Não há dúvidas acerca da situação alarmante que assola o país e o mundo, decorrente da pandemia da COVID-19. Diante de tal cenário, além dos inúmeros reflexos para a saúde pública, faz-se necessário atentar para a crise econômica advinda da recessão de diversos setores, podendo o número de desempregados no Brasil chegar a 17 milhões no segundo trimestre.
Apesar da adoção de diversas medidas de flexibilização por parte de empresas que fornecem serviços essenciais, como o abastecimento de água e energia elétrica, fato é que certas obrigações pecuniárias não podem simplesmente sofrer uma interrupção abrupta, gerando o inadimplemento total, como é o caso da verba alimentar.
O debate acerca do dever de prestar alimentos e as possíveis alternativas jurídicas e processuais para reduzir os impactos do seu inadimplemento, tanto para o devedor como para o credor, tem sido constante no âmbito do Direito de Família. Assim, surgem diversos questionamentos: como ficará o pagamento da pensão alimentícia? É possível reduzir arbitrariamente o valor a ser pago? Como os juízes e Tribunais têm se posicionado em tais casos?
Por certo, nem todas as indagações terão resposta exata, tampouco os julgadores farão uso de “receitas de bolo” para proferir suas decisões. Ou seja, não há como negar que o direito familiar, em todos os âmbitos, especialmente no que se refere a aspectos parentais, como guarda compartilhada e o exercício da convivência, nunca esteve tão adstrito às peculiaridades de cada caso.
Sabe-se que a fixação da obrigação alimentar é norteada pelo §1º do artigo 1.694 do Código Civil, sendo que o estabelecimento da verba dar-se-á de acordo com as necessidades de quem a pleiteia e as possibilidades daquele que é obrigado a pagar. Da mesma forma, o artigo 1.699 da codificação civil autoriza a revisão do valor fixado se ocorrer comprovada modificação de quaisquer das circunstâncias acima mencionadas.
Em um primeiro momento, o que vem à tona é a drástica redução nas possibilidades do devedor, o que enseja, a depender do caso, a suspensão do pagamento ou a redução do montante a ser pago. Ocorre que, a par das dificuldades enfrentadas pelo alimentante para cumprir com a obrigação, não há como olvidar as mudanças nas necessidades do alimentando.
Ora, em tempos de isolamento social e adaptação da maior parte das atividades para dentro de nossas casas, fato é que despesas essenciais – como água, luz, gás e alimentação, por exemplo – sofreram um aumento, especialmente em lares onde crianças que permaneciam em turno integral nas escolas passam a fazer uso da tecnologia (e criatividade) para manter a rotina de aprendizagem em suas casas.
Portanto, é preciso cautela e ponderação do Poder Judiciário ao analisar as demandas com o intuito de revisar os valores devidos a título de alimentos, sob pena de violar-se um dos princípios basilares do Direito de Família, qual seja, o da prioridade absoluta e do melhor interesse da criança, esculpido no artigo 227 da Constituição Federal1 e nos artigos 1º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente2.
Outro ponto levantado é a possibilidade de suspensão do pagamento ou redução do valor de forma unilateral pelo devedor. Por óbvio, a resposta é negativa, pois eventual alteração ou exoneração da pensão alimentícia deve obter obrigatoriamente o crivo do Poder Judiciário, por meio de decisão fundamentada, a qual deverá analisar, de forma pormenorizada, os fatos narrados e as provas carreadas.
Nesse aspecto, abre-se espaço para discutir a linha tênue existente entre as reais dificuldades financeiras pelas quais passa o alimentando, a necessidade de adequar o encargo alimentar e a oportunidade de valer-se de tal momento de fragilidade para se reduzir o valor dos alimentos sem a prova mínima do alegado, apenas para desincumbir-se de tal encargo.
Há quem diga que os reflexos econômicos da pandemia da COVID-19 tratam-se de fato notório e independem de prova, conforme preconiza o artigo 374, inciso I, do Código de Processo Civil. Entretanto, não se mostra crível uma enxurrada de decisões autorizando o redimensionamento dos alimentos com base unicamente na alegação de decréscimo financeiro decorrente do Coronavírus, sob pena de um indevido fomento ao inadimplemento do alimentante.
Sob a ótica processualista, cumpre destacar que o ajuizamento de ações revisionais é cabível nos casos em que a obrigação alimentar já tenha sido fixada em sentença com trânsito em julgado, não sendo mais possível reduzir ou majorar o valor naquela demanda.
Já nos processos em curso, poderá o alimentante formular pedido – desde que fundamentado e provido de prova mínima – para exonerar-se do encargo alimentar ou reduzir, provisoriamente, o valor dos alimentos. Salienta-se que o pleito pode se dar por meio de tutela de urgência antecipada, com caráter liminar, na forma do artigo 300 do CPC/15.
