Migalhas de Peso

Indenizações "punitivas" e a Suprema Corte Americana

O jornal “O Estado de S. Paulo”, edição de 5-11-06, publica artigo de um colunista do “The New York Times”, Adam Cohen, criticando a presumível tendência, mais recente, da Suprema Corte em favorecer os poderosos.

17/11/2006

 

Indenizações "punitivas" e a Suprema Corte americana

 

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

 

O jornal “O Estado de S. Paulo”, edição de 5-11-06, publica artigo de um colunista do “The New York Times”, Adam Cohen, criticando a presumível tendência, mais recente, da Suprema Corte em favorecer os poderosos.

 

O colunista teme um abrandamento nas condenações milionárias relacionadas com o tabagismo e outros casos de lesão do consumidor. Faz comparações e salienta a enorme diferença entre esse abrandamento e o extremo rigor penal usado contra pequenos furtos, se repetitivos (“os três delitos”). Cita, particularmente, o caso de um cidadão, pai de três filhos, que, após furtar três vezes fitas de vídeo — as mercadorias valiam, no conjunto, US$153,53 —, em uma loja da Kmart, foi condenado a um mínimo de 50 anos de prisão.

 

Vamos, todavia, por partes. Com relação à condenação criminal do gatuno de supermercado, há, de fato, um abominável exagero punitivo, embora uma boa política criminal deva desestimular pequenos furtos. Do contrário, se houver mera advertência verbal, sem indiciamento, a imensa legião dos pobres se verá estimulada a compensar sua pobreza com pequenos e médias subtrações, criando um ambiente de desordem. Haverá, à medida que crescer a sensação de impunidade, um quase saque de lojas. Essa advertência é particularmente importante quando os objetos furtados não são essenciais à sobrevivência do ladrão, como é o caso de videocassetes, bebidas alcoólicas caras, shampus, desodorantes e artigos do gênero. Furtos de toca-fitas em veículos estacionados também não podem ser tolerados, se quisermos manter um mínimo de ambiente civilizado. A detenção de uns poucos meses para cada infração seria mais do que suficiente para inibir a proliferação de pequenos furtos no comércio varejista. Nesse ponto tem toda razão o articulista americano.

 

Embora seja difícil provar o que se segue, desconfio que a atual tendência americana de manter pessoas presas por longos períodos tenha sua origem não só na mentalidade mais “dura” dos republicanos. Provavelmente há, aí, influência do lobby das empresas particulares que constroem e administram prisões. Existe uma óbvia propensão para “privatizar” os presídios. Assim, como simples “negócio”, quanto maior o número de presos, maior o lucro. Dizem as estatísticas que atualmente há mais de dois milhões de pessoas detidas nos EUA, computados os condenados em definitivo e os presos provisoriamente. É uma cifra impressionante. Não há nada que se compare no planeta, no momento. Somente o “gulag”, no tempo de Stalin, conseguiu ultrapassar esse nível. E para tais empresas, paradoxalmente, a pena de morte só aumenta o lucro. Isso porque a permanência do condenado no “corredor da morte” implica mais despesas do que a sua manutenção em uma cela comum. Como é usual o condenado permanecer no “corredor da morte” por muitos anos — por vezes mais de dez —, peticionando sucessivos adiamentos da execução, a pena capital, em vez de dar prejuízo às empresas — afinal, seria um “hóspede” a menos —, só proporciona lucro maior.

 

Em suma, o colunista americano tem razão no censurar a pena excessiva imposta aos pequenos ladrões. E poderia lutar, através da mídia, para criar uma legislação mais humana.

 

Quanto à presumível tendência da Suprema Corte de cortar os exageros indenizatórios impostos às empresas, a posição do colunista me parece equivocada.

 

O consumidor deve ser protegido, não há dúvida. As indenizações também não devem limitar-se ao efetivo prejuízo material e moral sofrido porque, se assim for, o fabricante ou fornecedor do serviço relaxará na elaboração de seu produto. Preferirá pagar os danos, se e quando ocorrerem. O que prevalece é a relação custo/benefício. Pensará assim: “A dona de casa quebrou a perna ou o quadril, usando nossa escada doméstica? Vamos discutir isso na Justiça. Depois de muitos anos de demanda, ou por acordo, nós, se condenados, indenizaremos as despesas do hospital (se ela não tinha plano de saúde) e uns dias de cama. Sai, para mim, fabricante, mais econômico do que alterar nosso processo de produção e arcar com oneroso controle de qualidade, testando cada escada antes de sair da fábrica”.

