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Covid-19 e os efeitos jurídicos sobre obrigações assumidas em operações de M&A

Neste momento de pandemia em que há uma abrupta desaceleração da economia com reflexos diretos na performance financeira de algumas empresas, levando-as, em muitos casos, a um cenário de impossibilidade de cumprimento de obrigações de M&A já contratadas – o que lhes resta fazer?

18/5/2020

Diante do cenário de expansão da covid-19 pelo Brasil, do prolongamento das medidas restritivas impostas pelo poder público e dos efeitos que estas têm causado sobre a economia e as atividades das empresas - muitas das quais já se encontram em situação de caixa deficitária -, são inúmeras as discussões que têm surgido envolvendo a impossibilidade de cumprimento de obrigações resultantes de contratos já celebrados.

E não poderia ser diferente em obrigações decorrentes de contratos envolvendo operações de fusões e aquisições (“M&A”), sejam elas de compra e venda de participações societárias, de investimento através de aporte de capital, de “joint-ventures” ou qualquer outra, em que são comuns as disposições prevendo a injeção de recursos em data determinada ou, conforme o caso, o pagamento parcelado do preço correspondente ao vendedor, muitas vezes, neste último caso, vinculado ao atingimento de metas de performance financeira da empresa adquirida (com base no “LAJIDA” ou, no jargão em inglês, “EBITDA”, ou outros critérios como faturamento etc.).

Pois bem, e neste momento de pandemia em que há uma abrupta desaceleração da economia com reflexos diretos na performance financeira de algumas empresas, levando-as, em muitos casos, a um cenário de impossibilidade de cumprimento de obrigações de M&A já contratadas – o que lhes resta fazer?

Cada situação deve ser analisada levando em consideração os termos e condições pactuados pelas partes na operação de M&A – como estas disposições contratuais tratam eventos inesperados como este causado pela pandemia e as possíveis consequências pelo descumprimento de qualquer obrigação assumida – além do momento em que a contratação se deu e se o evento que levou ao inadimplemento do contrato era previsível na ocasião da assunção da obrigação. Contudo, as condições estabelecidas pelas partes em contrato podem muitas vezes não considerar efeitos financeiros adversos como estes causados pela covid-19, que podem afetar drasticamente a posição das partes – de um lado o vendedor, por exemplo, que pode ver o seu direito ao pagamento de uma parcela do preço frustrado, seja porque a empresa vendida não pôde performar dentro do curso ordinário dos seus negócios em razão da pandemia e, portanto, não ter atingido as metas financeiras estabelecidas pelas partes para o pagamento; e de outro o comprador, que está enfrentando uma grave crise financeira e de deficit de caixa, sem condições para efetuar o pagamento.

Em situações como esta, as partes prejudicadas ou que se encontrem impossibilitadas de cumprir com as suas obrigações diante de um cenário inesperado, que não poderia ser previsto ou antecipado no momento do fechamento da transação, podem sempre considerar a possibilidade de recorrer - sopesando todos os aspectos casuísticos que levaram ao descumprimento destas obrigações e os termos estabelecidos pelas partes em contrato - aos institutos da teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva previstos nos artigos 317 e 478 do Código Civil.

Nesta linha, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), em recente decisão proferida neste mês de abril concedeu medida liminar autorizando o diferimento do pagamento de valor do preço previsto em contrato de compra e venda de participação societária de empresa. No caso analisado pelo TJSP, autora e ré constituíram sociedade empresária para a comercialização de produto alimentício. Contudo, em razão do desinteresse da ré, bem como da ocorrência de desavenças, as partes celebraram contrato de cessão de quotas, por meio do qual a autora adquiriu a participação societária da ré.

Em razão da pandemia de covid-19, associada às restrições à circulação de pessoas adotadas pelo poder público, a autora alegou que não teria como continuar o pagamento das parcelas acordadas, sem prejudicar a empresa e seus funcionários, tendo pleiteado em caráter liminar o diferimento das parcelas de abril, maio e junho.

Na primeira instância, o juízo da 3ª Vara Cível de Botucatu/SP indeferiu a liminar, sob o argumento de que a suspensão das atividades da empresa não autoriza o descumprimento contratual, não havendo, portanto, fundamento legal que ampare o não pagamento das parcelas do preço de compra. Contudo, o TJSP reverteu a decisão de primeira instância, autorizando que o valor das parcelas do preço devido de abril, maio e junho de 2020 fosse pago em dez prestações mensais.

Na sua decisão, o TJSP aplicou a teoria da imprevisão, baseando-se nas disposições dos arts. 478, 479 e 480 do Código Civil, que estabelecem a possibilidade de rescisão ou de revisão contratual em hipóteses de ocorrência de situações extraordinárias e imprevisíveis, que não poderiam ser previstas ou reguladas pelas partes. Na visão do desembargador Cesar Ciampolini, a pandemia do coronavírus, equiparada à uma situação de guerra, pode ser enquadrada como “acontecimento extraordinário e imprevisível”, na dicção do art. 478 do Código Civil. Também segundo a argumentação do desembargador, parece verossímil que a restrição de funcionamento da empresa, em razão da pandemia, tenha acarretado queda de faturamento e, consequentemente, a impossibilidade momentânea do pagamento das parcelas ajustadas no contrato de cessão de quotas. Assim, tendo em vista que o contrato em questão é de execução continuada, somado ao fato de que as novas circunstâncias ultrapassam em muito o que razoavelmente se podia prever ao tempo de sua celebração, entendeu o desembargador que o direito deve amparar o pleito da autora no que diz respeito ao diferimento das prestações.

Não obstante, vale ressaltar que no caso analisado pelo TJSP, a compra e venda de participação societária já havia sido consumada. Por outro lado, em operações de maior vulto e sujeitas à aprovação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), em que normalmente existem certas condições precedentes que devem ser cumpridas pelas partes antes do fechamento do negócio, há um hiato de tempo entre a assinatura dos contratos definitivos e a conclusão da operação. Nestas situações, também é importante analisar a extensão da aplicação de cláusulas de Efeito Material Adverso (Material Adverse Change, MAC, ou Material Adverse Effect, MAE, no jargão anglo-saxônico), muito comuns neste tipo de transação, que podem propiciar às partes uma “saída” que as desobrigue de concluir a operação, caso (a título ilustrativo) a situação da empresa a ser adquirida no momento do fechamento da transação seja substancialmente diferente daquela em que se encontrava na ocasião da assinatura dos contratos, isto em razão dos efeitos causados pela covid-19 ou outros eventos externos inesperados naquele momento.

Qualquer que seja a situação, vê-se, com base na decisão proferida pelo TJSP, que se confirma um importante precedente que também pode ser invocado em disputas de M&A diante do inadimplemento de certas obrigações contratadas, a exemplo de  outras  várias relações  contratuais que venham a ser descumpridas, tendo como sustentação a teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva.

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*Enrique Tello Hadad é sócio do escritório Loeser, Blanchet e Hadad Advogados.

*Daniel Domenech Varga é gerente no escritório Loeser, Blanchet e Hadad Advogados.

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