A inovação tem sido entendida como a criação ou o desenvolvimento de novas formas de fazer as coisas, muitas vezes as mesmas coisas, para que melhor atendam às necessidades da sociedade ou de certos aspectos da atividade humana. A inovação também é aplicada na ciência do Direito, aperfeiçoando e criando novas formas para a disciplina do comportamento da sociedade. Há uma importante área do Direito que tem especial e premente necessidade de aperfeiçoamento. Trata-se do sistema de contencioso tributário no Brasil, judicial e administrativo, congestionado e ineficiente, fonte de enorme prejuízo financeiro e institucional para o País. Seria muito útil que se desenvolvesse para essa área inovação adequada a enfrentar inteligentemente a dificuldade de se fazer justiça tributária no Brasil.
Ninguém mais, hoje, tem dúvida quanto à necessidade de aperfeiçoar o sistema de solução de litígios entre fiscos e contribuintes. A elevada litigiosidade nessa matéria e a excessiva demora na resolução dos litígios tributários atrasam a arrecadação dos impostos pelo Estado e prejudicam a atividade econômica dos contribuintes. Demora na solução dos processos, atraso na arrecadação dos impostos e prejuízo da atividade econômica, que é a fonte geradora da receita tributária, são uma combinação extremamente negativa de elementos da maior relevância para a saúde do Estado e de quem o financia.
A necessidade de melhora desse sistema é sentimento comum entre todos que atuam no contencioso tributário estatal - a administração tributária, em todos os níveis federativos; o judiciário federal e estadual, em todas as suas instâncias; os tribunais administrativos e os contribuintes em todo o País. É consenso que, do jeito que está, o contencioso tributário brasileiro não pode ficar.
Este artigo pretende destacar, mais uma vez, que é possível inovar no falido sistema de contencioso tributário e, para isso, implantar no Brasil a arbitragem tributária – que será uma nova forma e uma terceira via para resolver litígios tributários fora do Judiciário e dos tribunais administrativos.
Tributarista que sou desde o início da minha advocacia e arbitralista que passei a ser quando editada a Lei de Arbitragem Brasileira, aprendi a praticar e a admirar a arbitragem privada para a solução de conflitos entre particulares e entre estes e o próprio Estado. Cresceu em mim a convicção de que será possível unir a arbitragem ao sistema de contencioso tributário no Brasil para atender à necessidade premente de aperfeiçoar a prática desse sistema. Passei então a empreender uma cruzada quase quixotesca para implantar a arbitragem tributária privada no Brasil e, através dela, criarmos uma justiça tributária rápida, imparcial, técnica e eficiente.
Sendo disciplinada inteligentemente por lei especial, implantada adequadamente e praticada sob o manto do Direito, a arbitragem tributária privada contribuirá decisivamente para a composição dos litígios tributários que inevitavelmente ocorrem na difícil relação entre fiscos e contribuintes.
A pergunta que logo se fez e ainda se faz, nesse específico propósito, é se a função jurisdicional de dizer qual o Direito aplicável num litígio tributário e fazer justiça in concreto ao Estado e ao contribuinte poderia ser exercida de forma adequada fora da jurisdição estatal, administrativa ou judicial. Poderiam árbitros privados escolhidos pelas partes e desvinculados do Estado, ter função jurisdicional plena de dizer o Direito ao Estado e ao contribuinte e fazer justiça, que se poderia chamar de uma justiça privada em matéria tributária? Caberia então, no Brasil de hoje, implantar a arbitragem tributária como uma nova e inovadora forma de contencioso tributário, complementar ao sistema estatal, administrativo e judicial?
Perguntas como essas não querem calar e cada vez mais são repetidas no Brasil. Ouso dizer que a resposta é ‘sim’ para todas elas – e comigo cada vez mais concordam outros tributaristas e arbitralistas também! Muitos dos litígios que, nessa matéria, congestionam enormemente os tribunais estatais, administrativos e judiciais podem, sim - e devem sim, ser resolvidos por arbitragem tributária privada realizada por árbitros privados em câmaras privadas.
A função de julgar litígios em matéria tributária deixaria de ser exclusividade da justiça estatal e os contribuintes passariam a contar também com uma justiça privada para esse mister, como já se faz em outros países. O melhor exemplo disso, para espanto de muitos, é a arbitragem tributária implantada em Portugal, legislada adequadamente e praticada pioneiramente, paralelamente ao contencioso estatal português, administrativo e judicial.
