nos registros contábeis dos contribuintes, especialmente para fins de apuração do Imposto sobre Renda (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a temática da tributação do indébito tributário ganha contornos próprios e ainda mais relevância nos últimos meses.
Assim, o que se propõe é suscitar a discussão a respeito do momento de tributação do indébito tributário, sem a pretensão de exaurir a questão.
Após anos de contencioso judicial, o que o contribuinte espera é que, com o fim da discussão, o assunto seja definitivamente encerrado e ele veja seu direito assegurado. Todavia, não é o que acontece. Isso porque, ao ter sua decisão judicial transitada em julgado, o contribuinte ainda deverá proceder com os trâmites administrativos para reaver as quantias e, ainda, pagar os tributos incidentes sobre o acréscimo patrimonial envolvido (notadamente o IRPJ e a CSLL). Ocorre que não há consenso a respeito do marco temporal em que tais valores recuperados devem ser oferecidos à tributação – o tema certamente é polêmico.
De início, importante registrar que o artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN) definiu que o fato gerador do Imposto de Renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda (acréscimo patrimonial). A CSLL, por seu turno, tem como base de cálculo o valor do resultado do exercício, antes da provisão para o Imposto de Renda, conforme dispõe o artigo 2º da lei 7.689 de 1988.
A doutrina especializada pontua que “não basta a existência de uma riqueza para que haja a tributação; é necessário que haja disponibilidade sobre a renda ou sobre o provento de qualquer natureza”.1 As lições ainda são válidas no sentido de aclarar que “se não houver disponibilidade [econômica ou jurídica], não há tributação. O legislador complementar não nos diz quando a renda ou o provento está disponível. Cabe ao intérprete conceituar a disponibilidade.”2
Nesse contexto, segundo a sistemática do Lucro Real, o IRPJ e a CSLL são determinados a partir do lucro contábil apurado pela pessoa jurídica, acrescido de ajustes (positivos e negativos) requeridos pela legislação fiscal, nos termos do artigo 6º do decreto-lei 1.598 de 1977.
Feitas essas considerações preliminares, passemos à análise do momento em que ocorre a disponibilidade de renda do indébito tributário para fins de tributação do IRPJ e da CSLL no Lucro Real. Como regra, as empresas adotam a interpretação dada pela Receita Federal do Brasil (RFB) por meio do ato declaratório interpretativo (ADI) SRF 25 de 2003, o qual determina que:
(I) no caso de sentenças líquidas (em que os valores do indébito são expressamente reconhecidos), o IRPJ e a CSLL são devidos sobre o indébito tributário quando do trânsito em julgado da decisão final favorável ao contribuinte, pelo regime de competência; e
(II) no caso de sentenças ilíquidas, o IRPJ e a CSLL devem ser recolhidos (II.I) no trânsito em julgado da sentença que julgar os embargos à execução; ou (II) na data da expedição do precatório.
No caso das ações tributárias envolvendo a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS, por exemplo, a liquidez “numérica” dos créditos dificilmente acontece com o trânsito em julgado, sendo que a apuração quantitativa dos valores é realizada unilateralmente pelo contribuinte. Isto posto, verifica-se que, atualmente, raramente os contribuintes aguardam a expedição de precatórios para reaverem o indébito, optando por habilitar os créditos reconhecidos judicialmente, para posterior apresentação das Declarações de Compensação (DCOMPs).
Acontece que, ao editar o ADI SRF 25 de 2003, a RFB não se manifestou expressamente a respeito do momento da incidência do IRPJ e da CSLL nos casos de recuperação do indébito mediante futura compensação, quando a sentença for ilíquida.
Ora, se no caso de sentenças ilíquidas o IRPJ e a CSLL não devem incidir quando do trânsito em julgado que reconhece o direito creditório do contribuinte (como a própria administração tributária federal entende), em qual momento esses tributos deveriam incidir? As discussões giram, sobretudo, em torno de 4 (quatro) possibilidades:
(I) quando do reconhecimento contábil do acréscimo relativo ao indébito reconhecido judicialmente;
(II) quando do deferimento do pedido de habilitação dos créditos junto ao Fisco Federal;
(III) quando da efetiva compensação dos créditos com outros tributos federais (transmissão das DCOMPs); ou ainda
(IV) quando da homologação (tácita ou expressa) das compensações apresentadas, pela RFB.
O que se indaga é qual o momento em que o crédito tributário possui valor mensurável e liquidez suscetível, bem como estará disponível ao contribuinte, de modo que possa se submeter à tributação.
Quanto ao reconhecimento de um ativo nas demonstrações contábeis de uma empresa, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) editou o Pronunciamento Contábil 25 (CPC 25), aprovado pela deliberação CVM 594 de 2009, determinando que seja admitido o reconhecimento do direito creditório do contribuinte, para fins contábeis, quando a entrada dos montantes seja praticamente certa.
Ocorrendo trânsito em julgado favorável aos contribuintes (nas ações em que se busca restituir o indébito), pode-se atestar, em princípio, que a entrada dos benefícios econômicos é praticamente certa, razão pela qual é possível sua contabilização.
No entanto, o mero reconhecimento contábil seria suficiente para ensejar a tributação do IRPJ e da CSLL sobre tais valores, uma vez que as autoridades fiscais ainda podem limitar os créditos em 02 (dois) momentos distintos: (I) na habilitação prévia dos créditos e (II) na homologação (tácita ou expressa) das compensações (DCOMPs) apresentadas?
Entendemos que não.
