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A contratação direta em situações de emergência ou calamidade pública

A legislação consolidada anteriormente à pandemia já previa mecanismos normativos plenamente aplicáveis à situação corrente, admitindo a contratação direta para os casos envolvendo emergência ou calamidade pública.

19/5/2020

Em virtude da pandemia que assola o país, nota-se um sensível incremento das contratações diretas, ou seja, sem a realização de processo de licitação, por parte da União, Distrito Federal, Estados e municípios, de produtos e serviços que se mostrem necessários para intensificar-se o combate ao covid-19.

A legislação consolidada anteriormente à pandemia já previa mecanismos normativos plenamente aplicáveis à situação corrente, admitindo a contratação direta para os casos envolvendo emergência ou calamidade pública.

Realmente, o art. 24, IV, da lei 8.666/93, prevê a possibilidade de licitação dispensável nas situações envolvendo emergência ou calamidade pública, em que a demanda, da realidade, em relação a uma providência da Administração Pública, não poderá aguardar a instalação, desenvolvimento e encerramento de um processo licitatório.

Para efeitos da eventual dispensa, a lei em apreço considera como emergencial ou de calamidade as situações em que há risco efetivo da ocorrência de prejuízos ou de insegurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, tanto públicos quanto particulares.

A causa emergencial distingue-se da calamitosa, não obstante contenha, em comum, o fator temporal, exercendo intensa pressão para que se dê o agir público. Na emergencial, a situação tanto pode decorrer de fato da administração, quanto de fato de terceiros. No fato da administração, a entidade pública dá motivo ao que agora se mostra emergencial. Agiu com desídia no planejamento e antecipação das providências necessárias a que determinada contratação fosse antecipada e eficazmente realizada, propiciando a emergência agora instalada. Não lançou licitação, diante do iminente término de contrato então em vigor e que exigiria nova contratação para prosseguir-se no fornecimento, prestação de serviços etc. Ou, ainda, rescindiu, imotivadamente, contrato então em curso para, a partir de tal fato jurídico, promover a contratação direta, com a dispensa de licitação. Nestas hipóteses o agente público incorre em crime de improbidade administrativa, face ao dano causado ao erário, além de ser passível de responsabilização funcional e, dependendo dos fatos e circunstâncias envolvidas, de natureza penal.

Noutro cenário, pode a Administração Pública até ter-se antecipado e implementado tudo o que lhe competia, como lançar o instrumento convocatório, realizar grande parte das fases da licitação, só que, por fato de terceiros, como está se mostrando bastante frequente nas grandes contratações, discussões judiciais envolvendo o processo licitatório em apreço, sucedido de liminares sucessivamente outorgadas e cassadas, impedem o curso do certame que se julgara apropriado para a contratação almejada.

Finalmente, convém sublinhar, poderá haver circunstâncias envolvendo caso fortuito ou força maior que, caracterizadas pela imprevisibilidade prévia, quadram-se nas situações emergenciais, face as repercussões que causam, como o que se passa em períodos de estiagem ou chuvas nunca dantes registrados, causados por acidentes nucleares sem precedentes ou, mesmo, da pandemia que atualmente castiga o país.

No tocante aos limites da dispensa da licitação, a contratação que se encontra prestes a ser realizada – com a dispensa de licitação – terá por objeto (a) bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa, e (b) parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 dias corridos.

O objeto da contratação, à evidência, deverá ser aquele que acuda à situação causadora da dispensa, seja urgência, seja calamidade. Há, aqui, nexo de pertinência lógica entre a demanda reclamatória da providência da administração e aquela a ser implementada com o propósito de reparar a situação de premência ou de calamidade, sendo nulas todas as contratações que ultrapassem tal objeto, responsabilizando-se o agente público pela afronta à lei. Poderá ocorrer, entretanto, que determinadas contratações possam suscitar dúvidas, sob diferentes prismas, no sentido de divisar-se se poderiam ou não se constituir em objeto apropriado para a contratação com dispensa de licitação. É o que se passa, v.g., com serviços de publicidade que, para nós, dependendo dos objetivos e do nexo existente entre a situação emergencial e a calamitosa, de um lado, e o fim almejado pela campanha publicitária, poderá ser considerada como de natureza subsumível ao objeto passível de contratação com dispensa de licitação.

