Para além do covid-19, a crise econômica que se estabeleceu em todo o mundo trará reflexos perenes não só em nossas estruturas sociais, mas exigirá de todos uma mudança de postura para que, enfim, sobrevivamos ao abalo jurídico que ainda vamos experimentar.
Todas as relações mudaram. Com as relações jurídicas, não seria diferente. O colapso já nos leva a questionamentos sobre adimplementos contratuais de todas as espécies. Em muitos dos contextos, o que mais se observa são contraentes buscando formas de resolução dos pactos estabelecidos.
A comunidade jurídica tem sido bombardeada com estudos e teses voltadas ao desfazimento do contrato com base no art. 393 do Código Civil, que trata da alegação de caso fortuito ou força maior; arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, responsável por reger a resolução pela agora tão celebrada onerosidade excessiva; e, até mesmo, os art. 476 e 477 também do Código Civil que versam sobre exceção do contrato não cumprido e exceção do contrato parcialmente cumprido, onde há a insegurança de que um contrato não seja adimplido, hipóteses também previstas nos enunciados 437 e 438 da V Jornada de Direito Civil.
À primeira vista, meu sentimento é de total desespero por imaginar os milhares de milhões de contratos existentes em todos os rincões desse país sendo desfeitos. Além do óbvio prejuízo financeiro que isso traria – e que nos levaria, diretamente, a um abismo econômico ainda maior, a resolução massiva de contratos traria um aumento inimaginável no já agigantado número de processos judiciais ativos no Brasil – que, hoje, chega a quase 80 milhões, de acordo com dados do Justiça em Números do CNJ1.
Não só pela ameaça de naufrágio do Poder Judiciário ou pela violação à função social dos contratos, festejar e incentivar a resolução de contratos é pueril e, também, incoerente. Isso porque é preciso compreender que a cada contrato aplica-se uma realidade distinta e, sendo assim, existem contratos que verdadeiramente precisam ser resolvidos ou revisados, mas a outros tantos contratos a medida mais saudável é sua simples manutenção.
Atento ao festival de resoluções contratuais, o projeto de lei 1.179/20, dentre tantos temas, reserva um capítulo específico destinado a resilição, resolução e revisão dos contratos.
Propõe o PL, por exemplo, que as consequências decorrentes da pandemia do covid-19 nas execuções dos contratos não terão efeitos jurídicos retroativos. Ainda, se o PL for aprovado em seu texto original, não serão considerados fatos imprevisíveis (como já citamos acima) os impactos econômicos, como o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário. Vale o recorte de parte da justificativa do projeto de lei para sua melhor compreensão:
Hoje, tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor, possuem regras adequadas para resolver ou revisar contratos por imprevisão, no primeiro caso, e onerosidade excessiva, no segundo diploma. É preciso agora conter os excessos em nome da ocorrência do caso fortuito e da força maior, mas também permitir que segmentos vulneráveis como os locatários urbanos não sofram restrições ao direito à moradia.
Felizmente, antes que essa crise chegasse por aqui, foi instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica que deu ainda mais valor à boa-fé objetiva, onde deposito esperanças de que seja a solução para a superação ou, pelo menos, para o abrandamento da crise.
Falar de boa-fé objetiva não me parece uma grande inovação. Aliás, Clóvis do Couto e Silva leciona que o direito romano se utilizava muito desse instituto:
A influência da boa-fé na formação dos institutos jurídicos é algo que não se pode desconhecer ou desprezar. Basta contemplar o direito romano para avaliar sua importância. […] valorizava grandemente o comportamento ético das partes […] para que pudesse considerar, na sentença, a retidão e a lisura do procedimento dos litigantes, quando da celebração do negócio jurídico2
Mas ainda que não seja uma inovação jurídica, temos aprendido a conviver com a boa-fé objetiva e ela não deixa de ser elemento novo no Brasil, já que somente foi incorporada no Código Civil de 2002, inspirada de maneira sábia pelo treu und glauben do BGB Alemão3. Cumpre-me dizer, ainda, que a já citada Lei da Liberdade Econômica provocou alterações importantes nos dispositivos que já tratavam da boa-fé.
