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Será crime deixar de pagar impostos para pagar salários durante a pandemia? Uma análise sobre a constitucionalidade do tema pela perspectiva "Barrosiana"

Nesse cenário, o anúncio oficial de prorrogação do isolamento social talvez possa ser o gatilho para uma onda de demissões, pedidos de renegociações de contrato em caráter pré-processual ou litigioso, suspensão de contratos com fornecedores, entre outras medidas.

23/4/2020

No último dia 17.4 o governador de São Paulo, João Dória, prorrogou a quarentena oficial até o próximo dia 10.5. Sob o ponto de vista exclusivamente econômico, a decisão assusta, inegavelmente (não serão tecidos comentários às orientações médicas nacionais e internacionais sobre o tema, pois a presente proposta é outra). Não foram poucas as manifestações de parte do empresariado paulista (ou com operações em solo bandeirante) no sentido de "estar no limite", assim como o sentimento de esperança antes nutrido de que o mês de abril seria o último mês de quarentena (ao menos no formato no qual a quarentena está hoje, isto é, sem flexibilizações). Nesse cenário, o anúncio oficial de prorrogação do isolamento social talvez possa ser o gatilho para uma onda de demissões, pedidos de renegociações de contrato em caráter pré-processual ou litigioso, suspensão de contratos com fornecedores, entre outras medidas.

Para o desenvolvimento do raciocínio indicado no título do presente trabalho, é preciso fixar algumas bases e imaginar a seguinte hipótese. Coloquemos os holofotes em um pequeno ou médio empresário que se veja obrigado a pensar na possibilidade de demissão de seus funcionários com a finalidade de reduzir o custo operacional do seu negócio, mas que, no lugar das demissões, opta por uma alternativa ilícita e decide deixar de recolher os impostos decorrentes de sua atividade comercial. Para os que já tiveram contato com casos criminais de sonegação tributária e previdenciária praticados em contexto parecido, não é novidade a tese de "inexigibilidade de conduta diversa", (a prática de um mal necessário num contexto não provocado pelo agente), arguida como forma de justificar uma conduta, em tese, criminosa por parte do dono do negócio. O responsável pela empresa argumenta que "não era exigível ele ter agido de maneira diversa", pois, adotando uma linguagem mais coloquial, "ou eu agia dessa forma ou eu quebrava".

Referida tese, de difícil demonstração durante o processo, já foi aceita pelos tributais. Talvez essa aceitação seja a razão para que novas arguições de "causa justificadora de conduta"  tenham se tornado mais frequentes nos Juízos Criminais ao redor do país.

Considerando um possível desgaste dos fundamentos jurídicos da tese de exclusão de culpabilidade do agente (o dono do negócio), bem como uma fundamentação de caráter iluminista e progressista praticada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, propõe-se uma reflexão da mesmíssima tese a partir de outras premissas.

Nos autos do Habeas Corpus/STF 124.306/RJ (julgado em 29.11.2016), a Primeira Turma da Suprema Corte entendeu que não configura crime de aborto a interrupção da gestação até o terceiro mês, sob o fundamento de que nessa hipótese de aborto a criminalização seria inconstitucional (uma análise do tipo penal em conformidade com a Constituição). Ou seja, o tipo penal em si não foi declarado inconstitucional, mas sim apenas uma de suas possíveis aplicações. Entre as várias possibilidades de conduta que permitem a imputação pelo crime de aborto, uma delas num determinado contexto foi tida como inconstitucional.

O voto-condutor do precedente foi de lavra do já mencionado ministro Luís Roberto Barroso, que se tornou o relator para o acórdão (inicialmente de relatoria do ministro Marco Aurélio). Independentemente da conclusão de mérito do julgamento, o voto do ministro Barroso é de riqueza jurídica ímpar e de admirável didática, como lhe é particular, registre-se. A partir de uma análise sobre aquilo que se privilegia e aquilo que se sacrifica com a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, o ministro conclui que incidência da norma penal traz mais prejuízos do que benefícios à sociedade. Em suas palavras, (i) "A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria", (ii) "o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres" deve ser considerado, (iii) a criminalização na hipótese em questão "constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro", (iv) "é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas", (v) "a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios". Como se vê, a construção do raciocínio à tal conclusão é moldada nos princípios e objetivos previstos na Constituição Federal de 1988 e na consideração das consequências sociais da criminalização daquela conduta, havendo na fundamentação boa dose de vitamina civilizatória e pitadas de progressismo.

