Migalhas de Peso

A não aplicação da cláusula de “take or pay” dos contratos de demanda de energia em razão dos atos governamentais advindos da pandemia

Não é possível se concluir pela existência de nexo de causalidade entre a pandemia do novo coronavírus e a possibilidade de descumprimento dos negócios jurídicos.

27/4/2020

 

Não é possível se concluir pela existência de nexo de causalidade entre a pandemia do novo coronavírus (covid-19) e a possibilidade de descumprimento dos negócios jurídicos, em particular, daqueles que tratam de demanda de energia e que possuem obrigações continuadas no tempo.

É claro que não se pode negar os estragos causados pela referida pandemia, entretanto, o que está criando obstáculos ao cumprimento dos contratos firmados previamente entre as partes (geradores, fornecedores e consumidores) são as medidas adotadas pelos governos (federal, estadual e municipal) a fim de conter a disseminação do vírus que tem matado milhares de pessoas.

Resta público e notório que, no Brasil, por atos dos governos (os quais agiram - diga-se de passagem - com total utilização de suas competências constitucionais), diversos setores empresariais (cita-se, como exemplo, as empresas do ramo da educação e do comércio atacadista e varejista, inclusive “shopping centers”, assim como aquelas com parques industriais não automatizados) tiveram as suas atividades suspensas de forma temporária, o que fez com que, em muitos casos, houvesse o fechamento de seus respectivos estabelecimentos.

Assim, com tal fechamento, muitas empresas, consequentemente, tiveram seu faturamento paralisado de forma abrupta e inesperada. Em outras palavras, com a pandemia, alguns ramos da atividade empresarial brasileira, por fato do príncipe, subitamente tiveram que paralisar suas atividades e viram seus faturamentos zerar da noite pro dia.

Digno de menção que o STJ já se posicionou no sentido de que o "fato do príncipe" (muito embora tenha nascido para relações de direito público) é também aplicável aos contratos entre particulares, pois implica em imposições feitas por autoridade pública, as quais fatalmente podem refletir em resultados desfavoráveis em negócios jurídicos particulares (REsp 1.280.218/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, Julgado em 21/06/2016, DJE 12/08/2016).

Ou seja, o nexo de causalidade para justificar o descumprimento dos negócios jurídicos não encontra respaldo na pandemia em si (força maior), mas sim nas medidas de intervenção estatal em suas diversas esferas.

Em razão disso, uma questão fica no ar: há hipóteses em que a força maior resulta da pandemia? A resposta é positiva, mas tal hipótese está relacionada à prestação de fazer. O exemplo clássico é o da empreitada que não pode ter seu exercício finalizado em razão da pandemia, posto que não é possível reunir os trabalhadores durante a quarentena. O mesmo se aplica às atividades artísticas e culturais. Em tais circunstâncias, portanto, o contrato se resolve e as partes voltam ao estado anterior ao contratado, sem qualquer aplicação do instituto das perdas e danos.

Por outro lado, os negócios jurídicos, que cuidam da demanda de energia e que possuem obrigações continuadas no tempo, estão sujeitos à possibilidade de seu descumprimento por fato do príncipe.

Essa discussão jurídica, aliás, não é nova, em especial na Europa, fruto das realidades vivenciadas em tal continente por conta das duas guerras mundiais. Para E. Merrick Dodd, em seu artigo intitulado de “Impossibility of Performance of Contracts Due to War-Time Regulations” (in Harvard Law Review, vol. 32, 1919, págs. 789-805), é possível haver o descumprimento dos negócios jurídicos quando há influência de legislação emergencial superveniente.

De acordo com Dodd, a intervenção estatal por ocasião da Primeira Guerra Mundial, teve diferentes efeitos nas relações jurídicas da Inglaterra. Salientou o autor que, naquelas relações em que o objeto do negócio passou a ter “interesse público” (serviço ou material essencial, como foi o caso exemplificado de fornecimento de carvão que passou a ser insumo necessário à industrialização de suprimentos bélicos), tal fato do príncipe tornou-se causa superveniente e apta a isentar o obrigado de qualquer responsabilidade pelo descumprimento do contrato de fornecimento de bens que dependiam do referido insumo para sua industrialização.

