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Um possível legado da pandemia da covid-19 ao direito público? Pelo necessário regime jurídico infraconstitucional da requisição administrativa

O caos resultante de emergências difusas de saúde pública, a história vem demonstrando, tem servido à moldagem e reconstrução das instituições, do repensamento do papel do Estado e do próprio tecido normativo de direito positivo.

12/5/2020

Uma conquista histórica das liberdades individuais é a garantia fundamental inscrita no art. 5º, XXV1, da Constituição da República, ao assegurar ao indivíduo a ulterior justa indenização, pelo Estado, em virtude do despenho por parte deste da prerrogativa pública da requisição administrativa.

A natureza desse preceito – considerada sua situação topológica no texto constitucional – o qualifica como direito fundamental e, por tal razão, de titularidade individual e de oponibilidade, pelo indivíduo a quem assiste essa garantia, contra a ação estatal. É essa a marca própria da generalidade das liberdades individuais consagradas naquele artigo. Portanto, bem examinado seu conteúdo, impõe-se concluir que o conteúdo axiológico do direito à justa indenização pela requisição administrativa está restrito, no que concerne ao âmbito de proteção de um direito individual, somente a esta parte de seu teor, tratando-se, por isso mesmo, de uma garantia de dimensão dúplice: na primeira parte, confere ao próprio Estado uma prerrogativa de índole fundamental no desempenho da função pública – que é o instituto da requisição, propriamente , e isso a despeito, como dito, de sua situação topológica; e, na segunda, o dispositivo traz, de fato, o direito fundamental, que é a indenização justa e posterior ao ato administrativo que materializa a restrição da propriedade.

Ao partirmos da ideia, tal como sucede do regime de eficácia plena dos direitos individuais, de que esse direito fundamental do Estado à requisição dispensaria regulamentação no plano legislativo – ou mesmo executivo – a consequência seria de que sua concretização exigiria apenas a veiculação, pelo Poder Executivo de qualquer dos entes federados, de ato administrativo motivado, de efeitos concretos evidentemente2, que a impusesse em face do titular da propriedade ou da posse do bem requisitado. Tal circunstância, no entanto, não retira do Estado, precisamente na figura do Chefe do Poder Executivo, a possibilidade de, por iniciativa própria e no uso de seu poder normativo, disciplinar este instituto de extração constitucional para adequá-lo a determinado contexto, inclusive de modo a subsidiar a posterior edição de atos administrativos de efeitos individuais.

No estado de Pernambuco, por exemplo, diante da emergência da pandemia da covid-19, o Governador promulgou o decreto Estadual 433.809 de 14 de março de 2020, que dispôs, em seu art. 2º, inciso IV, sobre a possibilidade de "requisição de bens, serviços e produtos de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa". Regulamentou-se, assim, a previsão constante do art. 5º, XXV da CF/88, da qual consta o pressuposto objetivo de perigo iminente, em cujo núcleo também se encontra compreendida a situação de calamidade pública, para se justificar o ato de intervenção.

Na realidade, tal previsão, no que voltada à contenção de calamidade pública e, de modo ainda mais específico, quando da necessidade de atendimento a situação de perigo decorrente da irrupção de pandemias, já constava do art. 15, XIII, da lei 8.080/90, que disciplina a organização e procedimentos no Sistema Único de Saúde3. De seu teor, no entanto, não se extrai qualquer outro tratamento detalhado do ato de requisição para o atendimento de emergência de saúde, nos termos daquele diploma, notadamente no que se refere à consequente justa indenização.

Consubstancia a requisição ato autoexecutório de direito público de intervenção governamental sobre a propriedade privada, do qual também é espécie o instituto da desapropriação. A diferença fundamental que se deve ter em conta ao se analisar ambos os institutos consiste, como todos sabemos, na complexidade procedimental, na executoriedade da ação púlbica e na temporalidade mesma em que se opera a indenização do particular. Com efeito, a desapropriação – ou expropriação em sentido estrito – é precedida pela declaração de utilidade pública ou social do bem expropriando, de competência do Poder Executivo, ordinariamente compensando-se o sujeito expropriado por indenização prévia em dinheiro, sendo que o questionamento judicial, não das razões intrínsecas ao referido decreto de utilidade emanado do Poder Público, mas da suficiência e correção do valor indenizado, nos temos do art. 20, do decreto-lei 3.365/1941, paralisa a intervenção estatal enquanto não consolidado o valor prévio, salvo se eventualmente concedida a tutela de urgência em favor do Estado, que, desse modo, poderá imitir-se imediatamente na posse do bem4.

