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Covid-19 e a (in)justificada recusa à revisão contratual

O ponto de partida para investigação da necessidade, ou não, de revisão deve sempre ser o contrato. Isto é, deve se evitar o abstracionismo de considerar que, apenas pelo fato de a pandemia ser um evento, a rigor, imprevisível, automaticamente todo e qualquer contrato se tornou passível de revisão contratual.

29/4/2020

A pandemia do vírus covid-19 reavivou o debate generalizado sobre as teorias de revisão de contratos. E não é por menos. Suas consequências, ou das medidas sócio sanitárias implementadas pelas autoridades para contê-la, afetam diferentes setores da economia local e global. Sendo o contrato instrumento geral de formalização de transações e transferência de recursos, a subsistência dos negócios nele encerrados atrai os holofotes jurídicos num cenário de crise pandêmica.

O ponto de partida para investigação da necessidade, ou não, de revisão deve sempre ser o contrato. Isto é, deve se evitar o abstracionismo de considerar que, apenas pelo fato de a pandemia ser um evento, a rigor, imprevisível, automaticamente todo e qualquer contrato se tornou passível de revisão contratual1.

A revisão contratual no direito civil tem como principais fundamentos os artigos 317 e 478. Embora ambos sejam arestas de um mesmo vértice (a cláusula rebus sic standibus), representam, segundo a doutrina, teorias revisionais distintas2 e, por consequência, cada dispositivo tem requisitos e efeitos diversos.

O pedido fundado no artigo 3173 objetivaria reajustar o valor da prestação que tivesse se tornado manifestamente desproporcional por ocasião de seu cumprimento em decorrência de motivo imprevisível. Como requisitos: (I) a prova da desproporção manifesta e (II) a relação causal entre esta e o motivo alegado imprevisível4.

Por sua vez, a argumentação com base do artigo 4785 se destinaria a resolver o contrato diante da extrema dificuldade de cumpri-lo sem grandes prejuízos. Como requisitos, (I) a prova do agravamento do sacrifício econômico a ser suportado pelo devedor6; (II) a manifesta vantagem para a outra parte7; (III) a relação causal desses dois requisitos com o fato extraordinário e imprevisível.

Apesar das diferenças teóricas e práticas, o profícuo estudo empírico publicado por Rafael Mansur de Oliveira8 demonstra que os tribunais empregam os artigos 317 e 478 como um amálgama. Retrato da compreensão geral de que o Código Civil permite a revisão contratual por fato superveniente diante de uma imprevisibilidade somada a uma onerosidade excessiva9.

O escopo resolutivo da onerosidade excessiva esculpida no artigo 478 é precedido pela revisão contratual, se possível. Apenas não sendo viável preservar o contrato decreta-se a resolução. Isto porque, dá-se prevalência ao princípio da conservação dos negócios jurídicos. É o que se infere do enunciado 176, da Jornada de Direito Civil da CJF10, por exemplo.

O princípio da conservação dos contratos11, portanto, denota a opção de assegurar, tanto quanto possível, o alcance da função social e econômica do negócio, ainda que em termos diferentes dos originalmente avençados, desde que, obviamente, se não desnature a finalidade contratual pretendida12.

Nesse conceito de preservação, a antiga concepção do artigo 317 - limitada, quando da elaboração do projeto do Código Civil, a corrigir prestações diante do fenômeno inflacionário, - foi superada pela interpretação ampliativa conduzida pela doutrina e jurisprudência. Reconheceu-se no dispositivo a autorização para revisão judicial dos contratos acometidos por onerosidade excessiva (desproporção manifesta da prestação quando da execução)13.

A atualização do conteúdo normativo à nova realidade social serviu para suprir omissão do próprio Código Civil que, ao regular a onerosidade excessiva no artigo 478, relegava ao contratante prejudicado apenas a possibilidade de resolver o contrato14, em que pese os tribunais há muito já o permitissem postular a revisão judicial15.

Diante do desequilíbrio contratual por fato superveniente e imprevisível, a postulação, pelo contratante prejudicado, de revisão, com alteração do valor da prestação, ou analogicamente de outras circunstâncias envolvidas no pagamento, portanto, se consolidou como solução permitida pelo ordenamento.

Todavia, sem embargo da reconhecida possibilidade de o contratante prejudicado propor ação visado o reequilíbrio contratual, e da prevalência da preservação dos contratos, não se pode desprezar a autonomia da vontade do contratante não prejudicado que, ao ter concebido o ajuste de interesses sob determinadas premissas e avaliações, agora se vê na iminência de lhe ser imputado algo diferente daquilo que havia se disposto.

Nesse sentido, os princípios da identidade e indivisibilidade da prestação contidos nos artigo 313 e 31416 encerram disposições que conferem ao credor o direito de recusar “receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa” e “nem a receber por partes, se assim não se ajustou”.

Se quando do cumprimento da prestação o devedor percebeu que contratou mal e terá alguma desvantagem originalmente desconsiderada, não pode querer impingir ao credor aceitar prestação diversa para compensar a própria falha na prévia avaliação do negócio, por exemplo, sob pena de frontal violação à autonomia da vontade do outro contratante.