Pois bem, nos dias atuais, o Brasil é refém da pandemia advinda do novo coronavírus (covid-19), o que fez com que diversas medidas fossem tomadas pelos governos (Federal, Estadual e Municipal) a fim de conter a disseminação do vírus e, consequentemente, houvesse o fechamento de muitos estabelecimentos.

Isso, portanto, revela que há um equívoco no descumprimento dos contratos de demanda de energia com base na pandemia (força maior), posto que o motivo essencial para não utilização da energia elétrica (e a impossibilidade de se cobrar o mínimo contratado - cláusula de “take or pay”) são as ordens de fechamento dos estabelecimentos determinadas pelos governos brasileiros em suas diversas esferas.

Amplamente utilizada no fornecimento de energia elétrica sob demanda, a cláusula de “take or pay” tem como base a cobrança do volume contratado, ao revés do volume consumido. Ou seja, a cláusula de “take or pay” é um mecanismo contratual que assegura o pagamento de uma quantidade mínima de energia elétrica, independentemente do seu consumo.

Assim, nos contratos de compra e venda de demanda de energia, o fornecedor / gerador tem a obrigação de colocar à disposição do consumidor certo volume de energia elétrica, e o consumidor, por sua vez, tem a obrigação de retirar a totalidade volume contratado.

A não consubstanciação da referida obrigação pelo consumidor, ou seja, de retirar (consumir) a totalidade do volume contratado, resultará na obrigação acessória de pagar (cláusula de “take or pay”).

Como obrigação, a eficácia da cláusula de “take or pay” será sempre dependente da eficácia da obrigação principal. Mais! Levando as condições do mercado de energia elétrica, classifica-se a cláusula de “take or pay” no ordenamento jurídico brasileiro como cláusula penal. Tudo porque, de acordo com Maria Helena Diniz (1998, p. 599), entende-se por cláusula penal cominatória “aquela pela qual na celebração do contrato, os contratantes estipulam a aplicação de uma penalidade àquele que não cumprir a obrigação de praticar um ato ou absterse de alguma coisa”.

Esse também é o entendimento do TJ/SP que asseverou em acórdão que a cláusula de “take or pay” traduz-se com uma cláusula penal, a saber: “A previsão de consumo mínimo de gases, take-or-pay, não afronta a ordem econômica, mas pode configurar abuso, que, se real, reprime-se, porque não passa de cláusula penal”.

Por ser uma cláusula penal, faz-se necessário lembrar que o CC dispõe, em seu artigo 408, que “incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora”. Em outras palavras, o fato determinante para a aplicação da cláusula de “take or pay” no caso dos contratos de demanda de energia não é a falta de utilização do volume mínimo contratado, mas sim o descumprimento contratual culposo.

Em tempos de isolamento social e de fechamento dos estabelecimentos comerciais advindos de atos dos governos (Federal, Estadual e Municipal), a culpa não pode ser - e não é - atribuída à parte contratante pela não utilização do volume mínimo, o que nos permite concluir que o descumprimento contratual é decorrente de fato do príncipe, afastando-se, assim, qualquer obrigação de pagamento do volume mínimo ao fornecedor e/ou gerador.

Até porque a inimaginável realidade por nós vivida hoje faz com que nos apeguemos ainda mais aos princípios norteadores contidos no CC, no que tange aos contratos, quais sejam a boa fé contratual e a probidade dos contratantes, para que se garanta a continuidade das relações contratuais e obrigacionais, inclusive quanto à culpabilidade nos casos de aplicação de cláusulas penais.

_________ 

*Felipe Pagni Diniz é advogado sócio fundador da Pagni Advogados Associados e especialista no setor energético.

*Nathalie Pagni Diniz é advogada sócia fundadora da NPD - Consultoria Jurídica & Advocacia.

 

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Afinal, quando serão pagos os precatórios Federais em 2025?

19/12/2024

Atualização do Código Civil e as regras de correção monetária e juros para inadimplência

19/12/2024

5 perguntas e respostas sobre as férias coletivas

19/12/2024

A política de concessão de veículos a funcionários e a tributação previdenciária

19/12/2024

Julgamento do Tema repetitivo 1.101/STJ: Responsabilidade dos bancos na indicação do termo final dos juros remuneratórios

19/12/2024