 

O colunista americano menciona uma indenização punitiva da Philip Morris, no valor de US$79,5 milhões, que está em risco de ser reduzida pela Suprema Corte. Trata-se de uma viúva que processou a fabricante de cigarros porque seu marido, fumante inveterado, morreu de câncer do pulmão. Teria sido enganado pela propaganda do cigarro. “Data vênia” do colunista, não se vê porque a viúva deva se tornar uma milionária porque seu marido fumava demais. Se há que se procurar sempre um culpado, que não a vítima — hoje, qualquer culpa é sempre dos outros —, ela, viúva, também mereceria censura por não haver lutado para afastar o marido do cigarro. Indenizações desse tipo só estimulam a cobiça. Filhos e sobrinhos de ex-fumantes torcerão para que o velho, ou velha, morra de câncer para se tornarem milionários. Bastaria, no caso, além do dano material e moral, uma indenização punitiva de umas poucas dezenas ou centenas de milhares de dólares para desestimular o tabagismo, induzindo os fabricantes de cigarro a mudar de ramo progressivamente. Se o juiz é um ardente inimigo do cigarro — é seu direito — não pode usar o seu cargo para arrasar empresas e, ao mesmo tempo, enriquecer extraordinariamente possíveis parasitas, parentes do morto, dispensados de trabalhar — eles e seus descendentes — por várias gerações. Se o tabagismo é mau — como realmente é — cabe ao legislador desestimular o vício através de impostos altos, um dinheiro que beneficiaria toda a população e não apenas uns poucos felicíssimos herdeiros e cônjuges do falecido.

 

Há uma evidente distorção nessas indenizações milionárias. No câmbio atual a indenização em exame ultrapassaria cento e sessenta e nove milhões de reais, a soma de inúmeras Mega Senas. Jurados ressentidos contra “ricos” e que impõem tais indenizações nem mesmo conseguem visualizar o montante dessas condenações milionárias. “Chutam” um número. Querem apenas “esmagar” um “rico”, dando vazão a um difuso ressentimento. Se fato semelhante ocorresse no Brasil, a imprensa, sempre desconfiada, já começaria a investigar se os jurados condenadores não tiveram uma súbita melhoria no padrão de vida, após o pagamento da gigantesca indenização. O leitor percebe o que está implícito nisso.

 

Um outro caso, citado pelo colunista, é de um cidadão que comprou um carro da BMW — tudo indica que usado porque a “compensação” foi fixada em apenas quatro mil dólares — e a empresa silenciou quanto ao fato de o veículo ter sido danificado e pintado novamente. A indenização “punitiva’ foi, no entanto, de dois milhões de dólares. Também um exagero. Penso que a grande maioria dos advogados brasileiros concordaria que houve um excesso indenizatório.

 

O colunista argumenta que não há uma doutrina que oriente o montante de tais danos punitivos — aplicados em acréscimo aos danos materiais e morais — e por isso estaria errada a Suprema Corte ao reduzir tais indenizações vultosas, dessa forma protegendo os ricos. Realmente, não há — nem poderia haver — uma fórmula ideal matemática para fixar tais condenações, desestimuladoras do descaso ou má-fé de empresas (às vezes de um determinado funcionário, não propriamente da empresa). Que se fixe uma indenização punitiva, estimuladora da boa prática comercial, mas que não se incentive a transformação da Justiça em uma variante da Mega Sena, enriquecendo uns felizardos que tiveram a “sorte grande” de sofrer — eles ou seus pais — um dano qualquer.

 

Uma sugestão que agora me ocorreu seria a de o legislador estabelecer um “teto” para as indenizações punitivas. Um máximo, digamos, de vinte vezes o valor fixado a título de danos materiais e morais. Já seria uma boa punição econômica e cercearia delírios de grandeza no acrescentar zeros “punitivos” em uma decisão judicial. Seja de juiz singular, seja de júri em causas cíveis, como ocorre nos EUA.

 

Ninguém, mais do que o signatário, critica a atual política externa americana — leiam no meu site www.franciscopinheirorodrigues.com.br —, mas no que se refere à redução dos exageros indenizatórios americanos será elogiável uma guinada da Suprema Corte, evitando automáticas associações de idéias entre indenizações judiciais e os cassinos de Las Vegas. Nosso STJ, felizmente, já tomou posição nesse assunto, podando indenizações que afrontam o senso comum. Que os americanos nos copiem, pelo menos nisso.

 

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*Escritor, Desembargador aposentado e Membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo







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