Migalhas de Peso

A doença econômica pós quarentena e o princípio de preservação da atividade empresarial

Em juízo ou fora dele os médicos de empresas terão de ser capazes de equilibrar ânimos e a saúde financeira dos infectados, sem correr o risco de matar o paciente.

11/5/2020

"Não há nenhum interesse social em multiplicar as falências, provocando as depressões econômicas, recessões e o desemprego numa época em que todas as nações do mundo lutam precisamente para afastar esses males. Uma falência pode provocar um reflexo psicológico sobre a praça, e todas as nações do mundo procuram evitar esse colapso das empresas, que tem como consequência prática o desemprego em massa nas populações". (Ministro Aliomar Baleeiro, Recurso Extraordinário 61.688-SP - in Revista Trimestral de Jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal - vol. 40, Tomo 3, pg. 704, junho de 1967).

A lição do Ministro Aliomar poderia ter sido publicada em qualquer jornal de grande circulação nos dias de hoje, tratando da retomada das atividades empresariais e da manutenção de empregos após o fim da quarentena que a COVID-19 impôs ao planeta, e a olhos nus, se mostra mais atual do que nunca.

O Coronavírus, além dos efeitos devastadores para a saúde do ser humano está trazendo à tona discussões que envolvem a economia global. Derrubou vertiginosamente o PIB (produto interno bruto) de países considerados potências mundiais, e no Brasil a situação é, e não será diferente.

Até o mês de abril de 2020 o Banco Mundial prevê que nosso país tenha uma retração do PIB em torno de 5% o que deve aumentar em aproximadamente 40% os pedidos de Recuperação Judicial, visto que estatisticamente a retração é bastante superior à de 3,6% registrada entre 2015 e 2016, e que levou a recordes os pedidos de moratória em todo o país.

Destinada a sanear a situação de crise econômico-financeira de um devedor, objetivando, ainda, a manutenção da atividade da empresa, do emprego de seus trabalhadores e dos interesses dos credores, a Recuperação Judicial ou até mesmo as vias negocias (coletivas ou caso a caso) serão a única saída para o empresário que viu sua produção parar, ou despencar aceleradamente.

Os benefícios da lei (além das estratégias de negociação e administração de passivos) procuram evitar os efeitos nefastos da falência face aos prejuízos irreparáveis que podem ocasionar, permitindo ao devedor levar suas contas a juízo ou aos próprios credores para confessar a sua dificuldade e solicitar o apoio a fim de que se reestruture e sobreviva.

Lembremos que a situação de inadimplência é generalizada, e atinge em efeito dominó praticamente toda a linha produtiva das companhias, desde o empresariado, passando por prestadores de serviço e fornecedores, até chegar aos empregados – que lutam para manter seus empregos. Não há privilégio, todos os envolvidos nessa situação, sem exceção, passam pela mesma régua baixa e lutam para levar comida à mesa, pois a dificuldade financeira do proprietário do negócio é a mesma do funcionário (não se iludam com a ideia decrepita que o empresário é o vilão que tem montanhas de dinheiro guardado e só quer sugar o sangue do funcionário. Muitos pequenos e médios, em dia de pagamento de salário e adiantamento, ficam sem dinheiro para comprar uma pizza no final do dia, mas pagam o salário do seu time religiosamente – isso certamente aconteceu milhares de vezes durante essa crise).

Mas há quem defenda que isso tudo é uma fantasia, uma obra dantesca da imprensa para espalhar o terror e a instabilidade, e que o governo – Federal, Estadual e Municipal – está providenciando o socorro para a empresa em dificuldade. Infelizmente isso é uma grande falácia. As linhas de crédito do governo e o dinheiro disponibilizado via repasse de bancos particulares tem milhões de regras para serrem atingidas, dentre elas a principal é a empresa possuir cadastro limpo e estar em dia com as responsabilidades tributárias. Pronto, está bloqueado o acesso às linhas para a grande maioria dos necessitados, pois de acordo com o SERASA, em dezembro de 2019 as pessoas jurídicas inadimplentes no Brasil já eram aproximadamente seis milhões, imaginem então qual será o número durante, e após o fim da quarentena!

Quem precisa do dinheiro subsidiado para sobreviver não terá acesso a ele, e a situação vai se agravar ainda mais pois a única boia que poderia ser jogada a quem está se afogando ficou no convés.

O empresário sem faturamento e sem acesso às linhas de crédito não conseguirá (como já não está conseguindo) pagar seus fornecedores e empregados, ocasionando a reverberação dessa regra de inadimplência por toda a cadeia produtiva direta e indireta.

Ou seja, o fornecedor que não recebe também não conseguirá pagar parceiros, impostos e funcionários, e atingirá outros fornecedores que passarão pela mesma situação, disseminando a inadimplência da mesma forma como se disseminou o COVID-19, por contato direto. A chance de morte vai aumentar muito se um remédio não for administrado de forma certeira. É praticamente uma única chance, e como todo extinto de sobrevivência em situações de risco exacerbado, aumenta significativamente o medo de errar. O problema é que errar nessa situação significa a morte.

