As consequências jurídicas da covid-19 são significativas, e poderão ser ainda mais profundas. O enorme impacto da pandemia sobre serviços públicos demanda uma atuação firme do Poder Público para evitar um agravamento da situação, exigindo respostas do Direito Público. Tanto as diversas inovações legislativas, quanto os institutos e normas anteriores à pandemia, deverão ser interpretados à luz das circunstâncias fáticas excepcionais em vigor, como dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB.
Essa situação excepcional impõe um desafio a mais a gestores públicos, órgãos de controle e fornecedores da Administração Pública. Mais do que nunca, as contratações públicas devem satisfazer as necessidades do Poder Público – hoje urgentes e extraordinárias – e, ao mesmo tempo, estar em linha com os princípios do art. 37 da Constituição. Em circunstâncias normais, esse casamento já não é simples, gerando debates jurídicos complexos. A dificuldade é ainda maior em um cenário inédito como o atual.
Os órgãos de controle parecem estar atentos à natureza excepcional do momento e às suas consequências sobre a fiscalização de atos e contratos administrativos. Alguns deles já admitem publicamente que a fiscalização não pode ser um obstáculo ao atendimento das necessidades públicas, muitas das quais, hoje, têm uma extrema urgência como nota essencial.1 Para tanto, porém, é imprescindível que gestores públicos e fornecedores sintam-se em um ambiente de segurança jurídica mínima, que lhes permita tomar decisões lícitas, informadas e ágeis, sem receio de que sejam responsabilizados quando de uma análise retrospectiva. Nessa esteira, por exemplo, o Tribunal de Contas da União concebeu o Plano Especial de Acompanhamento das Ações de Combate à covid-19, cujas ações buscam "propiciar segurança jurídica ao gestor", e, acredita aquela Corte de Contas, "possibilitarão uma atuação tempestiva de fiscalização e visam contribuir para a efetividade, eficiência e conformidade das aquisições e contratações emergenciais".2
Por maiores que sejam os esforços dos órgãos de controle nesse sentido, é compreensível que eles não sejam capazes de afastar totalmente o medo de futura responsabilização. Primeiro, porque a preocupação com a sobrevivência se faz presente em empresas de praticamente todos os setores da economia neste momento – e essa sobrevivência pode ser comprometida pela imposição de sanções, ou mesmo por sua condenação em débito, em certos casos. Além disso, basta lembrar que, embora a própria LINDB tenha sido alterada com o intuito de reforçar a segurança jurídica no âmbito da Administração Pública, ainda se vê certa resistência dos órgãos de controle em efetivamente aplicar as suas disposições.3
Nesse cenário de incertezas, ter um programa de compliance é ainda mais importante para fornecedores da Administração Pública. Mais do que isso, é fundamental que se adote uma postura ativa em relação às regras internas da empresa. Afinal, boas regras de compliance têm como premissa um mapeamento de riscos abrangente, e o presente momento traz riscos que dificilmente poderiam ter sido antevistos – ao menos em relação à magnitude que podem ter.
Alterações na estrutura de governança corporativa podem se mostrar adequadas. Uma maior descentralização muitas vezes será necessária para tomar decisões de forma mais ágil.4 A descentralização, contudo, exige maior transparência e um melhor fluxo de comunicação entre as diversas áreas da organização, especialmente na sua interação com o jurídico interno e os profissionais de compliance.
Uma revisão das regras atinentes ao relacionamento da empresa com o Poder Público possivelmente também é recomendada, sendo, ainda, imprescindível o seu reforço com os colaboradores da empresa, e o monitoramento do seu cumprimento. Ademais, as formalidades necessárias para a celebração de contratos com a Administração Pública devem ser vistas com atenção redobrada, avaliando-se cuidadosamente qualquer situação em que se pretenda valer de regras excepcionais (e.g. dispensa de licitação, extrapolação de referenciais de preços etc.).
Não é demais lembrar, ainda, que todo o processo interno referente à contratação deve ser conduzido conforme a legislação aplicável e as regras de compliance do fornecedor, e a respectiva documentação mantida. Todas as comunicações com os gestores públicos devem também ser formalizadas e feitas por canais oficiais.
Decisões mais bem informadas e menos arriscadas advirão de uma reflexão sobre as políticas internas das empresas que contratam com a Administração Pública. Se, no futuro, algum indício de irregularidade for apontado durante a fiscalização dos contratos administrativos deste período, essa reflexão e as ações dela decorrentes contribuirão para a defesa da conduta do fornecedor. O cuidado com a elaboração e implementação de um programa de integridade efetivo pode, ainda, ter impactos positivos na aplicação de eventuais sanções ao fornecedor.5
Ou seja, a quarentena não é sinônimo de descanso para o compliance. Pelo contrário: o momento atual impõe que sejam reanalisadas, reforçadas e eventualmente reformuladas as regras e princípios que visam a assegurar a integridade das empresas, em especial daquelas que se relacionam com a Administração Pública.
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1 Coronavírus: TCU e CGU flexibilizam controle. Acesso em 26.4.2020.
2 Plano de Acompanhamento das Ações de Combate à COVID-19 estimula o controle preventivo. Acesso em 26.4.2020.
3 TCU resiste em aplicar inovações feitas pela LINDB. Acesso em 26.4.2020.
4 Conforme recomendações do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Acesso em 26.4.2020.
5 É o que prevê expressamente a Lei Anticorrupção para a responsabilização pelas infrações por ela estabelecidas (art. 7º, VIII, lei 12.846/2013). Além disso, a manutenção de um programa de integridade efetivo e a observância de suas regras podem contribuir para demonstrar a inexistência do elemento subjetivo indispensável à responsabilização pessoal pelos órgãos de controle.
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*Daniele de Oliveira Nunes é advogada no Leal Cotrim Jansen Advogados. Master of Laws - LL.M. pela University of Michigan, mestra em Direito e Políticas Públicas pela UNIRIO, bacharel em Direito pela UFRJ.