Pois bem, diante da imponderabilidade do quanto se estima despender num certame licitatório, em condições razoavelmente usuais, qual seria o limite máximo de tempo para que uma demanda não pudesse contar com uma licitação? A resposta é difícil, pois cada causa poderá contar com nuances e particularidades que não admitam uma padronização temporal objetiva. A parte final do dispositivo sinaliza o prazo máximo de 6 meses para considerar-se limite máximo para a contratação de obras e serviços, o que, de certa maneira, concede uma ancoragem temporal ao menos relativa para fins de aferição do período máximo de providencias ou fornecimentos a serem contratados sem a realização de licitação. De qualquer maneira, a contratação direta deverá ser razoavelmente imediata à constatação do motivo, sob pena de cercar-se de nulidade.

Quanto à calamidade, ela resulta de um ato da natureza ou do homem, de repercussões imprevistas, e que impedem o desfrute e a proteção, por uma parte da coletividade, de serviços públicos e dos bens e elementos próprios ou públicos que, em condições de normalidade, estariam sendo utilizados, ameaçando a coletividade com riscos à saúde, à segurança, ao patrimônio, à liberdade ou à vida de parte ou da totalidade de seus integrantes.

Na calamidade, o agente público terá que, com acuidade, agilidade, razoabilidade e proporcionalidade, examinar o conteúdo e a extensão dos danos até então causados e que poderão ainda agravar-se, com ênfase naqueles impostos ao homem, aos animais, aos bens materiais e ao meio-ambiente, assim como os prejuízos consequentes. O juízo a ser formulado levará ainda em consideração se a própria Administração Pública possui condições materiais, pessoais e instrumentais de enfrentamento eficaz da situação calamitosa, pois, em tal não sendo reconhecido, de plano, ensejar que outras pessoas políticas possam envolver-se.

A urgência e a calamidade pública serão objeto de decreto do Chefe do Poder Executivo, motivadamente assinalando os fatos e fundamentos que justificam a sua decretação. Entendemos que tal decretação será de competência da União Federal quando os eventos envolverem mais de um estado federado; já do Estado federado, caso os eventos localizem-se nos seus limites territoriais, assim como, em qualquer uma das hipóteses, dos Municípios que estejam envolvidos na situação urgente ou calamitosa nos seus domínios. Nada impede, contudo, que diante de situação de graves proporções e intensa repercussão nos três planos político-constitucionais, a decretação provenha dos três Chefes do Executivo, integrando as pessoas políticas na solução dos fatos ocorridos.

E, novamente, poderia perguntar-se: após decorrido tal período, e persistindo a causa originária de emergência ou de calamidade, poderia haver nova contratação tendo como causa situação emergencial ou calamitosa sem a realização de licitação? Em princípio, não é possível a prorrogação da contratação em questão, dada a vedação expressa contida ao final do dispositivo ora examinado. Diz-se, em princípio, pois, se houver necessidade efetiva da prorrogação, segundo apreciação em que prevaleça os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, a prorrogação poderá ser a alternativa mais apropriada e favorável à Administração, não podendo ser evitada por uma disposição limitadora desconforme com a realidade ontológica. Imagine-se que a contratação tenha sido formalizada pelo prazo de 180 dias, mas motivos estranhos à Administração e ao contratado, tenham impedido a realização dos serviços ou fornecimento de bens numa suspensão, involuntária, de 90 dias. Ou, ainda, quando são necessários serviços por mais somente 30 dias, além dos 180 dias originariamente contratados. É para nós evidente que tal poderá constituir em motivo suficiente para admitir a prorrogação do contrato em questão.

Noutro cenário, poderá haver necessidade, efetiva, de realização de nova contratação emergencial, pois a solução mais apropriada, no caso, poderia assim se mostrar-se. Neste caso, e mais uma vez sublinhando e enfatizando a necessidade de verificar-se, com cuidado e pormenor, a realidade da demanda concretamente considerada, poderá amplamente justificar-se a realização de nova contratação emergencial, para o fim de sanar-se a necessidade concreta.

Lamentavelmente, o que a imprensa tem noticiado, com alguma frequência, é que os cuidados e os limites impostos pelas normas aplicáveis - e aqui sumariamente examinadas -, não tem sido obedecidos por gestores públicos irresponsáveis e por empresas que não adotam as boas práticas esperadas de todos aqueles que contratam com o poder público.

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*Marcio Pestana é advogado e sócio de Pestana e Villasbôas Arruda – Advogados. Prof. Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da FAAP.

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