A este respeito, há julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) no sentido de que o mero lançamento contábil não configura fato gerador desses tributos, devendo o beneficiário efetivamente adquirir disponibilidade econômica ou jurídica da renda para ser tributado. É dizer que, não apenas o crédito contábil, mas a disponibilidade efetiva da renda deve ser avaliada no caso concreto. É o caso, por exemplo, do acórdão 9202-003.120 (sessão de 26.03.14), ocasião em que a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) concluiu que, para configurar renda, as prestações que passam a compor o patrimônio do sujeito passivo devem ser disponíveis, ou seja, livres, desimpedidas, desembaraçadas, isentos de condições ou reservas.
Tal entendimento pode ser aplicado, mutatis mutandis, ao caso concreto dos contribuintes que tiveram decisões judiciais reconhecendo seu direito à repetição do indébito. Em outras palavras, o simples registro do ativo no balanço do contribuinte não implicaria imediata disponibilidade em seu favor, ante a dependência de atos do Fisco para ter acesso aos recursos que lhe seriam devidos em função das decisões judiciais transitadas em julgado.
No que diz respeito ao segundo potencial momento para a tributação (a habilitação prévia de créditos decorrentes de ação judicial), este consiste em procedimento administrativo estabelecido pelos órgãos fazendários a fim de garantir que a declaração de compensação de crédito reconhecido judicialmente não ocorra de forma que possa lesionar o interesse público, com previsão no artigo 100 da IN RFB 1.717 de 2017.
O que se infere, a partir da leitura do parecer normativo COSIT 11 de 2014, é que a habilitação prévia do crédito é tão somente um exame sumário para atestar questões preliminares relativas a ele, como a existência do trânsito em julgado e a titularidade da ação judicial.
A respeito desse procedimento, o artigo 101 da IN RFB 1.717 de 2017 é expresso ao afirmar que o deferimento do pedido de habilitação do crédito não implica reconhecimento do direito creditório ou homologação da compensação. Dessa forma, embora a habilitação seja imprescindível para autorizar o posterior pedido de compensação, é possível argumentar que não há ainda reconhecimento dos valores por parte do Fisco, tampouco disponibilidade efetiva dos valores por parte dos contribuintes.
Uma terceira linha de raciocínio é a de que o IRPJ e a CSLL incidiriam quando o contribuinte transmite as compensações por meio do programa eletrônico denominado “PER/DCOMP”, momento em que utiliza os créditos já habilitados.
Tal compreensão parte do fato de que a transmissão da DCOMP tem efeito extintivo imediato sobre o crédito tributário (CTN, artigo 156, inciso II), com seu respectivo impacto patrimonial, ainda que sujeito a condição resolutória posterior (artigo 74, §2º da lei 9.430 de 1996). No mais, ainda que a transmissão da DCOMP esteja sujeita a condição resolutória, o CTN determina que os atos jurídicos condicionais reputam-se perfeitos e acabados desde o momento da sua prática, nessa circunstância (artigo 117, inciso II).
Neste momento, verifica-se que a capacidade contributiva da pessoa jurídica restaria evidenciada com a liquidação do débito objeto da compensação, mediante utilização do crédito a que faz jus. Em termos práticos, o resultado da companhia seria afetado na medida em que ocorreria a baixa de um débito tributário registrado no passivo contábil em contrapartida com um crédito tributário existente no ativo, não havendo movimentações financeiras no caixa (dinheiro em espécie).
Em casos análogos, o CARF já se manifestou no sentido de que a disponibilidade jurídica no caso do indébito é constatada somente quando houver o pagamento do precatório, ou quando realizada efetivamente a sua compensação, relativizando a aplicação do regime de competência.3
Nos filiamos a esse entendimento, na medida em que haverá o fato gerador do IRPJ e da CSLL tão logo haja a disponibilidade da renda (o que aconteceria com a apresentação da compensação, cujo efeito imediato é o da extinção do passivo fiscal, representando um recebimento efetivo e incondicional do contribuinte).
Por fim, há uma quarta linha interpretativa no sentido de que a liquidez do crédito tributário para fins de caracterização da disponibilidade da renda ocorreria apenas no momento da homologação da compensação pela RFB, o que pode ocorrer em até 5 (cinco) anos, contados da data da entrega da DCOMP, nos termos do artigo 74, §5º da lei 9.430 de 1996.
Isso porque, é apenas com a homologação do pedido de compensação pela autoridade fiscal que se poderia falar em crédito recuperado de forma definitiva pelo contribuinte.
Com base nos marcos temporais apresentados, resta-nos acompanhar o deslinde dessa discussão, dadas as possíveis interpretações restritivas por parte dos órgãos fazendários, sobretudo em tempos de queda na arrecadação (lembre-se que, segundo dados divulgados pelo Ministério da Economia, a arrecadação total das Receitas Federais atingiu, em abril de 2020, o valor de R$ 101.154 milhões, registrando decréscimo real (IPCA) de 28,95% em relação a abril de 2019, resultado bastante influenciado pela queda de faturamento no período e também pelos diversos diferimentos decorrentes da pandemia causada pelo coronavírus).4
O tema, como se vê, certamente comporta espaço para debates aprofundados, com base nas premissas constitucionais regulamentadas pelo CTN, bem como na jurisprudência aplicável.
Quando os contribuintes finalmente se sagram vencedores nas disputas judiciais buscando reaver valores recolhidos indevidamente, começam a se preparar para as batalhas seguintes. No Brasil, se o passado é incerto, o futuro, nem se fale.
1 SCHOUERI, Luís Eduardo; MOSQUERA, Roberto Quiroga, Manual da Tributação Direta da Renda. São Paulo, SP: IBDT, 2020, pág. 15.
2 Ibidem.
3 CSRF, Acórdão 9101-003.141, sessão de 04.10.17.
4 Análise da Arrecadação das Receitas Federais - Abril/20 - Relatório publicado em Maio/2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 22.05.20.
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