O alastramento não será voluntário. Via de regra o vírus da inadimplência não irá se propagar por vontade intencional do devedor, mas sim por sua saúde financeira estar significativamente abalada, infectando todos seus contatos diretos, alguns de forma mais leve e outros de maneira mais severa, e assim acontecerá sucessivamente por toda a cadeia de relacionamento.

Mas toda doença tem algum remédio mesmo que amargo para ser tratada, e o direito brasileiro – que possui legislação específica e vasta – servirá para dar amparo aos doentes rapidamente a fim de evitar os sinistros efeitos da morte empresarial.

Essa foi inclusive uma das razões da edição da Lei 11.101/2005, que regula as falências e recuperações judiciais, tendo à época, o Ilmo. Ministro da Justiça em exercício, consignado na exposição de motivos do projeto que iria substituir o Decreto 7.661/45:

9. Assim sendo, a proposta legislativa mencionada visa a, primordialmente, proteger credores e devedores, salvaguardando, também a empresa.

Desde há muito no Brasil (iniciando-se em 1850 quando o tema da recuperação era tratado no Código Comercial) as providências de preservação de credores e devedores vêm encontrando guarida na lei. Em 1988 passou a ser preocupação na própria Constituição Federal que em seu artigo 1º – III e IV – estabelece como fundamentos do estado de direito brasileiro a proteção da dignidade da pessoa humana, do trabalho e da livre iniciativa.

Com o intuito de se preservar estes direitos constitucionais fundamentais é que se deve lutar com afinco, buscando evitar ao máximo a decretação da bancarrota de qualquer empresa durante um período mínimo de recuperação, prestigiando sempre a manutenção da fonte produtiva e do emprego ali gerado.

A decretação da Falência de uma empresa é fato que não interessa a ninguém, sem se falar em fornecedores e clientes que se dispersarão e defrontarão ante a adversidade, e é justamente para evitar esse descalabro que a teleologia, ciência jurídica que conduz a interpretação da lei objetivando seus fins sociais não aceita interpretação literal do texto. Isto vem do artigo 5º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (Antiga Lei de Introdução ao Código Civil), que estabelece:

“Art. 5º. Na aplicação da Lei, o juiz atenderá aos fins sociais a ela se destina e às exigências do bem comum”.

Justamente por esse motivo, é que não se deve admitir a quebra de uma empresa que pode se recuperar, respeitando-se o efeito social da lei, evitando ao máximo os impactos nefastos gerados pela bancarrota, e nesse momento de retomada pós quarentena não poderá ser diferente.

Milhares de pessoas físicas, cidadãos, trabalhadores e empresários já perderam a vida para a doença do corpo, e o direito, com foco na Constituição, não pode permitir que também venham a morrer empresas, face as repercussões sociais que lançariam, não somente sobre seus proprietários, mas, sobretudo, sobre seu corpo funcional e os familiares daqueles que a integram, pelo risco de impor ainda mais sofrimento aos sobreviventes.

Obviamente não se pode esperar que todos os credores sejam compreensivos e aceitem negociar seus créditos. Estes são os credores que disparam todo tipo de pressão e enfrentamento, e há de se entender que a pressão indireta pode estar levando-os a este comportamento, mas estes serão os grandes obstáculos pois na grande maioria das vezes estão sofrendo da doença da inadimplência em grau mais severo, ou simplesmente não estão dispostos a ceder a favor do interesse coletivo.

Como afirma Amador Paes de Almeida, “não se pode admitir que interesses egoísticos de determinados credores se sobreponham aos interesses de toda uma coletividade, arruinando-se irremediavelmente organizações produtivas que conjugam não somente os interesses pessoais do empresário, mas sobretudo o interesse público que decorre da estabilidade social, representada na manutenção de empregos com o sustento de dezenas, se não milhares, de trabalhadores e de suas respectivas famílias” (Curso de Falência e Concordata, 1993, Saraiva, São Paulo, 11ª ed., págs. 12 e 13).

Seja pelo disposto na Constituição Federal, na Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, ou pela exposição de motivos na apresentação do projeto da Lei 11.101/2005, a luta pela vida da empresa e de seus integrantes continuará e se intensificará após o fim da quarentena

O remédio jurídico ministrado através dos advogados e especialistas em recuperação terá de ser bem escolhido para preservar a saúde de todos os envolvidos e ser ao mesmo tempo eficaz no combate ao mal gerado pelo vírus da inadimplência.

Em juízo ou fora dele os médicos de empresas terão de ser capazes de equilibrar ânimos e a saúde financeira dos infectados, sem correr o risco de matar o paciente. Não será fácil e tampouco eficaz para todos, mas será sim possível, com muito trabalho e uso da lei, salvar a grande maioria.

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*Marcello Antonio Fiore é advogado do escritório Fiore Advogados. Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP. Especialista em Recuperação de Empresas.

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