No mundo contemporâneo surgiu a necessidade de tutelar os dados de pessoas naturais e à livre circulação desses dados a fim de salvaguardar o direito fundamental à privacidade dos proprietários.
Em um breviário histórico recente da supramencionada proteção de dados no mundo, a União Europeia foi uma das pioneiras sobre o assunto ao confeccionar o Regulamento Geral de Proteção de Dados sob o número 2016-6791, assinado no dia 27 de abril de 2016, surtindo os seus efeitos a partir do dia 25 de maio de 2018 para todos os países membros.
Doravante, o Brasil no dia 14 de agosto de 2018 trouxe ao bojo do seu ordenamento jurídico a lei 13.7092 relativo à proteção dos dados das pessoas singulares, tendo a sua vigência prevista para o dia 15 de agosto de 2020, mas os projetos de leis 5.762/193 e 1.179/204 buscam postergar o seu prazo de vigor.
Nessa senda, em virtude da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ressalta-se o “Capítulo IV para o Tratamento de Dados pelo Poder Público”, fora promulgado o decreto 10.046/195 estabelecendo diretrizes para o compartilhamento de dados no âmbito da Administração Pública Federal, assim como criando o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados.
No entanto, compulsando os ditames no referendado decreto de lavra do presidente da República, nota-se o descompasso com a lei que precede a sua existência.
Insta frisar, que essa singela explanação se limitará somente em relação ao princípio da finalidade do já mencionado decreto.
O ato presidencial consubstanciado no decreto regulamentar de competência privativa do presidente da República por força do artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal6, tem por finalidade executar fielmente os dispostos preconizados na referida lei, observando irrestritamente o comando legal.
Nessa esteira, leciona José dos Santos Carvalho Filho7 a respeito da observância do decreto regulamentar em não contrariar àquela que justifica sua existência:
[...] o poder regulamentar não cabe contrariar a lei (contra legem), pena de sofrer invalidação. Seu exercício somente pode dar-se secundum legem, ou seja, em conformidade com o conteúdo da lei e nos limites que esta impuser [...].
Ainda em consonância sobre o poder regulador conferido ao presidente da República, o Supremo Tribunal Federal por intermédio do ministro Luiz Fux, em julgamento da ação direta de inconstitucionalidade 4.218-AgR8, asseverou:
É cediço na doutrina que ‘a finalidade da competência regulamentar é a de produzir normas requeridas para a execução de leis quando estas demandem uma atuação administrativa a ser desenvolvida dentro de um espaço de liberdade exigente de regulação ulterior, a bem de uma aplicação uniforme da lei, isto é, respeitosa do princípio da igualdade de todos os administrados’ (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. P. 336)." (ADI 4.218-AgR, rel. min. Luiz Fux, julgamento em 13.12.12, Plenário, DJE de 19.02.13).
Logo, não pode o decreto regulamentar sobrepor os ditames de lei ulterior, tendo em vista que sob a ótica do sistema hierárquico de normas do ordenamento jurídico brasileiro, o decreto está abaixo das normas infraconstitucionais e, portanto, deve observar suas limitações sob pena de invalidade.
Para tanto, sobre a hierarquia das normas, vaticina Hans Kelsen9:
Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior tem o seu fundamento de validade na norma do escalão superior. Se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando em harmonia com uma norma do escalão superior [..].
Em conformidade com o excerto arvorado acima, aduz categoricamente sobre a impossibilidade de uma norma em grau inferior conflitar com outra superior.
Outrossim, o decreto 10.046/19 inovou nas suas disposições ao trazer novas terminologias adversas daquelas contidas na Lei Geral de Proteção de Dados, como “atributos biográficos” e “atributos biométricos”, contidos nos incisos I e II do artigo 2º, respectivamente.
Dessa forma, com a inovação destas terminologias dada pelo Decreto Presidencial evidencia de forma inequívoca a dissonância com a LGPD, seja pelo desprezo da definição de dado pessoal conferido pela lei 13.709/18, assim como pelo tratamento desarrazoado e sem especificidade dos dados pessoais sensíveis que o decreto equivocadamente denomina de atributos biográficos e biométricos, correspondente ao artigo 5º, incisos I e II, da LGPD.
Nessa senda, ante a inobservância dos conceitos trazidos pela legislação pormenorizada de proteção de dados, em especial, dados sensíveis, patente é a violação do princípio da finalidade em que requer um tratamento legítimo e específico, ora consagrado pelo artigo 6º, inciso I, da LGPD, ao passo que o Estado solidifica a transgressão do direito fundamental a intimidade, à vida privada, à honra e imagem dos proprietários dos dados, previsto no artigo 5º, inciso X, da Lei Maior.
Ademais, no que pese o decreto em querela ter como finalidade dentre as quais, simplificar a oferta de serviços públicos, orientar, formular, implementar, avaliar e monitorar as políticas públicas dentro da Administração Pública Federal, não nos parece razoável manter um amplo cadastro irrestritos de dados que não estejam em consonância com a lei 13.709/19.
Não é forçoso ressaltar, que a própria Constituição Federal no caput do seu artigo 37, assevera a respeito da obediência ao princípio da legalidade que os Entes da Federação devem observar, ou seja, o Estado só poderá agir nos termos que a lei permitir, caso contrário, incorrerá na ilegalidade.
Portanto, o decreto 10.046/19 extrapolou os seus limites de regulamentar e de executar a legislação específica no âmbito federal ao inovar em conceitos diversos daqueles expressos na LGPD, de modo que não restou demonstrado a real finalidade do ato presidencial perpetrado pelo Chefe do Poder Executivo.
Sendo assim, ante ao exposto, a vigência do referido decreto não é correlato ao princípio da segurança jurídica, de modo que os seus efeitos deverão ser sustados imediatamente pelo Congresso Nacional, por força do artigo 49, inciso V, da Carta Magna Brasileira.
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PARLAMENTO EUROPEU. Regulamento Geral de Proteção de Dados. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 de abril de 2020.
BRASIL. Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 15 de ago. 2018. Seção 1. Nº 157. p. 59. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 de abril de 2020.
BRASIL. Câmara dos Deputados. projeto de lei PL 5.762/19. Altera a lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, prorrogação da data de entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais para o dia 15 de agosto de 2022. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 de abril de 2020.
BRASIL. Senado Federal. projeto de lei 1.179/19. Dispõe sobre o Regimento Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19). Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 de abril de 2020.
BRASIL. Decreto 10.046, de 9 de outubro de 2019. Dispõe sobre a Governança no Compartilhamento de Dados no Âmbito da Administração Pública Federal e Institui o Cadastro Base do Cidadão e o Comitê Central de Governança de Dados. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 10 de out. 2019. Seção 1. Nº 197. p. 02. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 de abril de 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 de out. de 1988. Seção 1. Nº 191-A. p. 1. Disponível clicando aqui. Acesso em: 01 de abril de 2020.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 14ª Ed. Rio de Janeiro. Editora Lummen Juris. 2005, pág. 44.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.218-AgR-DF. Relator: Ministro Luiz Fux. Pesquisa de Jurisprudência. Acórdão, 13 de dez. de 2012. Disponível clicando aqui. Acesso em: 02 de abril. de 2020.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Hans Kelsen. Tradução João Baptista Machado. 6ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ISBN 833360836-5. pág. 146. Disponível clicando aqui. Acessado em: 02 de abril de 2020.
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*Kleber Vasconcelos é advogado e atuante no Direito Cível.