A probabilidade do direito poderá ser comprovada por meio de provas da manifesta redução das condições financeiras do alimentante, como a situação de desemprego, suspensão ou redução salarial ou mesmo diminuição dos lucros e rendimentos de empresa sob sua administração. Já o perigo de dano restará evidenciado pelos prejuízos advindos, os quais poderão comprometer a própria subsistência do devedor.
O Projeto de Lei nº 1.627/2020, que dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito de Família e das Sucessões no período da pandemia causada pelo Coronavírus, autoriza, dentre outras medidas, por meio de decisão judicial, a suspensão parcial da prestação em até 30% do valor devido, pelo prazo de 120 dias.
Ainda, condiciona tal suspensão à comprovação de regularidade dos pagamentos até março do corrente ano, bem como possibilita que o valor da diferença entre o montante original e aquele pago pelo período de até quatro meses seja adimplido por meio de seis parcelas mensais, com vencimento a partir de janeiro de 2021.
No que diz respeito à cobrança dos alimentos em atraso por meio do cumprimento de sentença pelo rito da coerção pessoal (prisão), disciplinado no artigo 528 e ss. do Código de Processo Civil, alguns pontos merecem destaque e reflexão.
É facultado ao devedor de alimentos apresentar justificativa, meio de defesa cabível nas execuções de alimentos, a fim de expor suas razões para o inadimplemento da verba alimentar, ainda que parcial, oportunidade em que poderá ofertar proposta de parcelamento do débito alimentar, a qual será apreciada pelo credor.
Aqui aplica-se o mesmo raciocínio para o pedido de suspensão ou redução do encargo alimentar: é necessária a comprovação judicial da efetiva redução da capacidade financeira do alimentante a justificar a mora. No entanto, sem dúvidas, a melhor alternativa ao devedor é prevenir-se, modificando o título judicial que deu azo à cobrança, do que defender-se para afastar a decretação da sua prisão civil.
Nesse sentido, sobreveio mudança temporária quanto à forma de encarceramento do devedor de alimentos, que passou a ser por meio da prisão domiciliar, conforme consolidado pela Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça e decidido pelo Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Habeas Corpus nº 568.021-CE. Na mesma linha, assim prevê o artigo 22 do Projeto de Lei nº 1.179/2020 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado).
Diante de tal alteração, muitos credores da verba alimentícia, ao entenderem que a finalidade da execução de alimentos pelo rito prisional passa a ser inócua, poderão buscar meios alternativos de satisfação do crédito, como através da conversão do rito para o expropriatório, em busca de eventuais bens do devedor para levar à penhora.
No tocante ao posicionamento adotado pelos Magistrados de 1ª e 2ª instância, destaca-se recente decisão proferida pelo Juiz da 2ª Vara de Família e Sucessões de Jacareí, em São Paulo, que reduziu o valor da obrigação alimentar para o patamar equivalente a 30% do salário mínimo durante os meses de março, abril, maio e junho de 2020, com base na limitação da atividade empresária da devedora em virtude do isolamento social.
Por fim, em que pese citados os diversos mecanismos jurídicos e processuais à disposição do devedor de alimentos para que possa obter a adequação do valor da pensão alimentícia aos seus ganhos atuais, nada impede que as partes definam o numerário, forma de pagamento, termo final e inicial, dentre outros aspectos, por meio de acordo extrajudicial, a ser homologado pelo Judiciário.
Isso porque, uma das grandes inovações advindas com o Novo Código de Processo Civil foi a primazia da solução consensual dos conflitos, consagrada no artigo 3º do CPC/15, a fim de estimular as partes a fazerem uso da conciliação e mediação para a solução do litígio, o que pode reduzir vertiginosamente os custos temporais, financeiros e psicológicos atrelados à tramitação de uma ação judicial.
Sendo assim, em um momento tão delicado, que exige bom senso de todos, poderão, credor e devedor de alimentos, ainda, escolher o caminho mais curto e, fazendo uso das prerrogativas conferidas pela legislação processual vigente, disporem do pagamento da verba alimentar por meio de negócios jurídicos processuais, na forma do artigo 190 do Código de Processo Civil.
Vivemos tempos difíceis, com reflexos em todos os setores e, do ponto de vista jurídico, em diversos ramos do Direito. No tocante à advocacia familista, os impasses são variados e nos desafiam diariamente a sopesar diferentes bens tutelados juridicamente que, ao fim e ao cabo, possuem relação direta com aquele que deve ter maior primazia no momento: a vida.
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1 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
2 Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
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*Amanda Silveira de Almeida é advogada atuante na área de Direito de Família e Sucessões, graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.