Estando, enfim, postas as bases necessárias ao desenvolvimento da presente proposta, olhemos para nossa realidade e retomemos a hipótese imaginada no começo: pandemia pelo covid-19, quarentenas oficiais a pleno vapor (no Estado de São Paulo, prorrogada até 10.5, como dito alhures) e alguns empresários/empreendedores tendo que decidir, entre outras coisas, se demitem ou não funcionários para cortar salários.

Nesse cenário excepcional, parece sustentável uma inconstitucionalidade na criminalização do dono do negócio pelos delitos de sonegação de tributos na hipótese de a conduta ter sido praticada por conta dos efeitos do isolamento social e exclusivamente para salvar empregos. Uma hipótese de inconstitucionalidade sem restrição do texto legal, para conferir ao dispositivo conformidade à Constituição.

A conduta, ainda que apenas pela letra fria da lei, se amolde com exatidão à redação do tipo penal (seja de sonegação tributária ou previdenciária), não permitiria sua leitura como crime considerando: (i) a dignidade da pessoa humana (pilar norteador da Carta Constitucional), (ii) a vedação ao excesso de proibição (jurisprudência do STF), (iii) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, isto é, uma ponderação entre os benefícios e prejuízos à sociedade ao deixar de se criminalizar a conduta que, formalmente, é prevista como crime (fundamentação do Habeas Corpus/STF de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso), (iv) o direito ao emprego (direito social) e a proteção à ordem econômica (vista no sentido amplo de seu necessário funcionamento), (v) e uma necessária política-criminal do Estado no sentido de privilegiar empresas, empregos, isto é, pessoas e famílias, em detrimento do Direito Penal codificado sem compreensão e imune às sensibilidades dos rostos e motivos por trás daquele (não)crime.

À toda evidência, uma coisa é o empresário deixar de recolher os tributos aos cofres públicos porque seu negócio teve queda no faturamento e, como forma de manter o mesmo padrão de vida, o dono do negócio demite parte dos funcionários e, claro, sonega tributos.

Outra coisa é o empresário que, já tendo feito os cortes naquilo que era possível para preservar a sobrevivência do negócio, ter que decidir entre pagar os impostos ou demitir os funcionários para enxugar o custo mensal.

As condutas de não recolhimento de tributos aos cofres públicos são formalmente idênticas. Entretanto, são materialmente diferentes, apresentando contextos e, principalmente, diferentes valores e motivos envolvidos. Certamente o legislador, ao criar o crime de sonegação, preocupou-se em reprimir a primeira, ao passo que a segunda conduta, se também tida como crime, possivelmente trará mais prejuízos àquilo que a lei visa proteger: a ordem econômica.

Em suma, as teses "justificadoras de conduta", principalmente em tempos de crise e caos social, não é nova. Igualmente, ainda que a pandemia do coronavírus seja nova, as dificuldades do dia a dia impostas àqueles que optam pelo empreendedorismo também não são novas. O que pode ser novo, e é essa a proposta de reflexão, é o discurso justificador com fundamento na inconstitucionalidade de uma hipótese de aplicação da norma penal incriminadora e de determinada interpretação de uma conduta como crime (interpretação conforme), ainda que tal conduta seja prevista, na letra fria da lei, como crime, considerando os princípios e objetivos norteadores da Constituição Federal, as consequências sociais da criminalização e, também, a fundamentação iluminista (e alvissareira) de um recente precedente de um relativamente novo Ministro do Supremo Tribunal Federal.

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*Rafael Valentini é sócio do escritório Fachini, Valentini e Ferraris Advogados.

 

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