Ainda assim, não se pode perder de mira que, se por um lado a pretensão revisional não deve servir ao contratante supostamente prejudicado que enxergou na revisão do contrato uma forma de tentar otimizar vantagens/reduzir custo, de outro, a recusa injustificada do contratante não prejudicado, em situações de imprevisibilidade, pode se afigurar igualmente abusiva, igualmente oportunística.

E se não há direito absoluto, os artigos 313 e 314, portanto, comportam exceções, v.g, nos casos em que seja impossível efetuar a prestação conforme pactuada originalmente17, ou, naqueles em que, por motivos supervenientes e imprevisíveis, a prestação se afigure manifestamente desproporcional ou excessivamente onerosa18.

Se há preferência sistêmica por preservar contratos quando possível19, ao invés de permiti-los a quebra indistintamente, pode se dizer que o contratante não prejudicado tem o ônus de em demonstrar porque a opção pela resolução é mais adequada nas hipóteses em que o outro contratante postula o reequilíbrio contratual.

Não se trata de impor ao credor os termos pretendidos pelo devedor, mas sim de reconhecer a necessidade de que a recusa à revisão, ou mesmo à recusa a formular proposta mais equilibrada do que aquela sugerida pelo autor da ação, seja precedida de fundamentação coerente, plausível, acompanhada de evidencias, e, portanto, que não esteja limitada à construção egoística de “recuso porque tenho o direito de recusar”.

Isto porque, não se admite o exercício de posição jurídica despropositada20, assim considerada aquela que exceda excede os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (art. 187, CC21). O voluntarismo oitocentista foi há muito superado, dando lugar ao controle dos excessos da liberdade individual por meio da vedação ao abuso de direito, função restritiva da boa-fé objetiva22.

Mutatis mutandis, a situação se equipara ao credor que alega, diante da mora do devedor, que a prestação perdeu a utilidade e exige a indenização por perdas e danos.

Nessa hipótese, a doutrina se posiciona no sentido de que a inutilidade da prestação que justifica a recusa por parte do credor deverá ser aferida objetivamente, consoante o princípio da boa-fé e a manutenção do sinalagma, e não de acordo com o mero interesse subjetivo do credor23.

A utilidade está diretamente ligada à causa do contrato. Se o comportamento do devedor, e, ao que interessa a estas linhas, o pedido revisional do “contratante prejudicado”, é capaz de alcançar os efeitos essenciais pretendidos pelas partes, isto é, se ainda é possível concretizar o “para quê” 24 o contrato foi originado, não haveria justo motivo para enjeitá-lo, eis que a causa concreta independe e não se confunde com a satisfação íntima do credor25.

Logo, também na hipótese de ação de revisão contratual proposta pelo contratante prejudicado, o outro contratante não pode, de fato, ser obrigado a aceitar a revisão, mas deve fundamentar o exercício do direito de recusa de modo a demonstrar que nem mesmo com a pretendida revisão será possível assegurar o alcance dos interesses efetivamente perseguidos com o regramento contratual (causa em concreto), ou que a modificação da avença lhe imporá prejuízos reais.

Diante do crítico cenário social e humanitário, de uma iminente recessão econômica global e do provável aumento do número de processos judiciais voltados a discutir os impactos da pandemia (ou de suas consequências) no equilíbrio econômico-financeiro dos mais variados contratos, não há espaço para oportunismo. Agora, mais do que nunca, a todos é imperativo reprimir comportamentos egoísticos e contrários à boa-fé.

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1 Há, nos dois casos, um erro metodológico grave, que se tornou comum no meio jurídico brasileiro: classificar os acontecimentos em abstrato como "inevitáveis", "imprevisíveis", "extraordinários" para, a partir daí, extrair seus efeitos para os contratos em geral. Nosso sistema jurídico não admite esse tipo de abstração. O ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade. É preciso, antes de se qualificar acontecimentos em teoria, compreender o que aconteceu em cada contrato” (SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional). Disponível clicando aqui. Consulta em 12.04.20, às 17h40min

2 “(...) o art. 478 adere à teoria da imprevisão – originária do direito francês -, pois, além da imprevisibilidade do evento, requer a extraordinariedade da álea, com a demonstração dos efeitos ruinosos do fato superveniente na situação subjetiva do credor. Em contrapartida, o art. 317 aproxima-se da teoria da excessiva onerosidade do direito italiano, eis que substitui a ideia do fato extraordinário pela desproporção manifesta entre as prestações. Trata-se de aferição objetiva do superveniente desequilíbrio, estranho às partes, que não poderia ser legitimamente esperado e resultou em excessiva onerosidade e grande sacrifício a um dos contratantes, sem que se precise prescrutar a situação subjetiva dos envolvidos. (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. Salvador: Ed. Juspodivm. 2017, p; 449).

