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Construindo pontes em tempos de covid-19 - Projeto-piloto de conciliação e mediação do TJ/SP

O diálogo, a empatia, a solidariedade e a colaboração são habilidades que devem ser perseguidas pelas empresas, seus líderes e gestores no mundo durante e pós-COVID-19, em que pontes serão cada vez mais bem-vindas.

24/4/2020

“Em tempos de crise, tolos erguem barreiras, enquanto sábios constroem pontes”. O fato de essa frase ser do herói Pantera Negra no filme homônimo dos Estúdios Marvel, em meio a um ambiente de violência e destruição, não faz com que deixe de demonstrar profundo bom senso na vida real.
 
Nestes tempos de COVID-19, em que a crise não é fictícia, mas bem real e de proporções gigantescas, mais do que nunca a sabedoria deve prevalecer, e pontes, não barreiras, devem ser construídas.
 
Especificamente no campo da prevenção e resolução de conflitos, objeto dessa série de artigos que se iniciou com o texto “Cumprimento de contratos e resolução de controvérsias em tempos de COVID-19”, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) acaba de dar um exemplo de sabedoria ao emitir o Provimento CG 11/20 – Processo 2020/42835, de 17 de abril de 2020 (Provimento CG 11/20), cuja íntegra pode ser encontrada aqui.
 
O Provimento CG 11/20 “dispõe sobre a criação de projeto-piloto de conciliação e mediação pré-processuais para disputas empresariais decorrentes dos efeitos da Covid19”. Conciliação e mediação pré-processuais ou no curso do processo são mecanismos previstos tanto no Código de Processo Civil, cujos artigos 165 a 174 detalham os dois institutos, quanto na Lei nº 13.140, de 26.6.2015 (Lei 13.140/15 ou Lei de Mediação), além de resoluções administrativas como a já longeva resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça, de 29/11/10, que instituiu a política nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses.
 
O próprio TJ/SP adota, já há bastante tempo, o chamado “sistema multiportas” de acesso à justiça, que envolve a conciliação e a mediação. Não se trata, pois, de uma novidade, mas do efeito acelerador que uma crise pode ter no aprimoramento da prática de mecanismos há muito previstos em nosso ordenamento jurídico, mas que muitas vezes permanecem subdimensionados, subaproveitados ou desacreditados, seja por ausência de conhecimento, restrição de recursos, seja mesmo por pura falta de iniciativa de alguém que se debruce sobre o tema e use da criatividade para fazer as coisas avançarem.

O que chama a atenção no provimento ora em análise é, em primeiro lugar, seu direcionamento à resolução de disputas empresariais. O artigo 1º do provimento CG 11/20 não deixa dúvidas de quem são os destinatários das medidas nele previstas:

“Art. 1º. Criar projeto-piloto de conciliação e mediação pré-processuais para disputas empresariais decorrentes dos efeitos da Covid-19, destinado a empresários e sociedades empresárias, nos termos do artigo 966 do Código Civil, e demais agentes econômicos, desde que envolvidos em negócios jurídicos relacionados à produção e circulação de bens e serviços”

Se neste momento de distanciamento social busca-se a diminuição da curva de contágio e, consequentemente, evitar que o sistema de saúde entre em colapso – leia-se, incapacidade de atender ao grande número de pacientes em tempo de salvar suas vidas –, o TJ/SP já prevê o potencial colapso do Judiciário. Como se sabe, o ditado “a justiça tarda, mas não falha” já foi há muito tempo substituído por “a justiça quando tarda, falha”. Agilidade será essencial para a sobrevivência das empresas, e um sistema judiciário sobrecarregado não terá capacidade de atender às demandas.  
 
É inestimável o potencial de conflitos empresariais que podem ser gerados pela pandemia da COVID-19 e seus efeitos econômicos, diretos e indiretos. A parte final do artigo 1º acima transcrito, porém, ensaia uma limitação ao tipo de negócio que essa oportuna iniciativa de estímulo à conciliação e à mediação pré-processuais visa atender. Supõe-se que tal limitação esteja relacionada ao fato de, como ressaltado no próprio provimento (Artigo 11), tratar-se de um “projeto-piloto [que] funcionará até 120 (cento e vinte) dias após o encerramento do Sistema Remoto de Trabalho” instituído nos órgãos judiciais por conta da pandemia de COVID-19.
 
Espera-se que tal limitação venha a ser levantada, uma vez que os conflitos empresariais diretamente relacionados à pandemia não estão circunscritos aos contratos empresariais atinentes, estritamente, à produção e circulação de bens. O próprio introito da norma menciona “demandas societárias”. E é mesmo de se esperar que ocorram várias demandas societárias, resultado de divergências entre sócios ou acionistas sobre as medidas que devem ser implementadas neste momento excepcional por que passa o país.
 
