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Covid-19 e a possibilidade de prisão em flagrante e persecução penal em face dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal do Brasil

Com bem menos destaque público, vicejam as inúmeras — e polêmicas — declarações de representantes do Poder Público sobre o emprego de força policial e possível persecução criminal nos casos de desrespeito à quarentena.

4/5/2020

Introdução

Com a rápida disseminação do vírus Sars-Cov-2, responsável pela atual pandemia da doença covid-19, muitas são as instabilidades geradas pelas medidas públicas adotadas pelo Poder Público nesse ínterim. As principais delas, cujos impactos têm sido maiores em toda a mídia, são as medidas trabalhistas e tributárias, pois que afetam diretamente a economia, quer seja abarcando os empresários, quer seja abarcando os trabalhadores.

No entanto, com bem menos destaque público, vicejam as inúmeras — e polêmicas — declarações de representantes do Poder Público sobre o emprego de força policial e possível persecução criminal nos casos de desrespeito à quarentena. Ademais, marcante nas redes sociais uma recente onda de exposição daqueles que não têm seguido à risca a orientação do isolamento. Ao verem suas imagens expostas nos perfis e questionarem sobre a divulgação destas sem a devida autorização, tem-se costumeiramente aventado a possibilidade de enquadrar tal comportamento à égide da conduta descrita pelo artigo 268 do Código Penal, qual seja:

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Com efeito, o escopo desse trabalho é de realizar uma análise um pouco menos perfunctória acerca do tema, analisando pelo prisma da Constituição Federal, Código Penal, Código Civil e Decretos dos Estados e municípios, a possibilidade da prisão em flagrante ou de instauração de inquérito nos casos assim pretensamente enquadrados, bem como sobre a validade da exposição da imagem de terceiros que estão descumprindo o isolamento social sugerido pelo Poder Público.

1. Dos Direitos e Garantias fundamentais da Constituição Federal

Ao cogitarmos o cenário explicitado pelo tópico introdutório, há que analisarmos alguns dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, base do nosso Estado Democrático de Direito. Ora, conforme acima descrito, caso houvesse uma decretação pelo poder público de quarentena, onde nenhum cidadão pudesse, sob nenhuma circunstância, sair de sua casa, claramente haveria violação aos incisos II, X, XV e XXII, artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil. Passemos então a análise dos incisos acima citados:

1.1 II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei

Trata-se aqui do famígero princípio da legalidade, uma verdadeira garantia constitucional, onde procura-se proteger os indivíduos de atos arbitrários cometidos pelo Estado e até de outros particulares, sendo-lhes facultados de realizarem o que quiserem, desde que não conflitem com a disposição legal1. Desse modo, ante a ausência de lei que determine a estadia absoluta da população dentro de casa, não há que se falar em desobediência à ordem legal. Isso porque, os Estados e municípios não possuem competência legislativa para editar normas acerca do direito de ir e vir dos cidadãos. En passant, sequer o legislativo federal teria tal competência, vez que violaria direito e garantia fundamental, o qual apenas pode ser tolhido em uma única situação, que será explicitado em tópico próprio.

Em que pese a edição da lei 13.979/20, o qual prevê medidas a fim de impedir o contágio e propagação do novo Coronavírus, esta não abrange toda a população, mas somente àqueles que demonstrarem que possuem os sintomas da doença ou que possam estar contaminados2. A estes, a segregação e isolamento compulsório, a fim de evitar a propagação do vírus, urgem como medidas cabíveis. Aos demais que não se enquadram nas situações previstas na lei, a determinação do poder público dos estados e municípios caracterizaria em grave violação ao princípio esculpido no inciso II do artigo 5º da Carta Magna.

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1 ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático, p. 58. In: Revista de Direito Administrativo, n. 217, São Paulo: Renovar, 1999, pp. 55/66.

2 Não se trata aqui de advogar um posicionamento político ou ideológico acerca do debate sobre a disputas narrativas entre os defensores das assim chamadas quarentenas “verticais” e “horizontais”, mas tão somente de esclarecer objetivamente o status questionis jurídico à luz de nossos dispositivos constitucionais.

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*Guilherme de Camargo Medelo é advogado graduado pela Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI), especializado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito (IBIJUS), pós-graduando em Direito Tributário e Constitucional pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI).

*Bruno Lincoln Ramalho Paes é advogado, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (FADUSP), mestre em Economia pela Universidade Francisco Marroquín (UFM), especialista em Filosofia do Direito pela PUC-MG, Bacharel em Direito na Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI).

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