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Prorrogação do prazo para integralização do capital nas sociedades limitadas

O Código Civil estabelece as medidas que podem ser adotadas em face do sócio que deixar de integralizar suas quotas do capital na forma ou no prazo estabelecidos no contrato social, em violação dos termos pactuados com os demais sócios.

11/5/2020

O capital consiste na soma representativa da contribuição dos sócios à sociedade.1 Quando a sociedade é constituída, o valor do capital social efetivamente integralizado equivale à contribuição que os sócios fizeram para que ela possa se estruturar e iniciar suas atividades. Posteriormente, poderão ser realizados aumentos ou reduções do capital, de forma a adequá-lo ao desenvolvimento da sociedade.

Um dos requisitos para a constituição de sociedade limitada consiste justamente na indicação do valor do capital social expresso em moeda corrente, bem como do número de quotas representativas desse capital que caberá a cada sócio e o modo de sua integralização, nos termos dos artigos 997, IV, e 1.004 do Código Civil ou dos artigos 5º e 7º da lei 6.404/76 (no caso de o contrato social prever aplicação supletiva da lei das sociedades anônimas).

O Código Civil estabelece as medidas que podem ser adotadas em face do sócio que deixar de integralizar suas quotas do capital na forma ou no prazo estabelecidos no contrato social, em violação dos termos pactuados com os demais sócios. Conforme dispõe o art. 1.004, verificada essa situação, deve tal sócio ser notificado para que realize a integralização no prazo de 30 dias, sob pena de responder pelos danos daí decorrentes. Constituído o sócio em mora, poderão os demais sócios ou a sociedade, conforme o caso, adotar as providências previstas nos artigos 1.004, parágrafo único, e 1.058, em face do sócio remisso.

Por outro lado, o legislador nada dispôs sobre a possibilidade de alteração da forma e/ou do prazo para integralização do capital social quando os sócios assim desejarem, gerando divergências interpretativas que acabam por causar insegurança e prejudicar, principalmente, a própria sociedade empresária.

Em 18 de agosto de 2009, a Procuradoria Regional da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro – JUCERJA, elaborou parecer acerca do tema, até hoje referenciado pelos analisadas da referida Junta Comercial.2 O parecer em questão revisitou manifestação anterior sobre a matéria, na qual a mesma Procuradoria havia concluído pela impossibilidade de prorrogação do prazo para integralização do capital social quando este já estivesse vencido, sob o argumento que tal alteração violaria direitos de credores da sociedade.

Em seu parecer subsequente, a Procuradoria Regional da JUCERJA ponderou que “o interesse a ser considerado envolve, por um lado, a preservação dos interesses dos credores da sociedade, que confiaram nas informações constantes do registro do comércio, e, por outro lado, a possibilidade de que a sociedade, por unanimidade, decida livremente uma questão interna, que só os seus sócios poderiam adequadamente avaliar, relativa à prorrogação do prazo para integralização do capital”.

A partir dessa ponderação, a Procuradoria da JUCERJA entendeu ser possível a prorrogação do prazo para integralização do capital social, desde que decidida de forma unânime pelos sócios. Entretanto, condicionou o arquivamento de atos societários contendo essa decisão dos sócios à apresentação dos seguintes documentos: balancete especial assinado por contador, demonstrando que os credores não seriam prejudicados com a prorrogação; e declaração dos administradores afirmando que a sociedade se encontra solvente.

Em sentido diverso, foram identificados dois pareceres da Procuradoria da Junta Comercial do Estado de Santa Catarina – JUCESC (de 2003 e 2008), ambos reconhecendo que a fixação do prazo para integralização do capital social e sua eventual alteração inserem-se na esfera da autonomia da vontade dos sócios. Registrou-se, ainda, que os interesses dos credores estariam resguardados, uma vez que os sócios são pessoal e solidariamente responsáveis até o limite da integralização do capital social.3

As interpretações divergentes acima apresentadas demonstram as dificuldades de conciliação de interesses decorrentes da matéria e a necessidade de pacificá-la.

Por diversas razões, entende-se que a melhor interpretação da legislação sobre o tema vai no sentido de que a estipulação do prazo para integralização do capital social insere-se no âmbito da autonomia da vontade dos sócios, podendo ser por eles livremente pactuado e alterado.

Isso porque, em primeiro lugar, inexiste dispositivo legal vedando a alteração do prazo para integralização do capital social. Logo, não cabe às Juntas Comerciais ou a qualquer intérprete criar restrições ao exercício da autonomia da vontade que não possuam fundamento legal.

