I – O sistema-jurídico democrático
Antes de propor uma reposta ao tema deste artigo faz-se necessário conceituar e bem compreender aquilo que estamos a tratar, isto é: o sistema jurídico-democrático.
Numa visão mais alinhada ao positivismo-normativo ou positivismo-ético1, o Direito deve assegurar a existência de um sistema jurídico-democrático, isto é, deve assegurar um conjunto organizado de normas jurídicas que regulam o comportamento humano por meio de um processo democrático de positivação de regras e princípios, os quais devem ser observados pelos aplicadores do Direito (em especial o Poder Executivo e o Judiciário), em detrimento de princípios não positivados democraticamente, tais como meras convicções pessoais, interesses institucionais ou político-partidários fora daqueles escolhidos democraticamente.
Esta visão de Direito, por obvio, se alicerça fortemente no valor da democracia e por isso melhor se opõe às formas de absolutismo, de tirania, de ditadura ou de ativismo judicial. Compreende que os valores ideológicos mais amplos (como progressismo ou conservadorismo) ou até mesmo os valores morais mais concretos (como direito ao aborto, pena de morte, liberação do consumo de drogas etc.) são relativos numa sociedade ampla e plural, razão pela qual geram os mais diversos desacordos e pontos de vista. Sustenta, por tudo isso, que a melhor fórmula de resolução destes desacordos é aquela que propicie uma discussão abrangente e legítima com toda a sociedade, capaz de capturar o mais próximo possível do substrato da vontade popular. Com efeito, dentre os mecanismos democráticos que conhecemos hoje, podemos concluir que este processo melhor se perfaz por meio de debates no Poder Legislativo, pois somente neste local os descordos serão dirimidos entre os representantes diretos do povo, oriundos das mais diversas regiões, das mais diversas correntes de pensamento e também das minorias ali representadas por um ou outro parlamentar, sendo todos legitimados ou reprovados por meio de eleições gerais2.
Não se desconsidera, aqui, todos os defeitos da democracia, mas como disse Winston CHURCHIL, em sua irônica frase: "a democracia é o pior dos regimes, mas não há nenhum sistema melhor do que ela".
Outrossim, importante salientar, desde logo, que este artigo não se propõe a fazer uma defesa político-partidária de ninguém, nem tampouco uma defesa ou ataque político-institucional do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. Há, aqui, apenas um propósito simples, claro e direto: preocupar-se com a manutenção e a sobrevivência do sistema jurídico-democrático durante e após a grave crise causada pela pandemia do "coronavírus".
Pois bem, após delimitar o objeto de estudo e conceituar o que se entende por sistema jurídico-democrático, passamos ao segundo esforço metodológico que se faz necessário para responder à "pergunta-tema" deste artigo. Com efeito, para responder se uma grave crise sanitária pode colocar em risco um sistema jurídico-democrático, teremos que ultrapassar um desafio empírico, ou seja, teremos que analisar se esta situação de crise produz, na prática, o potencial de comprometer a existência de um sistema jurídico-democrático. Por isso mesmo, torna-se muito importante fazer uma longa viagem ao passado, pois assim poderemos procurar situações análogas que já demonstraram, na prática, seu potencial destrutivo contra o sistema jurídico-democrático. Ao final da reflexão histórica, destarte, poderemos compreender melhor a realidade presente e assim traçar alguma resposta ao tema central deste artigo.
Iniciemos nossa viagem.
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1 A corrente de pensamento denominada positivismo normativo ou positivismo ético tem como seus principais expoentes Neil MACCORMICK (Institutions of Law, 2007), Tom CAMPBELL (Prescriptive Legal Positivism, 2004), e Jeremy WALDRON (Law and Disagreement, 1999).
2 Reconhecemos diferentes visões filosóficas de Direito que se contrapõe ao positivismo normativo, tais como o interpretativismo jurídico de DWORKIN apoiado nos ideais do liberalismo americano (Levando os Direitos à Sério, 1977), a "teoria crítica" oriunda da Escola de Frankfurt, de Theodor ADORNO e Max HORKHEIMER (Dialética do Esclarecimento), ou de Eugen ERLICH (Fundamentos da Sociologia do Direito, 1986), apoiada nos ideais sociológicos do Direito, ou até mesmo de outras correntes do positivismo moderno pós HART, como o positivismo exclusivo de Joseph RAZ (The Authoriy of Law, 1979), apoiado na ideia de autoridade do Direito e numa separação radical entre Direito e Moral. Entretanto, diante das mais diversas correntes jusfilosóficas, entendo que o positivismo normativo é certamente aquela que melhor defende o ideal da democracia, razão pela qual bem se encaixa aos propósitos deste artigo, no sentido de alertar sobre os perigos do absolutismo, do totalitarismo, das ditaduras e do ativismo judicial. Ainda convém destacar a crítica mais comum que se faz ao positivismo normativo, isto é, a de que a democracia, como "governo das maiorias", pode esmagar os interesses das minorias. Contudo, esta corrente positivista esclarece que a defesa das minorias também pode ser melhor realizada com o processo legislativo, uma vez que neste campo de atuação todos os grupos e correntes tem poder de fala e de debate para advogar, numa relação de horizontalidade, em prol dos interesses de seus representados. Nesse sentido, a positivação dos direitos e princípios acolhidos no processo legislativo representaria um substrato muito mais amplo do aquele que seria produzido no processo judicial, pois nesta última esfera de Poder um pequeno grupo de tecnocratas decidiria criar o Direito sem amplo debate horizontal, livre de prestar contas eleitoralmente e sempre de forma autônoma, ou seja, desvinculado do papel político de representar os interesses de determinada corrente, como a minoritária.
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*Thulio Caminhoto Nassa é advogado. Especialista, mestre, doutorando e professor de Direito Administrativo na pós- graduação Latu Sensu da PUC/SP. Membro Titular da Comissão de Direito Administrativo da OAB/SP.