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A requisição administrativa em tempos de covid-19: o Estado pode solicitar o uso de bens privados?

É necessário que entes públicos e privados deixem seus respectivos interesses em segundo plano, e atuem com base na cooperação, definindo estratégia atenda o interesse comum e cause o mínimo de prejuízos.

19/5/2020

Diante da emergência sanitária mundial causada pela pandemia do covid-19, o Poder Público tem estabelecido diversas regras e normas para funcionamento de serviços de saúde e serviços não essenciais, bem como adotado uma série de medidas para frear a propagação da doença.

Dentre os diversos instrumentos propostos à contenção da pandemia, a lei Federal 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, conferiu aos entes federativos a possibilidade de "requisição de bens, serviços e produtos de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa" (artigo 3º, inciso VII).

Embora já encontre amparo legal há décadas, a requisição administrativa jamais havia sido aplicada no âmbito de todo o território nacional, por diversas entidades da federação e ao mesmo tempo. Assim, o Poder Público deve utilizá-la com cautela para evitar a ocorrência de abusos e agravar ainda mais os prejuízos econômicos que se intensificam a cada dia.

A requisição administrativa encontra previsão no inciso XXV do art. 5º da Constituição Federal, bem como outras normas infraconstitucionais – tais como o decreto 4.812/42, editado durante a 2ª Guerra Mundial, a lei 7.783/89, também conhecida como Lei de Greve, a lei 8.080/90, que versa sobre o SUS, e, mais recentemente, o decreto 9.382/18, que dispõe sobre medidas adotadas pelo Governo face à greve dos caminhoneiros – e traduz-se em modalidade de intervenção do estado na propriedade privada.

A requisição administrativa consiste na utilização coativa de bens e serviços particulares, pelo Poder Público, por ato de execução direta e imediata da autoridade para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, mediante posterior pagamento de indenização ao proprietário do bem requisitado.

O referido instituto tem por pressuposto a intervenção na propriedade privada em benefício de bem maior que, neste caso, é a saúde pública. Isto é, em momento de crise como o atual, nasce a necessidade de o Estado preservar o direito fundamental à saúde pública, em detrimento de garantir o direito de propriedade.

É preciso, contudo, cautela na utilização deste instrumento, sopesando-se o interesse do Poder Público com as circunstâncias envolvidas no caso concreto, a fim de se evitar a ocorrência de abusos. Ultrapassa os limites da legalidade, por exemplo, admitir que o ente público requisite a utilização de determinado bem cujo uso já é direcionado para satisfazer os interesses da sociedade.

A situação verificada no Município de Cotia, no Estado de São Paulo, ilustra bem a utilização abusiva da requisição administrativa. Naquele caso, a Prefeitura ingressou nas dependências de fabricante de ventiladores hospitalares, e confiscou aparelhos que sequer estavam prontos.

O verdadeiro despautério incorrido pela autoridade municipal simplesmente desconsiderou todos os demais sujeitos envolvidos em situação extremamente sensível. Sem sequer conhecer a destinação que seria conferida aos equipamentos, o Município decidiu se apropriar deles, colocando seu interesse em patamar de absoluta superioridade em relação aos demais. Como se sua vontade refletisse verdadeiro dogma, a municipalidade desprezou não apenas o fabricante, como também o potencial adquirente dos ventiladores e seus respectivos pacientes, e ainda os demais entes federativos, que também necessitam de melhorias na infraestrutura hospitalar.

Somente as circunstâncias concretas poderão definir sobre a prevalência do interesse do ente público ou aquele particular pois, em última análise, o que deve prevalecer é o interesse da sociedade. É possível, todavia, estabelecer parâmetros para definir a aplicabilidade da requisição administrativa, tais como:

(i)  confronto entre o interesse protegido pela requisição e aquele tutelado pelo uso conferido ao bem pelo particular, analisando-se se o particular não atribui ao objeto finalidade tão relevante quanto aquela pretendida pelo ente público; e

(ii) os danos causados ao ente privado e à própria coletividade em razão da retirada do bem requisitado pois, dependendo de sua importância, a requisição pode resultar na inviabilidade das atividades empresariais, prejudicando a geração de renda e emprego.

Verifica-se, portanto, que a requisição administrativa, embora se revele medida necessária para auxílio do Poder Público na tomada de providências para a contenção da pandemia não é absoluta e enseja análise prévia e cautelosa do cenário concreto, sopesando-se os interesses de todos os afetados pela sua imposição.

Neste panorama de instabilidade, condutas isoladas, individualistas e atropeladas apenas tornam mais conturbado cenário indesejado e já bastante nebuloso. É necessário que entes públicos e privados deixem seus respectivos interesses em segundo plano, e atuem com base na cooperação, definindo estratégia atenda o interesse comum e cause o mínimo de prejuízos.

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*Tatiana Kauffmann é advogada do Cascione Pulino Boulos Advogados.

*Renato Franco de Moraes é advogado do Cascione Pulino Boulos Advogados.

 

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