A esse exemplo, a nova redação do art. 113 do Código Civil, agora com parágrafos e incisos, evidencia ainda mais a boa-fé: além do caput, trouxe também a previsão no § 1º, inciso III, ao dizer que a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que corresponder à boa-fé.
E para que essa breve análise não fique enfadonha com a utilização da terminologia “boa-fé” em tantas ocasiões, peço licença para valer-me de um sinônimo que aqui, pelo menos ao meu ver, tem total pertinência: bom senso.
Devemos nos lembrar que os contratantes e contratados são obrigados a guardar, em todas as fases processuais, o bom senso que é esperado naquele negócio jurídico, conforme nos direciona o art. 422 do Código Civil e os enunciados 25, da I Jornada de Direito Civil, e 170, da III Jornada de Direito Civil.
E esse bom senso traz consigo deveres anexos de conduta. Não me parece razoável que deixar de honrar com os pactos estabelecidos esteja em conformidade com o dever de agir com honestidade, respeito, com cuidado em relação à outra parte negocial e todos os demais deveres anexos que são inerentes aos contraentes.
A Lei da Liberdade Econômica distanciou a intervenção Estatal nas relações contratuais entre particulares e deu mais força ao pacta sunt servanda, já que o modificado art. 421 do Código Civil agora estabelece que a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato e prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. A esse respeito, Sílvio de Salvo Venosa recorda que, para analisar se o contrato cumpre sua função social, é necessário observar, inclusive, seu momento histórico:
Preservada a autonomia da vontade, o grande baluarte pactual, importa verificar no caso concreto se o contrato em si, ou cláusulas deste, transgridem uma função social. Não só o caso concreto responderá a questão, como outros fatores como o momento histórico e o posição geográfica do contrato, por exemplo.4
Isso força-nos a dizer que agora, mais que nunca, os contratos devem ser discutidos e, se necessário, revistos entre aqueles que os celebraram, que devem ter cada vez mais bom senso ou, se preferir, boa-fé objetiva, em observância também do momento pandêmico experimentado.
Valho-me das palavras do professor Flávio Tartuce, que há muito já enfrentara esse tema:
Chegou o momento de as partes contratuais no Brasil deixarem de se tratar como adversários e passarem a ser comportar como parceiros de verdade. Ao invés do confronto, é preciso agir com solidariedade. De nada adiantará uma disputa judicial por décadas, com contratos desfeitos e relações jurídicas extintas de forma definitiva. Bom senso, boa-fé e solidariedade. Essas ferramentas serão essenciais, no presente e no futuro, muitas vezes mais do que os remédios ou instrumentos jurídicos antes citados, sejam aqueles que geram a extinção ou a conservação dos negócios.5
Sou otimista em acreditar que a boa-fé fará parte de maneira mais frequente da rotina dos brasileiros. Esse momento exige de todos os contraentes renúncias e sacrifícios. Mas, sobretudo, o bom senso e diálogo deverão prevalecer para que os contratos tenham, ao cabo, sua função social cumprida.
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1 Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 19 de abr. de 2020.
2 SILVA, Clóvis do Couto e, A obrigação como processo – reimpressão – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
3 O art. 113 do Código Civil recebeu inspiração do Bürgerliches Gesetzbuch alemão:
§157: “Auslegung von Verträgen. Verträge sind so auszulegen, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern”
§ 242: “Leistung nach Treu und Glauben. Der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern”
4 VENOSA, Sílvio de Salvo. A Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (MP nº 881) e o direito privado. Direito UNIFACS – Debate Virtual. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 19 de abr. de 2020.
5 TARTUCE, Flávio. O CORONAVÍRUS E OS CONTRATOS. EXTINÇÃO, REVISÃO E CONSERVAÇÃO. BOA-FÉ, BOM SENSO E SOLIDARIEDADE. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 18 de abr. de 2020.
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*Rafael Damásio Brasil Garcia é advogado; mestrando em Direito Constitucional Econômico pela UNIALFA; especialista em Direito Civil e Processo Civil e em Direito do Consumidor; graduado em Direito pela PUC-GO; presidente do Instituto de Estudos Avançados em Direito – IEAD; e Diretor da Escola Superior de Advocacia - ESA/OAB GO. Parceiro da CAMES,