Sabemos que introduzir mudança tão inovadora em matéria tão sensível e relevante como a tributação imposta pelo Estado gera inevitavelmente forte resistência, seja da própria administração tributária, seja do Judiciário, seja dos tribunais administrativos. A necessidade de uma terceira via de contencioso tributário gera também firme adesão, dentro das mesmas esferas. A adesão se faz ante a evidência da solidez da arbitragem no Brasil e da certeza de sua utilidade no contencioso tributário do País. A resistência se faz sob o argumento de que arrecadar impostos e dizer o Direito em matéria tributária é função soberana e exclusiva do Estado e não caberia, então, implantar uma justiça privada ‘alternativa’ para julgar tal matéria, ainda que paralela à justiça estatal.
Faço aqui um parêntese. É importante desmistificar ser a arbitragem uma via alternativa ao judiciário estatal, como se convencionou chamar a partir da expressão em inglês dos ADRs–Alternative Dispute Resolution. Métodos privados de fazer justiça surgiram muito antes de o judiciário existir. Historicamente, a composição de conflitos era realizada diretamente pelas partes ou por pessoas reconhecidas pelas partes em suas comunidades – um ancião, um sábio, um líder religioso, um líder político. Ou era realizada pelos poderosos do momento – os reis, os senhores feudais, os chefes militares. Ainda hoje, em alguns lugares e em algumas religiões, conflitos entre seus integrantes são julgados dessa maneira.
O judiciário estatal institucionalizado e imparcial com a função de dizer o Direito e fazer justiça veio depois, como alternativa aos métodos privados anteriores. Alternativa, pois, não é a arbitragem privada. Nem alternativos são os outros métodos extrajudiciais – a mediação, a conciliação, o comitê de resolução de conflitos etc. Todos esses métodos, inclusive o próprio judiciário, são múltiplas portas de acesso à justiça, adequados e disponíveis para utilização pela sociedade e pelo Estado conforme a natureza das controvérsias a eles endereçadas.
Fecho o parêntese e completo que, de alternativa inovadora, o judiciário estatal passou a ser a única e exclusiva via a que as partes pudessem recorrer para resolver suas diferenças, o que fez desaguar em suas portas quantidade enorme de processos decorrentes dos inevitáveis conflitos que surgem no convívio em sociedade. Com isso, a função de dizer o Direito e de resolver os conflitos passou a ser realizada com excessiva demora e em tempo nada razoável.
Surge novamente a necessidade de implantar formas complementares para que a composição dos litígios voltasse a ser feita fora do Judiciário, mais celeremente, pelos métodos adequados e extrajudiciais de solução de controvérsias, entre eles, a arbitragem. A via arbitral foi então admitida por lei e passou a ser praticada no Brasil com larga aceitação, inclusive do próprio judiciário estatal.
Tal inovação, no entanto, não chegou ainda aos litígios tributários, eles que representam o maior volume de processos em andamento no judiciário estatal. Em matéria tributária, continua o grande volume de processos e a demora excessiva em sua solução.
A demora não é apenas no Judiciário, diga-se. Paralelamente ao judiciário estatal, desenvolveu-se no país o litígio tributário processado perante tribunais administrativos, também com congestionamento muito elevado. O contencioso tributário administrativo tornou-se como que uma etapa antecedente à do contencioso judicial, quando o contribuinte vencido recorre ao Judiciário para rediscutir a mesma matéria, dobrando o tempo do contencioso tributário, o do administrativo mais o do judicial.
Está bastante claro que a arbitragem tributária pode ser implantada para corrigir a demora excessiva e passar a ser uma via rápida de julgamento privado em matéria tributária, sem recursos a outras instâncias. A administração pública tributária e o contribuinte colocam suas razões a um tribunal de árbitros experientes na matéria, os árbitros encontram e apontam a solução e a apresentam em forma final e vinculante ao Estado e ao cidadão.
Tanto é verdade que questões envolvendo a administração pública são arbitráveis que essa alternativa foi expressamente admitida na Lei de Arbitragem em sua modernização feita em 2015, encerrrando a discussão quanto à possibilidade de o direito do Estado ser submetido a julgamento pela arbitragem privada. Admitida por lei a arbitragem privada para resolver conflitos envolvendo a administração pública, o próximo passo, como destaquei aqui, será admiti-la também para resolver os conflitos em matéria tributária.
Quando implantada, essa talvez seja a inovação mais relevante na história ainda recente da arbitragem privada no Brasil. E será inovação extraordinariamente útil para retirar do judiciário estatal, administrativo e judicial, a exclusividade para solucionar conflitos de natureza tributária e reduzir o estoque de processos sem perspectiva de decisão rápida.