Também não se vislumbram graves prejuízos aos credores da sociedade decorrentes da referida prorrogação de prazo. Em sendo dada solução definitiva para a divergência interpretativa em análise, o credor, ao verificar a existência de prazo para integralização do capital social de sociedade com a qual pretenda contratar, estará ciente de que tal prazo pode ser alterado pelos sócios e deve levar isso em consideração quando da celebração do negócio jurídico.

Adicionalmente, o credor sempre poderá se utilizar de outros meios para conhecer a real situação patrimonial da sociedade com a qual deseja realizar negócios, inclusive solicitando à administração cópias de suas demonstrações financeiras, as quais indicarão diversos aspectos patrimoniais da sociedade de forma muito mais precisa e detalhada do que a cifra estática de capital que consta do contrato social. O credor poderá, por exemplo, avaliar o valor do patrimônio líquido ou, ainda, a capacidade de pagamento da sociedade.

Na mesma linha, a norma do Código Civil que estabelece a responsabilidade pessoal e solidária dos sócios pela integralização do capital social (art. 1.052) serve como proteção adicional aos credores para a situação em tela. Não há que se falar, portanto, em desamparo dos credores em caso de alteração no prazo para integralização do capital.

Registre-se, ainda, que a exigência de documentos suplementares referida no Parecer da Procuradoria da JUCERJA viola frontalmente o art. 37 da lei 8.934/94, que contém rol taxativo de documentos que podem ser solicitados pelas Jutas Comerciais para arquivamento de atos societários. Some-se a isso o fato de que a atividade da Junta Comercial deve limitar-se ao exame das formalidades legais do ato apresentado a registro (art. 40 da mesma lei). Pergunta-se: que legitimidade teria a Junta Comercial para avaliar o “balancete especial” exigido e verificar se os credores estariam, ou não, sendo prejudicados com a prorrogação? Tal juízo de valor extrapolaria – e muito – os limites de atuação da Junta Comercial.

A despeito de poucos terem se ocupado do tema, este já foi objeto de análise no TRF da 3ª região em 2012, em sede de remessa necessária de sentença proferida em mandado de segurança, impetrado em face da Junta Comercial do Estado do Mato Grosso do Sul. Na sentença, confirmada em decisão monocrática, foi concedida a segurança sob o argumento de que o momento da integralização do capital social envolve decisão dos sócios da sociedade, podendo o prazo inicial ser prorrogado.4

Pelo exposto, conclui-se ser plenamente admissível a alteração de prazo para integralização do capital social de sociedade limitada, uma vez tratar-se de questão inserida na autonomia da vontade de seus sócios. A recusa de arquivamento de ato societário em que seja deliberada essa matéria (ou solicitação de documentos adicionais para tanto) é ilegal e excede os limites de atuação das Juntas Comerciais estabelecidos em lei.

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1 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. v. 1, p. 485.

2 Procuradoria Regional da Junta Comercial do Rio de Janeiro. Processo nº 00-2009/097319-4. Parecer. Procurador: Gustavo Tavares Borba. Rio de Janeiro, 18 ago. 2009. Disponível em: <_https3a_>
br/Transparencia/PaginarParecer?pagina=15>. Acesso em: 29 abr. 2020.

3 Procuradoria Regional da Junta Comercial de Santa Cataria. Processo nº 03/220814-6. Parecer nº 121/03. Procurador: Victor Emendörfer Neto. Florianópolis, 24 out. 2003. Disponível em: <_https3a_>
/index.php/informacoes/pareceres>. Acesso em: 29 abr. 2020; Procuradoria Regional da Junta Comercial de Santa Cataria. Processo nº 07/233459-2. Parecer nº 06/08. Procurador: Victor Emendörfer Neto. Florianópolis, 22 jan. 2008. Disponível em: < https://www.jucesc.sc.gov.br/index.php/informacoes/pareceres>. Acesso em: 29 abr. 2020.

4 Em 1ª instância: Mandado de Segurança nº 0000017-39.2012.403.6000. 1ª Vara Federal de Campo Grande. Sentença publicada no DjE. em 27 jul. 2012. Em 2ª instância: TRF-3. Primeira Turma. Remessa Necessária nº 0000017-39.2012.4.03.6000. Relator: Des. Fed. José Lunardelli. Data de publicação no DjE.: 20 maio 2013.

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*Nicholas Furlan Di Biase é mestrando da linha de Empresas e Atividades Econômicas da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, bacharel em Direito pela UERJ e advogado associado de Moreira Menezes, Martins Advogados.

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