Migalhas de Peso

Caso fortuito e plano de recuperação judicial

Do ponto de vista jurídico, a atual pandemia tem sido tratada como hipótese clássica de caso fortuito (art. 393, CC), visto que sequer governos, empresários ou especialistas conseguiram prever a dimensão da situação ora enfrentada, com a verdadeira paralisação econômica de quase todos os setores (ou segmentos) de forma absolutamente abrupta.

23/4/2020

O ano de 2020 reservou uma situação de natureza excepcional que modificou drasticamente a vida das pessoas por todo o mundo. A pandemia do covid-19 se alastrou por todos os continentes em grande velocidade causando efeitos devastadores. O isolamento social adotado em alto grau acarreta consequências que se refletem nos campos social, econômico e jurídico.

Do ponto de vista jurídico, a atual pandemia tem sido tratada como hipótese clássica de caso fortuito (art. 393, CC)1, visto que sequer governos, empresários ou especialistas conseguiram prever a dimensão da situação ora enfrentada2, com a verdadeira paralisação econômica de quase todos os setores (ou segmentos) de forma absolutamente abrupta. Nos interessa aqui tratar desses efeitos na recuperação judicial, notadamente no plano de recuperação judicial3.

A lei 11.101/05 (LREF) devolveu aos credores o protagonismo da análise do plano de recuperação judicial4, que têm a prerrogativa de decidir sobre o prosseguimento da atividade econômica mediante a aprovação do plano, de forma que não compete ao magistrado, a priori, aprova-lo ou rejeita-lo com base em fundamentos econômicos financeiros, ressalvado o controle de legalidade5. Cabe ainda ao magistrado a condução jurisdicional do procedimento e a tomada de decisões urgentes inerentes ao próprio exercício da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF), com base no poder geral de cautela (art. 300, CPC) e no princípio da preservação da empresas (art. 47, LREF), assegurando o resultado útil do processo que é oferecer meios instrumentais para a finalidade do procedimento.

O sistema processual recuperatório brasileiro possui regras e prazos estabelecidos para evitar a eternização de procedimentos, ou eventuais abusos comportamentais de devedor ou credores6. Para muito além de um favor legal como previa a concordata, o atual processo recuperacional visa a equilibrar os interesses dos credores e do devedor por via de um plano, a fim de garantir o melhor recebimento do crédito ao mesmo tempo em que mantém a fonte geradora de empregos, tributos, estimula função social e atividade econômica (art. 47 LREF). Nesse contexto, para as Recuperações Judiciais em trâmite que foram atingidas pelo caso fortuito da covid-19, observam-se as regras previstas no procedimento a fim de amoldar soluções mais adequadas dentro do nosso ordenamento jurídico.

O primeiro prazo relevante previsto no procedimento é o de apresentação do plano de recuperação no “prazo improrrogável” de 60 (sessenta) dias da publicação da decisão que deferir o processamento da recuperação judicial, sob pena de convolação em falência” (art. 53, LREF). Embora o plano não seja estático, podendo sofrer modificações inclusive em Assembleia Geral de Credores (art. 56, §3º, LREF), deve ser feito com base em estudos de viabilidade econômico-financeira por assessoria especializada (art. 53, II e III, LREF), de forma tal que possa se demonstrar aos credores a possibilidade de superação de situação de extrema dificuldade, sendo melhor a aprovação do plano que a própria falência7. Veja-se que quando se depara com um caso fortuito como o da covid-19, em que o cenário econômico é totalmente modificado, de pouca ou nenhuma valia terá o plano elaborado8.

No mesmo sentido, suponha-se que em determinada recuperação um plano fosse apresentado e não recebesse quaisquer objeções. Logo após o prazo estipulado para a apresentação de objeções, sobrevém a crise estabelecida pela covid-19. Admitindo-se que a recuperanda pertença a algum dos setores que foi diretamente atingido pela paralisação e que os efeitos econômicos importem em efetiva impossibilidade do cumprimento do plano que fora tacitamente aprovado e que, portanto, mereceria a simples concessão (homologação) na forma da lei. Pouco sentido prático existiria em simplesmente homologar o plano inexequível, diante da real possibilidade de que tanto devedor quanto credores ficariam insatisfeitos com a hipótese. Dentro deste contexto, é razoável pressupor que o devedor queira modificar o plano apresentado e crível que houvesse margem para a adesão dos credores.

A aprovação do plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido (art. 59, LREF) e o seu descumprimento é caso passível de convolação em falência (art. 62, LREF). Essa é outra situação em que o caso fortuito deve ser observado pelo magistrado a fim de manter os interesses envolvidos tanto de credores como de devedores.

Reconhecendo-se como controversa a possibilidade de que o magistrado intervenha diretamente em planos aprovados para conceder moratória ou descontos em detrimento dos credores9, não deveria ser objeto de maior resistência que magistrados adaptem os procedimentos à realidade concreta. Se o artigo 35, I, “f”, da LREF, permite que seja convocada assembleia de credores a qualquer tempo em recuperações judiciais para “qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores”, nada impede que procedimentos sejam adaptados à realidade imposta no nosso meio.

