Em “A Montanha Mágica”, Thomas Mann descreve o retrato de uma sociedade que se agarra a uma temporalidade que parece perpetuar o “longo século XIX” (para empregar a consagrada expressão de Hobsbawn), mas que, àquela altura, caminha inexoravelmente para o seu ocaso. Assim como na obra-prima de Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido), também no célebre romance de Mann o tempo é o tema recorrente. Trata-se do fio-condutor da obra, marcando não apenas os acontecimentos e as reflexões filosóficas ali desenvolvidas, mas o próprio ritmo da narrativa.
Na superfície dos acontecimentos, a obra versa sobre a visita de Hans Castorp a um sanatório em Davos (Berghof), ao qual acorrem os acometidos por uma doença respiratória, esperando que os benefícios do ar rarefeito da altitude possam servir-lhes de refrigério, ou, mesmo, de cura. Por isso, deixam a “planície” e rumam para as alturas do Berghof.
Para os recém-saídos da vida na “planície”, e que chegam à altitude da “Montanha Mágica”, o tempo parece não passar. As horas e os dias custam a caminhar. Para os que lá permanecem por muito meses ou anos, porém, a rotina estática faz com que a percepção sobre o tempo se modifique completamente: os dias passam como se fossem horas; as semanas, como se fossem dias; os anos, como se fossem meses.
Daí porque o leitor, quando do retorno de Castorp à vida na “planície”, após deixar a “Montanha Mágica”, conserva a percepção de um tempo que mantém sua fluência igualmente vertiginosa – mas, agora, imersa no turbilhão dos terríveis acontecimentos do novo mundo que se inaugura.
De alguma forma, o isolamento social imposto pela covid-19 acaba por nos “internar” em uma “Montanha Mágica”, na qual, nos primeiros momentos, o tempo parecia não passar, mas que, no prosseguir da “quarentena”, parece adquirir urgência vertiginosa.
Se a obra de Mann, por certo, pode nos convidar a pensar sobre como será a vida no retorno à “planície”, não menos certo é que nos faz refletir sobre o sentido do tempo nas relações jurídicas. Vêm à tona, para o civilista, os problemas que a “internação” em nosso hoje quase universal Berghof ensejam quanto ao exercício de direitos e pretensões, com repercussões óbvias em matéria de prescrição e decadência.
Não por acaso, logo ao início da subida à “Montanha Mágica”, a temporalidade trazida da “planície” fez com que, em prazo muito breve, fosse elaborado um projeto de lei do “Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado”. O PL, com pontuais modificações, foi rapidamente aprovado pelo Senado da República. Remetido à Câmara dos Deputados, porém, permanece estático, sem trâmite até a data em que este artigo foi redigido.
O tempo é uma preocupação central do projeto de lei, que em seu artigo 3º, prevê a suspensão e o impedimento dos prazos prescricionais e decadenciais, conforme o caso, “a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020”.
Como se observa, a norma projetada não pretende ter efeito retroativo – e, como se demonstrará, ao menos quanto à prescrição e a decadência, nem poderia tê-lo. Esse fato, associado à demora na aprovação do projeto de lei, faz temer que seu escopo acabe por se inviabilizar.
Não se nega que as normas possam ter efeito dotados de dada retroatividade, desde que ela se opere nos limites do inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição, ou seja, não prejudique a coisa julgada, o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.
A consumação da prescrição, nos termos do artigo 189 do Código Civil, extingue a pretensão (nada obstante a acertada crítica doutrinária, de base ponteana, que afirma não se tratar de extinção, mas encobrimento da eficácia da pretensão1). A consumação da decadência, a seu turno, extingue o direito (em regra, potestativo) a ela submetido. A extinção da pretensão (ou seu encobrimento eficacial) ou do direito potestativo gera, para o outro polo da relação jurídica, quando menos, uma exceção de direito material (que, no sistema processual vigente, em que até mesmo a prescrição pode ser conhecida de ofício, se aproxima de uma objeção).
