O difícil debate a respeito da destinação de leitos de unidades de terapia intensiva (UTI) para pacientes com covid-19 tem merecido a atenção dos brasileiros. A sociedade discute como enfrentará o fato de que escolhas trágicas já estão sendo feitas no Brasil, com impactos diretos para profissionais de saúde, pacientes e familiares. Algumas nuances médicas e jurídicas seriam úteis nessa discussão.
Todos os dias, no mundo inteiro, profissionais de saúde compartilham com pacientes decisões importantes, como tomar ou não um remédio ou realizar ou não uma cirurgia. Algo semelhante ocorre quando decidem sobre internações em UTIs. Em situações ideais, essas decisões são tomadas levando em conta o risco e o benefício para o paciente, alinhados aos desejos e valores do enfermo e seus familiares. Essas são decisões de alocação.
Por outro lado, em situações de escassez, podem ser necessárias decisões que limitam a utilização de recursos potencialmente benéficos para um paciente. Essa situação é levada ao paroxismo quando a decisão é tomada entre pacientes que se beneficiariam igualmente do recurso. Por exemplo, a escolha de qual paciente, entre vários com risco de morte, admitir na UTI. Embora decisões análogas já ocorressem antes da pandemia, é certo que o risco de violação a direitos tende a crescer com o aumento dessas situações. Aqui estamos diante de decisões de racionamento.
Surgem, então, três questões conexas, mas diferentes entre si: Quem deve tomar as decisões? Que instrumentos podem auxiliar? Quem pode ser responsabilizado por danos causados?
Infelizmente, é muito difícil que o dever de tomar uma decisão não recaia sobre o médico. É ilusório pensar que diretrizes, comitês de triagem ou algoritmos possam substituí-lo. Assim como a lei mais cuidadosamente elaborada e democraticamente deliberada não retira do juiz a necessidade de decidir, recomendações precisarão ser interpretadas e implementadas à beira do leito.
Mas decisões cognitivamente e emocionalmente complexas, tomadas sob pressão em um ambiente de escassez, potencializam a ocorrência de vieses. É importante que sejam informadas por critérios transparentes, razoáveis e passíveis de controle externo, em procedimentos que confiram legitimidade. A resolução 2.156/16 do Conselho Federal de Medicina oferece parâmetros relevantes, mas não foi pensada para decisões de racionamento entre pacientes com igual nível de prioridade médica. Comitês multiprofissionais podem ajudar na formulação e correção de rumos. Porém, não estão imunes a vieses e dificilmente estarão sempre disponíveis ou terão informações completas. Por fim, instrumentos de apoio à decisão, como algoritmos, se mostram úteis ao disponibilizar, de forma estruturada, informações necessárias ao processo decisório. No entanto, são condicionados por premissas e dados, não devendo ser vistos como neutros. Algoritmos auxiliam o julgamento clínico, mas não o substituem (ao contrário, como sugere Elena Espósito, evoluem justamente na medida em que abandonam a pretensão de mimetizar a deliberação humana).
Que responsabilidade pode ter o médico que decide nessas condições? Tradicionalmente, a obrigação do profissional de medicina é vista como “de meio”: salvo exceções, o médico não se obriga a alcançar determinado resultado, mas à utilização correta dos seus conhecimentos. Se esses conhecimentos podem ser suficientes em situações de alocação, no racionamento pede-se ao médico que também seja capaz de buscar o máximo de recursos disponíveis, se comunicar adequadamente com gestores e garantir a melhor alternativa de tratamento possível para pacientes não admitidos em UTI. A responsabilidade do médico, além disso, é subjetiva: depende de culpa, cujo grau pode levar à redução da indenização. Em decisões de alocação, a imperícia, negligência ou imprudência seria avaliada conforme modelos específicos de conduta. Mas é difícil olhar com as mesmas lentes para genuínas decisões de racionamento, como já começam a reconhecer propostas de exclusão temporária de responsabilidade para médicos.
Essas propostas não alcançam discussões importantes como a fila única de leitos ou a responsabilização de pessoas jurídicas. Mas protegem o paciente, ao estabelecerem a necessidade de exaustão das possibilidades de recursos, ao mesmo tempo em que garantem alguma tranquilidade na decisão. A covid-19 nos coloca diante de decisões nas quais será impossível evitar todos os danos. A inércia seria ainda pior: não assumir riscos também é muito arriscado.
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