Não é novidade que a pandemia de covid-19 que levou à decretação de isolamento social, traz graves consequências em relação à economia, consequências estas que não se sabe quando serão totalmente superadas. Há um nebuloso caminho a percorrer.
O agravamento da situação causa impacto direto nos negócios jurídicos como um todo, gerando um efeito cascata que acaba afetando toda a cadeia. Além do que, a situação econômica de algumas empresas já não era completamente salutar, vindo a pandemia para piorar ainda mais.
É fato que estamos vivenciando uma situação que aparentemente enquadraria todos os negócios jurídicos na teoria da imprevisão (artigo 317, do Código Civil) em caso fortuito/força maior (artigo 393, do Código Civil), e na onerosidade excessiva (artigo 478, do Código Civil). Mas não é todo o negócio jurídico que pode simplesmente ser inadimplido, rescindido ou modificado de forma unilateral com base em tais premissas.
Juridicamente o foco sempre será o cumprimento das obrigações de cada parte. Se uma parte cumpre integralmente suas obrigações contratuais não há aplicação de onerosidade excessiva, teoria da imprevisão ou de caso fortuito ou força maior; agora se está impossibilitada de cumprir por conta da pandemia, pode haver uma situação de desequilíbrio a ensejar a revisão do contrato, pelo tempo em que durar esta situação de desequilíbrio.
Tanto que a chamada Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/19) introduziu no Código Civil, mudanças na redação do caput, o parágrafo único do artigo 421 e o artigo 421-A, pelas quais se verifica a previsão de dois elementos básicos: a intervenção mínima no que foi contratado entre as partes e revisão contratual como excepcionalidade, presumindo-se equilibrados os contratos exceto pela presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento de tal previsão.
A premissa geral para os negócios jurídicos é, portanto, a de que não basta que se tenha a ocorrência do fato (no caso a pandemia) para que automaticamente haja um salvo conduto para que todos os negócios jurídicos sejam simplesmente descumpridos sem maiores consequências.
É preciso que deste fato decorra um manifesto desequilíbrio contratual entre, ou onerosidade excessiva às partes e, em assim se verificando, caberá ao juiz o reequilíbrio caso as partes não tenham sucesso em uma negociação amigável.
Recentemente o Senado Federal aprovou o projeto de lei 1.179, de 2020, de autoria do senador Antonio Anastasia, que dentre outras providências flexibiliza – de forma transitória é bom que se diga – algumas espécies de negócios jurídicos. O projeto está em análise na Câmara dos Deputados.
Mas nesse cenário ainda obscuro e diante do trâmite e do tempo do processo legislativo, tem-se visto um protagonismo inédito – sem se adentrar ao mérito de tal protagonismo – do Poder Judiciário.
Durante a pandemia e em nome dela, detecta-se um número cada vez maior de decisões judiciais intervindo em políticas públicas, em destinação de verbas públicas, em relações jurídicas entre particulares, em relações trabalhistas, em contratos e, enfim, em negócios jurídicos que são o objeto desse artigo.
Ao que tudo indica, o Poder Judiciário, a exemplo do que faz a Administração Pública, busca agora apagar incêndios, por meio de decisões em caráter liminar em nome da “função social do contrato” com aplicação da teoria da imprevisão, onerosidade excessiva e caso fortuito/força maior. Lá na frente saberemos se os incêndios foram apagados de forma a manter os alicerces ou se teremos uma situação de acúmulo tão grande que todas as estruturas dos negócios terminarão por ruir definitivamente.
Há, por exemplo, decisões postergando despejos residenciais e comerciais, acatando como válidas as negociações individuais entre empregadores e empregados ainda que contrárias a dispositivos de acordos ou convenções coletivas de trabalho, determinando a redução temporária de valores de contratos privados, e até a impossibilidade de reajuste ou de cancelamento de plano de saúde por inadimplência.
A tendência atual é conceder moratória por meio de liminares, sendo que nos Tribunais verifica-se a tendência de revogação apenas das decisões que representem intervenção nas políticas públicas de combate à pandemia e perda de arrecadação / imposição de custos indevidos ao erário público em detrimento a tais políticas.
Ou seja, a pandemia de covid-19 aliada aos princípios do direito à vida e à saúde e à dignidade da pessoa humana, tem sido utilizada como fundamento para as mais diversas determinações judiciais, que vão desde bloqueio de estradas e locais públicos até redução de valores contratuais e flexibilização de acordos coletivos de trabalho.
Como ainda se trata de algo inédito e incipiente, não há grande arcabouço de decisões de mérito ou consolidadas pelos Tribunais, em especial os superiores para que se possa dizer que já há uma tendência jurisprudencial. Mas já há indícios pelas decisões em caráter liminar que vêm sendo adotadas, no sentido de que se busca privilegiar o caráter social em primeiro lugar, para que se discuta o jurídico/econômico num outro momento, quando a situação se normalizar.
O problema é que não há sequer uma dimensão de quanto a situação atual irá perdurar. Se não temos nem este horizonte, não sabemos quando a economia irá se recuperar. Será que ultrapassada a pandemia aqueles que já vinham com pouco fôlego o terão para suportar as obrigações pretéritas e presentes?
Parece claro que estes mesmos atores teriam de voltar a bater às portas do Poder Judiciário para requerer uma nova moratória, agora baseada nos efeitos da crise gerada pelo covid-19. Notícias já dão conta de que o Poder Judiciário aguarda para os próximos meses aumento do número de pedidos de recuperação judicial, movimento que já se verificou no mês de março.
Por isso é que mesmo que se tenha uma decisão de caráter liminar para apagar o incêndio imediato, as decisões quanto ao mérito que ainda estão por vir devem ser proferidas de forma a evitar apenas transferir uma situação atual para o futuro.
A solução negociada será sempre a melhor para todos os envolvidos, inclusive para os casos em que não se caracterize o desequilíbrio, não podendo no entanto ser deixado de lado o fato de que havendo postergação de obrigações contratuais para o futuro, quando este futuro chegar haverá a necessidade de cumprimento das obrigações pretéritas postergadas e presentes, o que deve ser sopesado ao se realizar os pedidos nas ações judiciais.
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