Migalhas de Peso

O direito durante e pós covid-19 - Parte 2

Talvez fosse o momento de repensar o direito como algo mais próximo da realidade das pessoas, um abandono das solenidades desnecessárias, uma aproximação do direito à população cujas relações são por ele reguladas.

21/5/2020

Possível crise paradigmática?

A passagem do positivismo para o que o professor Tércio Sampaio Ferraz1 chama de constitucionalismo “principialista e argumentativo”, implicou, em suas palavras, no deslocamento da centralidade da lei para a centralidade da jurisdição.

Esse movimento, que no campo legislativo procurou aproximar a jurisdição brasileira da common law mediante a implantação de precedentes de observância obrigatória (casos julgados em repercussão geral, sistemática de recursos repetitivos, súmulas vinculantes, por exemplo), tem participação fundamental no que se tem chamado de ativismo judicial. De fato, a abertura hermenêutica decorrente dessa concepção do direito confere poderes extraordinários aos juízes, que passam de coadjuvantes – meros aplicadores da lei no positivismo mediante atividade silogística – a atores principais no processo de construção do sentido da norma jurídica.

Curioso notar que, segundo levantamento da Folha de São Paulo do último dia 05 de maio2, entre 1º de janeiro de 2019 até 31 de janeiro desse ano, 71 ações foram propostas no Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade de medidas do governo, e 8 liminares foram deferidas. Desde o início da crise, 41 ações foram propostas e 23 decididas em caráter liminar. Chamam a atenção as decisões proferidas pelo Min. Alexandre de Moraes sobre a nomeação do Diretor da Polícia Federal, calcada principalmente na violação à Moralidade; e a decisão do Ministro Barroso que proibiu a expulsão de 34 diplomatas venezuelanos, sob o fundamento de violação a razões humanitárias mínimas.

Mas não só no âmbito do STF, pois também os juízes de primeira instância, esses ainda mais próximos e sensíveis aos fatos sociais, se revestem desse poder: diversas foram as decisões postergando/prorrogando tributos, interpretando e afastando normas locais que versavam sobre a restrição de determinadas atividades durante a pandemia, ou mesmo decretando medidas mais restritivas de isolamento, como o lockdown imposto pela justiça maranhense na região metropolitana de São Luis.

A crítica ao que se convencionou chamar de ativismo judicial não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, e se verifica até mesmo em jurisdições anglo-saxônicas, como os EUA. Aliás, esse ativismo, que confere ao Judiciário – único dos poderes que não é investido de representatividade popular, o papel de legislador positivo, é um dos fatores, segundo Yascha Mounk, que vêm levantando questionamentos sobre a democracia.3

A abertura hermenêutica do modelo atual, além de parecer conferir um grau de discricionariedade muito grande aos tribunais, por vezes traz a sensação de insegurança jurídica. Embora tenhamos tentando implantar, às avessas e sem a eficácia esperada, uma cultura dos precedentes judiciais, os próprios tribunais parecem não respeitar essa regra.

Essa sensação de ausência de compromissos das cortes judiciais com seus próprios precedentes, antes exclusiva do mundo jurídico, ganhou os holofotes.  Sem entrar no mérito do acerto ou desacerto da decisão, o fato é a população assistiu perplexa ao julgamento que alterou o entendimento sobre a prisão em segunda instância. E tal perplexidade se deu não apenas em razão da alteração de entendimento, o que trouxe a sensação de uma decisão casuística, mas, também, pelo distanciamento que a linguagem jurídica impõe à população não versada nas letras jurídicas. Os ritos, as pompas, o linguajar, tudo isso parece causar a sensação de alienação ao cidadão comum.

Não que o direito deva estar suscetível à vontade popular imediata ou deva por ela se guiar. Afinal, o fato de poder guiar-se por regras próprias (o devido processo legal formal e substancial), longe da volatilidade da opinião pública - hoje amplificada pelas mídias sociais, é uma conquista do Estado de Direito. Mas há que se questionar se a liturgia do direito ainda possui lugar em um mundo que anseia por informação e participação.

Voltando aos números: o ativismo do judiciário parece crescer em tempos de crise, e isso fica estampado na quantidade de ações propostas e decisões proferidas pelo STF nesses últimos meses em contraste com os 13 meses anteriores. Claro que há variáveis políticas, como a escalada da tensão entre os poderes, entre os executivos em todas as esferas, e a própria crise a impor medidas urgentes; mas há de se perguntar se o aumento do ativismo é causa ou consequência dessa tensão.

De outro lado, temos uma crise econômica e de saúde sem precedentes na história recente. E isso tende a provocar uma maior atuação/ interferência estatal no âmbito do direito posto. Para se ter uma ideia de números, desde o início do ano até a data em que escreve esse artigo, só as medidas provisórias editadas totalizam 49, das quais 39 estão direta ou indiretamente relacionadas ao Covid. O conjunto de legislação relacionada ao tema no site do planalto4 – aí considerados leis, decretos, medidas provisórias, resoluções e portarias – já alcança o número de 292 atos normativos.

Se há uma crescente atuação do Judiciário, isso também se deve ao incremento no processo de produção de normas provisórias ou temporárias, muitas vezes controversas, e todas potencialmente sujeitas à judicialização. Mas há também um processo de retroalimentação: em matéria tributária, por exemplo, sempre foi comum ver alterações legislativas como tentativas de contornar decisões judiciais, principalmente do STF. Foi assim, por exemplo, com as emendas constitucionais 03/93 (substituição tributária), 33/01 (ICMS importação para não contribuintes do imposto), 39/02 (contribuição para o custeio do serviço público de iluminação) e mais recentemente a lei 12.973/14 (tributação das coligadas e controladas no exterior). No presente momento, esse movimento de ação e reação não é diferente, como se verifica dos decretos que versam sobre atividades essenciais, em clara tentativa de contornar o entendimento da Suprema Corte sobre a competência concorrente dos Estados e Municípios para legislarem sobre matéria de saúde pública.

Se a história nos demonstra que crises, via de regra, são estopim ou causa mesma de alterações de paradigmas ou a revoluções, alguns questionamentos se impõem sobre o modelo jurídico atualmente adotado: como fica o modelo atual? Seria o caso de retorno a um modelo mais próximo do positivismo?

Acredito que não. Os avanços jurídicos não mais comportam a ideia do direito como mera aplicação silogística, ou como fenômeno que incide automática e infalivelmente sobre as relações interpessoais. A compreensão do direito como objeto cultural e dinâmico implica em reconhecer o seu caráter mutável, dialógico, dialético, enquanto fruto da atividade humana tanto em sua positivação quanto em sua aplicação. A crise serve para estressar modelos e escancarar problemas, é certo, no entanto não entrevejo elementos a justificar uma ruptura paradigmática.

O ministro Marco Aurélio5, recentemente, ao perceber a grande tensão instaurada entre os poderes judiciário e executivo em razão das decisões acima citadas, sugeriu (ele mesmo autor da liminar que havia impedido Renan Calheiros de assumir a presidência do Senado no final de 2016) emenda ao regimento interno do STF para que ações que interferissem nos demais poderes da república fossem julgadas pelo plenário.6

Essa questão leva a outra, de ordem maior: não seria o momento de pensarmos em mecanismos de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional em face do modelo atual? Prazos para pedidos de vistas (muitas vezes a impedirem desfechos de casos com maioria formada no STF), requisitos mais rígidos para a concessão de liminares que sustem a eficácia de leis e atos do executivo, fixação de critérios para modulação dos efeitos, exigência de critérios para revisão de temas fixados pelo plenário são medidas que já estão sendo debatidas e que podem auxiliar a trazer mais transparência ao Judiciário.

A par disso, talvez fosse o momento de repensar o direito como algo mais próximo da realidade das pessoas, um abandono das solenidades desnecessárias, uma aproximação do direito à população cujas relações são por ele reguladas.

O fato é - e a crise está aí para nos provar: o modelo atual precisa ser revisto e aperfeiçoado. Se é para suspender uma lei, que seja com amplo debate, com participação pública pelas vias autorizadas, por decisões plenárias; que o sistema de precedentes, bem ou mal adotado pelo país, seja respeitado, ou que sua alteração seja fundamentada em alterações sociais que justificaram a mudança de postura; se é pra modular efeitos de uma decisão, que haja critérios claros, que permita aos jurisdicionados a deseja estabilidade e certeza do direito, sem os quais não se pode cogitar da busca pelo sentido da justiça.  

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1 O Direito, entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014, p. XV e XVI

3 The legislature, once most important political organ, has lost much of its powers to courts, to bureaucrats, to central banks, and to international treaties and organizations. Meanwhile, the people who make put the legislature have in many countries become less and less similar to the people they are meant to represent: nowadays, few of them have strong ties to their local communities and even fewer have a deep commitment to a structuring ideology.

As a result, average voter now feel more alienated from political than they ever have before (…) (Mounk, Yascha. The people vs. Democracy: why our freedom is in danger and how to save it. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2018. Pp. 59-60.)

6 Nesse sentido, confira-se a crítica de Conrado Hubner Mendes em artigo publicado na Folha de São Paulo: clique aqui

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*Gabriel Magalhães Borges Prata é sócio do ecritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia na área tributária e coordenador do escritório em São Paulo. Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP.

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