São, de fato, muitas as decisões a serem tomadas em âmbito empresarial pelos sócios e acionistas, incluindo a captação de recursos de terceiros ou o investimento de capital próprio dos sócios ou acionistas para suprir as necessidades de caixa causadas pela pandemia e seus efeitos sobre a lucratividade. Como consequência, questões sensíveis como a eventual diluição do capital de sócios ou acionistas que não tenham capacidade de contribuir com a chamada de capital podem gerar conflitos cuja judicialização pode, e deve, ser evitada.
 
É, pois, muito importante que o projeto de estímulo à conciliação e à mediação pré-processuais não apenas sobreviva ao período de 120 dias após o encerramento do regime remoto de trabalho (como sinaliza o próprio Artigo 11 do Provimento CG 11/20), como seja o quanto antes ampliado a todos os conflitos empresariais, e replicado em outros estados.
 
O segundo ponto que chama a atenção no Provimento CG 11/20 é a delegação da condução desse projeto-piloto de conciliação e mediação pré-processuais a três magistrados com notório conhecimento e experiência acumulada em disputas próprias de Varas Empresariais e de Conflitos Relacionados à Arbitragem e de Falências e Recuperações Judiciais, e intensa atividade acadêmica.
 
Além da nomeação alvissareira de juízes experientes em conflitos empresariais, o Provimento CG 11/20 abre a possibilidade de adesão voluntária de todos os magistrados da Comarca da Capital do Estado de São Paulo, com atuação na área empresarial.
 
Esperamos que esse convite seja, de fato, aceito pelo maior número possível de julgadores com especialização na área de disputas empresariais, pois o sucesso desse projeto, em boa parte, depende da efetiva participação dos magistrados, notadamente no momento da realização da audiência de conciliação prevista para ocorrer no prazo de até sete dias a partir do protocolamento do pedido pela parte interessada (Artigo 5º).
 
Quanto maior o número de juízes participantes, maior o número de audiências de conciliação que poderão ser realizadas no curto prazo de sete dias previsto no provimento. Mas não é só por essa razão que a efetiva participação de juízes de direito se mostra fundamental para o sucesso do projeto-piloto inaugurado pelo Provimento CG 11/20.
 
Sem qualquer demérito ao desempenho e crescente especialização e talento de conciliadores e mediadores, ainda é de nossa cultura que o jurisdicionado – notadamente a parte que não teve a iniciativa de buscar a conciliação ou mediação – esteja mais propenso a considerar, ao menos em um primeiro momento, a atuação de uma autoridade investida de jurisdição estatal, com grande conhecimento e experiência na solução de conflitos da matéria em questão, para condução da tentativa de conciliação.
 
Assim, ainda que a tentativa de conciliação presidida pelo juiz de direito na audiência inicial do Artigo 5º do Provimento CG 11/20 não logre êxito, certamente as partes seguirão para a mediação prevista no mesmo dispositivo com muito mais conhecimento de seus direitos e obrigações, facilitando o trabalho do mediador e aumentando sobremaneira as chances de sucesso de um acordo.
 
Por fim, mas não menos importante, é corajosa e muito bem-vinda a previsão de que a audiência de conciliação e/ou a sessão de mediação sejam realizadas por meio de sistema de videoconferência disponibilizado pelo TJ/SP. Prestigia-se, assim, o chamado Online Dispute Resolution (ODR). O aperfeiçoamento do processo de digitalização em razão do distanciamento social, seja na educação, nas relações pessoais e comerciais, seja no próprio Poder Judiciário, certamente será mais um dos legados desse processo evolutivo acelerado pela pandemia, que vem quebrar paradigmas anteriormente resistentes a mudanças.
 
Não há dúvida de que a situação atual, sem precedentes e com efeitos ainda imprevisíveis, impõe a necessidade de as partes buscarem, ou ao menos tentarem, a autocomposição direta ou incentivada. Como já discutido em artigo anterior, as estatísticas demonstram que isso nem sempre será possível. Mas a COVID-19 tem justamente nos mostrado a necessidade de fazer as coisas de forma diferente, desafiar as estatísticas e “achatar a curva” (flatten the curve).
 
O diálogo, a empatia, a solidariedade e a colaboração são habilidades que devem ser perseguidas pelas empresas, seus líderes e gestores no mundo durante e pós-COVID-19, em que pontes serão cada vez mais bem-vindas.

__________

*Gilberto Giusti é sócio de Pinheiro Neto Advogados.

*Marcello Lobo é sócio de Pinheiro Neto Advogados.

 

 

 

 

*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 

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