Assim não sucede com o questionamento do ato de requisição. Embora deva se revelar amparado por todos os princípios regentes da atividade estatal (CF, art. 37, "caput"), o ato administrativo da requisição, se presentes os pressupostos da calamidade pública ou do perigo iminente, não autoriza a imediata incursão cognitiva nos aspectos concernentes às razões de Estado para sua invocação. Na realidade, tal providência se mostraria, até mesmo, contraproducente, porquanto admitida a procedência de seus pressupostos objetivos, a verificação da legalidade do ato administrativo, de modo a eventualmente lhe suprimirem os efeitos, tornaria inócua a própria ação estatal, por reclamar essa providência atuação imediata por parte do Estado e aplicação expedita de seu comando na esfera jurídica do particular.

Parece-nos que resta ao indivíduo expropriado, entendendo ilegal a requisição, o recurso à impetração do mandado de segurança contra o ato que a veicula, seja ele por meio de decreto do Poder Executivo, seja por meio da edição de lei de efeitos concretos. De um lado, há a possibilidade de, superada a necessidade pública de uso do bem, o Estado proceder à sua devolução ao titular, indenizando-o por eventuais danos, cujo valor seria quantificado por meio de procedimento administrativo sujeito, a seu turno, à instauração de situação litigiosa que demandaria o ajuizamento, pelo particular, de ação autônoma, dado que esse procedimento de quantificação – a revelar-se, em regra complexo e atrativo de prova técnica – não comportaria apreciação na via estreita da ação mandamental, de cognição restrita nos termos do art. 1º, da lei 12.016/2009.

Impõe-se a consideração, no entanto, que, a rigor, na forma da nova lei 13.979/2020, que disciplinou  as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, seria possível – sobretudo se o titular do bem requisitado  qualificar-se como empresário – a impugnação administrativa com fundamento na dispensabilidade da licitação a que alude seu art. 4º5. Essa previsão possibilita, à luz dessa legislação emergencial, que o particular busque negociar a consequência da necessidade pública reconhecida pela Administração, para que, em vez de requisitar o bem em questão, o Poder Público proceda a sua aquisição direta, com a dispensa da licitação disciplinada neste diploma, ou mesmo que se realize a desapropriação consensual, por meio de novo ato executivo.

Frustrada a tentativa negocial, aí sim, recorre-se à impetração, apontando-se eventual vício no ato administrativo requisitório, ou, até mesmo, o abuso de poder da Administração, objetivando-se sua anulação – com todos os efeitos que lhe são consectários – ou  a conversão do ato de requisição baseado no decreto em aquisição direta, com dispensa de licitação, enquadrados os bens alvo da requisição na categoria de "bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública", a que se refere o art. 4º, "caput", da lei 13.979/2020, com o depósito em juízo, pela Administração, dos valores correspondentes à compra.

Não se pode ignorar que o inadequado emprego da requisição constitucional, pelo Poder Público, seja por ausentes os pressupostos objetivos da calamidade pública ou perigo iminente, seja em função do abuso de poder ou desvio de finalidade do ato administrativo, pode se revelar fonte de graves prejuízos ao indivíduo, notadamente recaindo tal intervenção sobre mercadoria ou bens inerentes ao desempenho de atividade econômica. Nesse ponto, questão central que se deve ter em consideração é a omissão legislativa atinente à inexistência de disciplina legal do procedimento de fixação do quantum indenizável ou do tempo em que ocorrerá o adimplemento dessa indenização.