Na hipótese em que o plano ainda deve ser apresentado em curto lapso temporal, nada impediria que fosse apresentado formalmente um pedido de assembleia para decidir sobre calendário processual (negócios jurídicos processuais10) ou deliberar sobre o plano que ainda não recebeu objeções, inclusive por ausência de publicação do edital respectivo a fim de evitar a homologação que geraria obrigações inexequíveis. Igualmente, nada impede a convocação de uma assembleia inclusive para que credores analisem a ocorrência efetiva para a atividade de caso fortuito e compreendam se tratar de “fato novo” apto a rediscutir as obrigações novadas.

Sinteticamente, poderíamos observar que as soluções dadas, e todas razoáveis, não precisam partir necessariamente de caminhos para burlar as exatas disposições da lei. Não faz sentido, do ponto de vista procedimental, convocar uma assembleia (que talvez não possa ser realizada11) para discutir um plano que se sabe inexequível, com a única finalidade de que não seja concedida a recuperação judicial, gerando possíveis consequências negativas com o descumprimento do plano que se verificou, antes da homologação que não seria passível de cumprimento. A medida mais singela, como a intimação do devedor para apresentar plano de recuperação judicial em tempo entendido como razoável12, poderia ser, ao mesmo tempo, a forma mais célere e econômica de ultrapassar o problema reconhecidamente excepcional que fora imposto pela realidade.

A recomendação 63 do CNJ, para orientar a atuação jurisdicional13 em matéria de recuperação empresarial e falência14, adentrou na problemática estabelecendo sugestões para a realização de assembleia de credores, reapresentação do plano e prorrogação do stay period.

A nossa legislação não previu uma situação como a ora enfrentada. Diga-se, de passagem, que a ruptura do modelo tradicional de concordata, com a criação da concordata-sentença, anteriormente mencionada, fez com que se perdesse a cultura e a tradição para a solução de problemas similares nas vias negociais tradicionais. Na maioria dos demais países da cultura ocidental é possível que alguém peça recuperação judicial sem haver necessidade de aguardar lapso temporal em relação ao pedido anterior, o que fomenta a hipótese de que o mesmo crédito passe, naturalmente , por mais de uma crise da mesma empresa, fato que tem gerado grandes discussões por ocasião do PL 1.397/20 em relação, por exemplo, ao problema da renegociação envolvendo novos créditos, inclusive, possivelmente, os credores extraconcursais que gozavam de uma proteção pela lei anterior, cuja mitigação talvez ocorra em breve.

Se observarmos nas legislações estrangeiras, veremos que o Brasil é um dos poucos países a fixar limites temporais entre os procedimentos recuperatórios. O nosso histórico legislativo também aponta no mesmo sentido, em que os marcos temporais foram enrijecidos exatamente com o decreto-lei 7.661/45, como forma de restringir aquilo que se considerou um “benefício legal”. Na lei 11.101/05 quebramos o paradigma e voltamos a considerar a concordata, ora recuperação judicial, como instrumento de acordo entre credores e devedores para a solução da crise da empresa. Devolvemos o paradigma padrão de procedimentos concordatários, embora tenham permanecido resquícios de uma lei anterior que possuía outra lógica. De toda forma, a existência de um prazo para requerer novo pedido de recuperação judicial não alberga a hipótese de rediscussão dos créditos em decorrência de caso fortuito, constituindo-se em lacuna do nosso ordenamento jurídico15.

Os fatos ora vivenciados têm albergado medidas legislativas de exceção nos mais variados campos. Isso justifica a motivação para a criação do PL 1.397/20, que tem a finalidade de orientar a atuação jurisdicional em momentos como este que encontra divergência nos mais elevados especialistas da matéria. No entanto, um ponto tem sido incontroverso nos peritos da matéria: é necessário encontrar soluções excepcionais para momentos especialmente complicados como os atuais.

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1 Existe controvérsia sobre as expressões “caso fortuito” e “força maior”, com a formação de diversas correntes. No entanto, compreende-se que a discussão não é relevante para modificar as conclusões deste texto. Representando parte da controvérsia: Clique aqui

2 Com discussões inerentes a possíveis ocultações de informações.

3 Este tema foi instigado pelo produtivo debate virtual promovido pelo TMA em 30.03.20.

4 Olvidando-se o famigerado sistema anteriormente vigente denominado de concordata-sentença, no qual os credores eram afastados da deliberação e o procedimento de concordata era considerado como um “favor legal”. Sobre o assunto: ESTEVEZ, André Fernandes. A assembleia-geral de credores no Direito brasileiro: razões para a criação da concordata-sentença no decreto-lei 7.661/45. Revista da Escola de Magistratura Regional Federal, v. 20, p. 11-24, 2014.