Que fique claro, aqui, que não se propõe que a arbitragem tributária venha retirar do Judiciário a função de resolver litígios tributários de variadas naturezas, nem se propõe extinguir a função julgadora de órgãos administrativos. O que se pretende é que a arbitragem tributária atue paralela e complementarmente a eles, como uma terceira via para a solução desses litígios, construída com a segurança jurídica da arbitragem comercial privada já existente no Brasil e com a elaboração de legislação especial adequada a oferecer segurança jurídica a quem a procure para solução rápida e especializada de litígios tributários fora do Judiciário e fora da administração pública.
O exemplo de sucesso dessa inovação é a arbitragem tributária praticada em Portugal, exemplo que fez crescer a discussão para a implantação desse instituto também no Brasil. Trabalhos acadêmicos, seminários científicos, reuniões de administradores tributários brasileiros com tributaristas e arbitralistas dos dois países têm feito aumentar a disposição de enfrentar o desafio de incluí-la no sistema tributário nacional.
Apesar das notórias diferenças de dimensão econômica, geográfica e populacional entre Portugal e Brasil, fato é que lá em Portugal a arrecadação tributária pela via arbitral superou a arrecadação obtida nos âmbitos administrativo e judicial. Por que não podemos ter isso acontecendo aqui também? A implantação da arbitragem tributária no Brasil pode colocar em pé um verdadeiro 'Ovo de Colombo Tributário' destinado a ajudar a resolver as enormes dificuldades dos governos, dos contribuintes e do judiciário na gestão do contencioso tributário em sua forma atual.
Recentemente, em 7 de setembro de 2019, um grupo de advogados tributaristas e arbitralistas do qual faço parte aderiu a essa cruzada e fundou em São Paulo o IBAT – Instituto Brasileiro de Arbitragem Tributária, com o objetivo estatutário de trabalhar pela implantação da arbitragem tributária no Brasil. Desde a fundação, o IBAT realizou encontros e debates sobre isso e também em 2020 está atraindo o interesse de praticantes do contencioso tributário de vários cantos do país, que vêm se associando à entidade para participar da realização de seu objetivo.
Paralelamente a essa discussão toda, o Senador Antonio Anastasia apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei 4.257/19 para incluir a arbitragem tributária no sistema jurídico do contencioso em matéria fiscal. Professor de Direito Administrativo e parlamentar de larga experiência no aperfeiçoamento legislativo de institutos de interesse da administração pública, seu Projeto de Lei já foi aprovado por unanimidade na Comissão de Assuntos Econômicos e encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, para relatoria do Senador Tasso Jereissati. Com a aprovação desse Projeto de Lei, a cruzada iniciada há muitos anos e o objeto social primeiro do IBAT poderão estar concretizados.
Caberá então desenvolver intenso trabalho pela adequada regulamentação da arbitragem tributária como aprovada em lei e para garantir que essa importante inovação no contencioso tributário brasileiro venha ser bem praticada no Brasil, como é em Portugal.
Caberá também ao IBAT desenvolver constante trabalho de disseminação em todo o País do conhecimento e da utilidade da arbitragem tributária. Iremos capacitar profissionais que venham a atuar como árbitros ou advogados de partes em arbitragem tributária. Iremos capacitar gestores de centros privados de arbitragem tributária onde os procedimentos arbitrais tributários serão processados.
Estamos diante de uma oportunidade importante de inovar no contencioso tributário no Brasil e sabemos como fazê-lo. Temos a experiência e a disposição de enfrentar o desafio de implantar a arbitragem tributária no Brasil.
Há muito trabalho ainda pela frente para que ela se consolide como uma terceira e adequada via de solução de litígios em matéria tributária. O IBAT estará à frente desse trabalho e reúne pessoas que encontram valor nesses seus objetivos.
Ao final deste breve artigo, quero convidar profissionais da área tributária e da área da arbitragem, empresas usuárias da arbitragem privada e do contencioso tributário; gente da academia, de escritórios e de entidades públicas e privadas para que, juntos, venhamos desenvolver esse trabalho...Avanti!
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*Roberto Pasqualin é advogado em São Paulo, especializado em Direito Tributário e em Direito Arbitral. Atua como árbitro e mediador junto às principais câmaras instaladas no Brasil e no exterior. É fundador e presidente do Instituto Brasileiro de Arbitragem Tributária – IBAT.