A ciência médica vem progredindo de forma acentuada para proporcionar ao homem a tão ambicionada longevidade. Não no sentido de conferir a ele muitos anos e sim que os anos que ultrapassarem o patamar etário médio sejam consistentes e contemplados com uma qualidade de vida compatível com a dignidade assegurada constitucionalmente. Com a elevação da expectativa de vida dos brasileiros, a população idosa conta já com 28 milhões de pessoas e caminha firmemente para ser a quinta nação mais idosa do mundo1.
Tanto é que tal conquista vem ancorada em políticas públicas condizentes e, acima de tudo, carrega como suporte legal o Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003). Referido documento traz tutelas diferenciadas para o idoso, aqui compreendido aquele que já atingiu o marco de 60 anos. E é interessante observar que o destinatário, além da carga normal de direitos prevista na legislação, acumula outras específicas para atender suas necessidades. Pode-se dizer, jocosamente, que é um repertório que congrega vários assuntos a serem pesquisados em ordem alfabética.
Se, de um lado, há o inegável prestígio legislativo e o consequente comprometimento dos órgãos da saúde, por outro, criou-se um conflito que veio se avolumando e exigiu uma tomada de posição definitiva. E a decisão girou em torno do critério a ser adotado quando um jovem e um idoso disputam um único leito em instituição hospitalar. Chegou-se a pensar, no balizamento feito pela utilidade social, na eleição do mais novo como preferencial, pois representaria o anseio da própria sociedade, que certamente auferirá benefícios maiores que reverterão ao grupo, levando-se em consideração a significativa força de trabalho e produção, enquanto que, se for o idoso o escolhido, a premiação é individual, sem qualquer benefício coletivo.
Trata-se de um critério de utilidade social em que não é levado em consideração o princípio da equidade. Ocorre que, legalmente, a começar pelo preceito constitucional do tratamento isonômico, o critério de escolha é outro. Quando o legislador estabelece a paridade entre as pessoas, entroniza-as em um patamar de igualdade, locus em que os direitos deverão ser fruídos igualmente.
Além disso, o Estatuto do Idoso, diploma que veio estabelecer os direitos específicos daqueles que atingiram a condição de ancianidade - não que seja um minus e sim um plus à condição humana – estabelece textualmente em seu artigo 15:
É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.
Ora, quando claro o texto, despreza-se a interpretação, mas somente pelo apego à argumentação, no instante em que o cidadão for incorporado ao seu diploma etário, recebe o passaporte que permite sua circulação entre todos os demais, além de receber a atenção necessária à sua saúde, preferencialmente com relação às doenças, como o coronavírus, que afetam preferencialmente os que se encontram na senescência. A partir daí, com a legitimidade amparada legalmente, como profetizava Rachel de Queiroz em suas crônicas nos idos de 1952, "o velho, quando são, equivale ao moço".
Além do que, o Conselho Federal de Medicina, antevendo eventual disputa entre as pessoas de precários leitos em caso de uma pandemia, foi cauteloso e incisivo em estabelecer no artigo 9º da Resolução nº 2.516/2016, verdadeira regra que abarca os princípios da isonomia e da equidade, in verbis:
As decisões sobre admissão e alta em unidade de tratamento intensivo (UTI) devem ser feitas de forma explícita, sem discriminação por questões de religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião política, deficiência, ou quaisquer outras formas de discriminação.
A determinação deontológica, desprovida de qualquer forma de discriminação, recomendando a manifestação explícita a respeito do critério adotado para a escolha do paciente, obriga os médicos responsáveis a fazer uma escolha com manifestação escrita, documentada em prontuário. Não prevalecerá, desta forma, o critério etário, por si só, com exclusividade. Pelo contrário, recairá a seleção dentre aqueles que, considerados iguais, reunirem melhores condições de sobrevida e de menor tempo de ocupação de leito.
Se não fosse este o espírito que norteou a legislação e a resolução, não valeria a pena todo o investimento que vem sendo feito em favor da longevidade.
__________
1 Em 2030, Brasil terá a quinta população mais idosa do mundo.
__________
*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.