Outras questões, ademais, colocam-se em face dessa omissão legislativa. Poderia o Estado realizar o pagamento da indenização por meio de títulos da dívida pública? Havendo questionamento judicial posterior, a inclusão da condenação na fila dos precatórios, pelo art. 100, da Constituição Federal, traduziria elemento inequivocamente dissuasivo da propositura da ação pelo particular, pois aguardar indefinidamente o prazo para indenização poderia, de fato, preceder o próprio pagamento do precatório. Representaria este efeito dessa inconstitucional omissão ofensa à garantia de acesso à justiça? São esses alguns pontos que poderiam ser resolvidos com a superação da mora legislativa em regulamentar o instituto.

O caos resultante de emergências difusas de saúde pública, a história vem demonstrando, tem servido à moldagem e reconstrução das instituições, do repensamento do papel do Estado e do próprio tecido normativo de direito positivo. Essa trágica ocorrência, ao menos se espera, deve sinalizar ao legislador a necessidade de regulamentar o tema da requisição administrativa, que, mercê de sua imediata aplicabilidade e da sua essencialidade ao desempenho da função de governo, porquanto ausente disciplina detalhada da matéria, revela-se suscetível à violação substancial de outros direitos de igual índole fundamental, tais como a propriedade6, a livre iniciativa e o valor do trabalho7.

De nada adianta o manejo de prerrogativas governamentais constitucionalmente consagradas, dando-se-lhes plena efetividade, se seus efeitos posteriores representarem o retrocesso de direitos individuais, a lhes atribuir a falsa impressão de que o uso de institutos como a requisição administrativa concretizam garantias como a saúde universal, quando apenas de forma passageira se tem por superado um problema setorial e centralizado, de modo que sua operação desmedida signifique o agravamento de certas posições individuais por consequência de ação empreendida pelo próprio Estado.         

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1 "no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;"

2 Sobre a auto-executoriedade do ato administrativo de requisição, cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21ª ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 126.

3 "Para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes asseguradas justa indenização."

4 O entendimento no STF é antigo, no sentido de que a denominada imissão provisória do Poder Público na posse do imóvel dispensa a prévia garantia subjacente à justa indenização (RE 185.303/SP, rel. Min. Octavio Gallotti, 1ª T., j. 12.3.1996; RE 184.069/SP, rel. Min. Néri da Silveira, 2ª T., j. 5.2.2002; RMS 9.648/BA, rel. Min. Victor Nunes, Pleno, j. 16.7.1962, v.g.). Essa compreensão também restou consagrada no enunciado 625 da Súmula do STF, cujo teor dispõe que "Não contraria a Constituição o art. 15, parágrafo 1º, do decreto-lei 3.365/1941 (Lei da Desapropriação por utilidade pública)".

5 "É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei." (Redação dada pela MP 926, de 2020)

6 Sobre a regulamentação legal da restrição ao direito fundamental de propriedade, com lapidar tratamento do tema, cf. LEAL, Roger Stiefelmann. A propriedade como direito fundamental – Breves notas introdutórias. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 49 n. 194 abr./jun. 2012: "Mesmo sem expressa autorização constitucional, cabe à legislação impor limitação a direito fundamental em razão de outro preceito constitucional, que, inclusive, pode ser conformador de outro direito constitucionalmente assegurado. Nesse caso, o legislador acaba por exercer juízo de ponderação entre um direito fundamental e outros valores constitucionais que se lhe oponham, optando por solução que aplique em maior grau os valores contrapostos e em menor grau o direito (MARTÍN-RETORTILLO BAQUER; OTTO Y PARDO, 1988, p. 108)."

7 "Valorização do trabalho humano e reconhecimento do valor social do trabalho consubstanciam cláusulas principiológicas que, ao par de afirmarem a compatibilização – conciliação e composição – a que acima referi, portam em si evidentes potencialidades transformadoras." Cf. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 18ª ed., São Paulo: Malheiros, 2017. p. 195

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*Tomás Pires Acioli é membro do escritório Amaral, Paes de Andrade e Figueirêdo Advogados. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife/UFPE. Ex-Pesquisador Bolsista do programa PIBC/FACEPE.

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