Parece sustentável reconhecer que a vedação constitucional à retroatividade da lei – compreendida como corolário do princípio da segurança jurídica - pertinente ao direito adquirido tem efeitos também sobre as exceções de direito material já consubstanciadas sob a égide da lei anterior. Afinal, consumada a prescrição, será, quando menos, ineficaz o exercício da pretensão em face do devedor, do qual, apesar de não perder essa qualidade, não mais pode ser exigido o cumprimento da obrigação. Não por acaso, Pontes de Miranda emprega a expressão “direito de exceção de prescrição”.2
Quanto à decadência, cessa a possibilidade de se impor sujeição de um polo da relação jurídica ao exercício do direito potestativo pelo outro polo.
O PL acerta, pois, ao não cogitar de ressurgimento da exigibilidade de pretensões – e, com isso, da responsabilidade patrimonial do devedor -, nem, tampouco, da ressurreição de direito potestativo extinto.
A mesma conclusão se obtém, sob o viés constitucional, quando se analisa a natureza jurídica da prescrição e da decadência. Conforme a lição clássica de Pontes de Miranda, as características do suporte fático de ambas permitem qualificá-las como atos-fatos jurídicos.3
Ou seja: não são simples fatos da natureza, mas, sim, condutas humanas em que a manifestação de vontade não integra, necessariamente, o suporte fático, e que, por isso, sofrem a incidência das normas vigentes, ingressando no mundo dos fatos jurídicos, mesmo sem o elemento volitivo.
A incidência normativa sobre a conduta humana (a inércia de quem se sujeita à prescrição de sua pretensão ou à decadência de seu direito) se opera, de modo inexorável, no instante em que o prazo legal se consuma.
É nesse momento que os atos-fatos da prescrição e da decadência se tornam perfeitos.
Na eventual questão sobre se na expressão constitucional “ato jurídico perfeito” se enquadraria o ato-fato, a resposta, como se observa, é positiva.
Restaria vedada, assim, pela Constituição, a retroatividade de norma que suspendesse ou impedisse o curso dos prazos prescricionais e decadenciais, os quais, dessa forma, somente poderiam deixar de fluir a partir da vigência do Regime Jurídico Emergencial – exatamente, portanto, nos termos do artigo 3º da norma projetada.
Diante dessa constatação, a demora na aprovação do projeto de lei se mostra especialmente grave, pois pode inviabilizar, por completo, o escopo da norma projetada, fazendo, no limite, com que em tempo algum a suspensão ou o impedimento possam se operar, a despeito da pandemia.
Em suma: a razoável e oportuna suspensão de prazos prevista no PL tem sua eficácia se exaurindo a cada dia.
Nada obstante refinada doutrina4 sustente que as causas suspensivas ou impeditivas da prescrição possam ser ampliadas com base em uma análise de identidade funcional com as hipóteses positivadas em lei, parece não ser possível afirmar o mesmo quanto à decadência, que, salvo disposição legal em contrário, não se sujeita à suspensão dos respectivos prazos. Mesmo quanto à prescrição, porém, parece difícil sustentar a suspensão ou o impedimento dos prazos sem que haja previsão em lei, uma vez que o exercício de pretensões ou de direitos potestativos, mediante acesso ao Judiciário não foi inviabilizado (ainda que tenha sido dificultado) pela pandemia.
Seja qual for a narrativa do curso de nossas vidas quando deixarmos a “Montanha Mágica”, terá ela o mesmo ritmo vertiginoso experimentado pelos que abandonam o Berghof. Ao voltarmos à “planície”, com ou sem o Regime Jurídico Emergencial, pretensões e direitos podem não ter subsistido ao curso inexorável do tempo.
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1 LEONARDO, Rodrigo Xavier. A prescrição no Código Civil Brasileiro (ou o jogo dos sete erros). Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, v. 51, p. 101-120, 2010.
2 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, Tomo VI, § 665, 3.
3 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, Tomo VI, § 665, 3.
4 Nesse sentido, por todos, TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do Direito Civil. Vol 1. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
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