Novas formas de relações de trabalho originam-se da rapidez da informação, conexões e avanços tecnológicos, fazendo com que diversos setores da economia sejam afetados por uma nova maneira de ofertar e demandar bens e serviços, a exemplo do compartilhamento de carros, de locais para se hospedar, de vestuários, trocas de habilidades, entre outros.
Tais transformações têm afetado, consideravelmente, a sociedade de consumo contemporâneo, alterando o funcionamento tradicional da economia e possibilitando a interação entre o prestador de serviços e o consumidor.
Assim, a economia de compartilhamento constitui uma nova etapa no processo de desenvolvimento econômico, caracterizado pela superação da lógica de consumo em massa, visando ao acúmulo de bens por um momento em que o mercado passa a privilegiar novas formas de acesso a bens e serviços.
As novas condições de “consumo colaborativo” que privilegiam o acesso em detrimento da aquisição de propriedade sobre os bens, aliadas ao aprimoramento das tecnologias de comunicação móvel, juntamente com a crise econômica que inviabilizou a inserção de diversos profissionais no mercado de trabalho, propiciou o surgimento de novas formas de relação com os bens de consumo e exploração do trabalho humano.
Tais trabalhadores independentes são frequentemente chamados de trabalhadores do futuro, mas, ao que parece, já são os do presente. Ocorre que em virtude da pandemia, com o fechamento de fronteiras de diversos países e empresas correndo o risco de encerrar suas atividades, os trabalhadores independentes, não possuindo os mesmos recursos ou proteções dos empregados, encontram-se em situação vulnerável.
Embora as incertezas quanto à proteção dos direitos de tais trabalhadores persistam, as oportunidades de trabalho aumentam em razão do estado de calamidade pública e, principalmente, pela vigência da política de isolamento social que incrementa o trabalho em tarefas específicas de entrega de mercadorias à população.
Com a decretação pela Organização Mundial de Saúde do estado de pandemia em 11.03.20, foram tomadas atitudes emergenciais não apenas por parte da população em geral, mas, principalmente, pelas autoridades governamentais, inclusive, visando à proteção de todos os trabalhadores.
Uma das medidas adotadas foi a publicação da lei 13.982/20, a qual estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas pelo governo federal durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia do coronavírus (covid-19).
A retromencionada legislação autoriza o pagamento de auxílio emergencial no importe de R$600,00 (seiscentos reais) aos trabalhadores informais de baixa renda, bem como às mulheres que figuram como arrimo de família, que poderão receber duas cotas do auxílio no valor total de R$1.200,00 (mil e duzentos reais).
Apesar do recebimento do auxílio emergencial que visa a diminuir os impactos sociais e financeiros da pandemia na renda dos trabalhadores autônomos (dentre eles encontram-se os trabalhadores em plataformas digitais), tais trabalhadores muitas vezes precisam continuar a prestar serviços, já que estão sofrendo por viverem em um contexto de fragilização de direitos o que a pandemia não só traz à tona, bem como aprofunda.
Inexiste dúvida quanto à necessidade de isolamento social já que o sistema de saúde não possui infraestrutura necessária para atendimento hospitalar para diversas pessoas ao mesmo tempo, mas nem todos conseguem cumpri-lo em meio a necessidade de sobrevivência e relevância da prestação de determinados serviços na triste realidade atual.
Dentre os que precisam prestar seus serviços estão os que efetuam transporte de pessoas e mercadorias em razão da determinação de isolamento social em que vivemos.
Demonstrando a importância da prestação dos serviços de transporte de mercadorias em razão da realidade enfrentada, reproduziremos, abaixo, trechos de decisão proferida, liminarmente, nos autos do processo 1000436-37.2020.5.02.0073, exarada pela juíza Josiane Grossl, da 73ª Vara do Trabalho de São Paulo, em uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em face da Uber do Brasil Tecnologia LTDA.
Segundo entendimento de sua excelência, os trabalhadores de empresas de transporte de mercadorias por plataformas digitais “acabam exercendo papel de grande relevância no isolamento social recomendado pelos especialistas da área de saúde, vez que o recebimento em casa de medicamentos, alimentos e outros produtos, através do sistema delivery, auxilia na redução da circulação de pessoas”.
Todavia, em razão dos riscos que tais profissionais correm ao desempenhar suas atividades por estarem sujeitos a contrair a covid-19, a decisão garantiu, ainda que liminarmente, a adoção de algumas medidas para a proteção de tais trabalhadores que permanecem laborando.
Foi assegurada a distribuição gratuita de álcool em gel (70%) durante o exercício das atividades dos trabalhadores de entregas de produtos, bem como o fornecimento de produtos e equipamentos necessários à proteção, além da determinação de treinamento adequado sobre o uso, higienização, descarte e substituição dos equipamentos de proteção, como também do estabelecimento de política de autocuidado aos profissionais para identificação de potenciais sinais e sintomas de contaminação do coronavírus, entre outras.
Além disso, houve determinação de que seja concedida assistência financeira para a subsistência de entregadores da plataforma que se afastarem do trabalho em razão de contaminação pela covid-19 ou que integrem o grupo de risco, prevendo, ainda, o cumprimento de doze medidas distintas, sob pena de pagamento de multa diária de R$1.000 (mil reais) por determinação descumprida, limitada a R$500.000 (quinhentos mil reais).
Portanto, não há dúvida do dever do Estado em garantir medidas sociais e econômicas que visem à redução de risco de contágio da covid-19 a todos os cidadãos, nos termos do "artigo 196" da Constituição Federal.
De todo o exposto, a adoção de medidas para o combate da covid-19, bem como os cuidados para com os trabalhadores da chamada gig economy, visam preservar os direitos fundamentais e sociais destes trabalhadores, especialmente o direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana, ora previstos nos artigos 1º, inciso III, art. 5º e art. 6º da Constituição Federal.
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*Viviane Lícia Ribeiro é advogada especialista em Relações Trabalhistas. Mestranda pela Universidade de São Paulo. Pós graduada em Direito do Trabalho pela FGV. Pós graduada em Direito Civil e Direito do Trabalho pela Universidade Católica Dom Bosco.
*Ricardo Calcini é mestre em Direito pela PUC/SP. Professor de Pós-Graduação em Direito do Trabalho da FMU. Palestrante e Instrutor de eventos corporativos “in company” pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos.