Parece-me inegável que o Direito, em sua gênese, presta-se a regular o comportamento humano e, por isso, está sempre em certa desvantagem; nesse sentido, é o direito quem se esforça para evoluir e busca alcançar as condutas humanas que “andam” naturalmente à sua frente. Essa busca, penso, nunca terminará e, apesar disso, revela-se salutar, pois faz o Direito se adaptar às novas realidades a que as sociedades se condicionam quotidianamente.
Sem a pretensão de me inclinar profundamente sobre questões teóricas do Direito, parece-nos também importante entretanto, neste momento e neste tema em especial, recordar a lição acerca da Teoria Tridimensional do Direito1, de Miguel Reale, cuja sustentação considera o trinômio “fato-valor-norma”, todos interrelacionados entre si. Guardo essa ideia e avenço.
Vê-se no contexto da ainda atual pandemia, de covid-19, que as sociedades, em suas diferentes localizações geográficas, organizaram-se, agiram e agem diferentemente. Brasil e Portugal, países-irmãos, historicamente entrelaçados, agiram e agem de formas diametralmente diversas.
Em Portugal, conhecido o problema, a sociedade civil se organizou para se proteger. O Governo, posicionado de forma firme e séria, uniu-se para por unanimidade decretar Estado de Emergência. Medidas legislativas excepcionais foram adotadas em socorro aos que setores mais necessitados da sociedade. As normas jurídicas foram adaptadas em função do cenário posto, sem se perder de vista a generalidade e abrangência que as medidas poderiam e deveriam ter no contexto. As pessoas recolheram-se às suas casas, num claro cumprimento de um dever cívico de colaboração recíproca, e nem por isso a sociedade e os fluxos jurídico-económicos foram cessados. Um exemplo, internacionalmente reconhecido e referenciado, como se vê nos diversos meios de comunicação.
Pensamos que, em Portugal, a mudança dos “fatos”, ditados pelo contexto pandêmico, à luz do “valor” da proteção da vida humana e de tudo que ela decorre, determinou a alteração da “norma”, do Direito em si, não de forma casuística, para proteger ou beneficiar setores, mas sim de forma episódica e genérica – o que é diferente de casuísmos – e que tem caráter temporário. Uma verdadeira lição de sociedade, pensa-se.
É certo que há quem possa, localmente em especial, levantar pontos e questões sobre a resposta dada em âmbito legislativo para a pandemia, uma vez que, como iniciamos esse texto, a norma será sempre imperfeita e estará a seguir a conduta humana na busca infindável de alcançá-la. Por isso correções foram feitas no percurso e continuam a ser feitas, para tornar as alterações legislativas cada vez mais abrangentes, sem que delas se retire o seu caráter transitório. Problemas, ainda há. Entretanto, o que se quer destacar na reação social e legislativa de Portugal à pandemia é, em si, a boa-fé e o senso de civismo exemplarmente demonstrados, que conduziram o país a implantação de medidas de desconfinamento protegido.
No Brasil, entretanto, pessoalmente tenho a sensação de que, muito embora a alteração dos fatos pudesse determinar uma mudança das normas, do Direito em si, à luz do valor vida humana que deve ser preservado, está-se a perder a oportunidade criada pela pandemia de ressurgirmos como sociedade, com civismo e boa-fé. Comportamentos egoísticos e normatizações casuísticas são as demonstrações dadas por alguns dos Poderes da República, trazendo incerteza e insegurança ao país. Os Três Poderes têm sérias dificuldades de dialogar não apenas entre si, mas também em caráter interna corporis, em um momento tão delicado, no qual todos deveriam estar unidos em prol do bem-comum.
Isso me leva, então, a uma reflexão mais profunda, sobre a “cultura”. Sim, a “cultura”. Tenho para mim que a “cultura” possa ser um conceito mais amplo que o “valor” em si, por incluir entre muitos outros fatores de uma sociedade, também a moral (leio, o “valor”) e a lei (a “norma”)2. Sabe-se que a cultura, apesar de dinâmica e viva, é algo-difícil se mudar e que a mudança nesse âmbito ocorre de forma lenta, porém não sem resistências, dado o caráter difuso que a permeia.
Penso então que o Brasil, diante de fatos tão contundentes, tal como os milhares de infectados e mortos pela pandemia, está a ter sua cultura influenciada, porém não sem as devidas e já esperadas resistências, e assim também o será o Direito Brasileiro. E, quero crer, portanto, que a sociedade brasileira saíra desse contexto influenciada em sua moral, com uma melhor visão acerca das possíveis formas de proteger o valor vida que integra as culturas universalmente, muito embora os reflexos possam não ser tão visíveis no curto prazo. E, por isso, isso acaba por influenciar inclusive as decisões políticas da sociedade brasileira doravante. Sejamos resilientes!
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1 Reale, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2003.
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*Fernando Dizero Senise é advogado no Brasil e em Portugal, sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia e coordenador do escritório em Portugal. Bacharel em Direito, com licenciatura reconhecida pela Universidade de Lisboa.