3 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

4 Enunciado 17 da I Jornada de Direito Civil do CJF: “A interpretação da expressão ‘motivos imprevisíveis’ constante do art. 317 do novo Código Civil deve abarcar tanto causas de desproporção não-previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultados imprevisíveis”.

5 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

6 A rigor, a onerosidade excessiva se examina pela ótica objetiva (desequilíbrio entre as prestações), não subjetiva (características pessoais do contratante ou eventos que afetassem exclusivamente sua esfera individual). É o que prevalece na doutrina. MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil, cit., p. 305; GOMES, Contratos, cit., pp. 214- 215; WELTON, Nelly Maria Potter. Revisão e Resolução dos Contratos no Código Civil Conforme Perspectiva Civil-Constitucional, cit., p. 127; RENNER, Rafael. Novo Direito Contratual, cit., p. 291.

7 Enunciado 365, IV Jornada de Direito Civil CJF: A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração das circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena.

8 OLIVEIRA, Rafael Mansur de. Um panorama jurisprudencial da onerosidade excessiva. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 7, n. 17, p. 11-44, jan./abr. 2018.

9 TARTUCE, Flavio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. Vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 230.

10 Enunciado 176, III Jornada de Direito Civil CJF: Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual.

11 O princípio informa diferentes dispositivos do Código Civil, como o parágrafo único do art. 157, artigo 170, artigo 480, o artigo 620, o artigo 770, etc.

12 MARTINS-COSTA, Judith. A Revisão dos Contratos no Código Civil Brasileiro, cit., p. 167; FRANTZ, Laura Coradini. Revisão dos Contratos, cit., p. 144.

13 SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. Vol. 2. Organização Gustavo Tepedino, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 224.

14 Ob. cit. p. 225.

15 No artigo mencionado na nota nº 9, Rafael Oliveira Mansur cita, dentre outros, acórdão do STF de 1964, no qual se deu provimento a recurso extraordinário para julgar procedente ação ordinária de reajustamento de preço de obra, fundamentando a decisão na teoria da imprevisão (STF, 1ª T., RE 55.516/GB, Rel. Min. Cândido Motta, j. 30.4.1964).

16 Art. 313. O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa.

Art. 314. Ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou.

17 SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. Vol. 2. Organização Gustavo Tepedino, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 217.

18 Da mesma maneira, o princípio da identidade ou correspondência do pagamento será relativizado nas hipóteses de onerosidade excessiva, em que o magistrado determinará a revisão contratual em prol de uma das partes, aproximando a relação obrigacional do valor da igualdade substancial. (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. Salvador: Ed. Juspodivm. 2017, p; 443)

19 “(...) [F]ica a conclusão de que o princípio da conservação contratual é um dos temas mais importantes do atual Direito Contratual, estando subentendido na função social dos contratos. (TARTUCE, Flavio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. Vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 242.)

20 “De todo modo, seja qual for a terminologia adotada, a previsão legislativa confere controle ao exercício de qualquer situação jurídica subjetiva em concreto (não apenas direitos subjetivos ou potestativos, mas também poderes, faculdades e assim por diante)”. SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. Vol. 2. Organização Gustavo Tepedino, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 44.

21 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

22 “No que tange à segunda função indicada, a boa-fé atua como limite negativo ao exercício de direitos, de modo a impedir o exercício irregular ou abusivo de direitos. (...) [A]dmitindo-se critério objetivo para sua aferição, mediante o emprego de três conceitos substantivos expressamente eleitos pelo legislador para o controle das situações jurídicas subjetivas: o fim econômico ou social, a boa-fé e os bons costumes.” SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. Vol. 2. Organização Gustavo Tepedino, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 39 e 45.

23 Enunciado 162 da III Jornada de Direito Civil da CJF: A inutilidade da prestação que autoriza a recusa da prestação por parte do credor deverá ser aferida objetivamente, consoante o princípio da boa-fé e a manutenção do sinalagma, e não de acordo com o mero interesse subjetivo do credor. (Coordenador Geral: Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Coordenadores da Comissão de Trabalho: Antônio Junqueira de Azevedo e José Osório de Azevedo Jr.)

24 Para sabermos qual o fim do contrato, devemos responder à seguinte pergunta: para que o contrato serve? A finalidade não se identifica com o motivo, que é o porquê da contratação (causa impulsiva), não manifestado, individual, de foro íntimo do contratante. Os motivos traduzem aqueles interesses que não são apreciáveis, o que leva à tradicional afirmação da sua irrelevância. Quando queremos saber qual o motivo do contrato indagamos: por que o contrato foi celebrado? (...) O fato é que tanto a finalidade individual quanto os motivos da contratação são irrelevantes. Entretanto, a finalidade comum (a qual preferimos chamar de finalidade que integra o conteúdo do contrato, pois nem sempre é manifestada de forma expressa) e os motivos determinantes são interesses igualmente apreciáveis” (COGO, Rodrigo Barreto. A frustração do fim do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 309-310).

25 SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. Vol. 2. Organização Gustavo Tepedino, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 319.

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*Cristiano Falcão Martins é advogado pós graduando em Direito Processual Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Litigation pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

 
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