5 Conforme prevê art. 58 da lei 11.101/05. Nesse sentido, decidiu o STJ que as bases econômico-financeiras do acordo negociado entre sociedades em recuperação judicial e seus credores, em regra, não estão submetidas ao controle judicial (Resp 1.631.762 – SP); Ressalva-se a possibilidade de invasão da análise do plano de recuperação judicial pelo magistrado em certas hipóteses envolvendo o cram down, matéria que encontra certa controvérsia na doutrina. Sobre o assunto: ESTEVEZ, André Fernandes. Influências do princípio da preservação da empresa no Direito Falimentar: critérios para a derrubada do veto dos credores (cram down) sobre o plano de recuperação judicial. In: ESTEVEZ, André Fernandes; JOBIM, Marcio Felix. (Org.). Estudos de Direito Empresarial: homenagem aos 50 anos de docência do professor Peter Walter Ashton. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v. 1, p. 575-616.

6 Da mesma forma que nos demais sistemas processuais. Nesse sentido: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

7 De acordo com estudo realizado pelo observatório de insolvência da ABJ, considerando os processos em trâmite perante as varas de falência e recuperação da comarca de São Paulo - SP, das empresas que submeteram os seus planos de recuperação judicial à deliberação assemblear dos credores, 72,1% tiveram seus planos de recuperação judicial aprovados. A conclusão extraída é que “o reduzido percentual de reprovação pode indicar que, embora a empresa possa ser inviável economicamente, a falta de ativos do devedor resultaria em liquidação falimentar ainda mais ruinosa para o credor”. Clique aqui

8 A conclusão não poderá ser diferente em relação ao prazo de 30 dias para apresentação de objeção ao plano (art. 55, LREF); Situação igualmente relevante é o prazo de 180 dias do stay period que suspende todas as ações e execuções em face do devedor e defere a manutenção dos bens essenciais à atividade na posse do devedor (art. 6º, §4º c/c 49, §3º, LREF). Embora a jurisprudência tenha flexibilizado a rigidez da Lei autorizando a renovação do referido prazo, caso o devedor não tenha dado causa por meio de movimentos protelatórios, a existência do caso fortuito parece conduzir naturalmente a prorrogação. Conforme jurisprudência do STJ, o prazo de suspensão das ações e execuções na recuperação judicial, previsto no art. 6º, § 4º, da lei 11.101/05, pode ser prorrogado "caso as instâncias ordinárias considerem que tal prorrogação é necessária para não frustrar o plano de recuperação" (AgInt no REsp 1.717.939/DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, DJe de 06.09.18).

9 Em decisão proferida pelo juiz Gustavo Dall’Olio, da 8ª Vara Cível de São Bernardo do Campo (processo de 1024091-12.2014.8.26.0564), restou determinada a suspensão, até o dia 10 de julho, do pagamento de todos os créditos devidos por uma empresa em recuperação judicial. No mesmo sentido, o juiz Antenor da Silva Cápua, da 1ª Vara Cível do Foro de Itaquaquecetuba (SP), no processo de 1006707-50.2016.8.26.0278, autorizou uma locadora de caminhões a pagar apenas 10% dos créditos trabalhistas que estavam previstos para abril e maio, em razão da pandemia. Contudo, necessário ressaltar que em decisão proferida pelo desembargador Pereira Calças (processo: 1054969-12.2018.8.26.0100), do TJ/SP, os pedidos de empresa em recuperação judicial que pretendia suspender pagamento de serviços essenciais, dos credores trabalhistas e reduzir a 10% o pagamento dos credores colaboradores, foi negado. Em resumo, não obstante reconhecido o “gravíssimo impacto financeiro e social”, causado pelo COVID-19, o relator entendeu que o Judiciário não pode intervir no mérito do plano de recuperação judicial aprovado.  

10 Sobre o tema: Clique aqui

11 A recomendação nº 63 do CNJ, nos termos do art. 2º, prevê que os juízos determinem a suspensão de AGC presenciais. Excepcionalmente, verificada a urgência da realização da AGC para manutenção das atividades empresariais da devedora e para o início dos pagamentos aos credores, que seja autorizada a realização virtual, se possível.

12 Observando que a compreensão de razoabilidade pode encontrar larga divergência, em especial se compararmos com a pandemia da Gripe Espanhola, que se alastrou nos mais variados países, com surtos secundários, entre os anos de 1918 e 1920.

13 Cujo fato levantou dúvidas acerca da competência do órgão, concebido para tratar de matéria administrativa.

14 Sobre o assunto: Clique aqui

15 O legislador pode, eventualmente, prever uma hipótese no Direito positivo, sem, contudo, dar-se conta de alguma exceção pela qual teria legislado de forma diferente. Assim, "visto o problema a partir da intenção reguladora, existe uma lacuna na lei" (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. p. 565-566).

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*André Fernandes Estevez é professor adjunto de Direito Empresarial na PUC/RS. Doutor em Direito Comercial pela USP. Mestre em Direito Privado pela UFRGS. Membro do TMA. Sócio do escritório Estevez Advogados.



*Diego Fernandes Estevez é mestre em Direito pela PUC/RS. Especialista em Processo Civil pela UFRGS. Membro do TMA. Sócio do escritório Estevez Advogados.

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