O Covid-19 tem impactado diretamente em diversas esferas nas relações jurídicas. O mundo enfrenta uma possível recessão econômica e há diariamente alterações na legislação para mitigar a propagação da doença, preservar vidas, empregos e ajudar empresas. Diante desse cenário, é muito importante dar atenção também aos possíveis impactos ambientais relacionados tanto ao cumprimento de condicionantes de Licenças Ambientais, quanto de acordos firmados entre empreendedores e órgãos públicos.
A aplicação das teses de força maior e caso fortuito, assim como de onerosidade excessiva no cumprimento das obrigações, voltaram a ser discutidas nas relações jurídicas. E, o que se tem observado, na maioria dos casos, é a busca por soluções negociadas (“automedicação”), pautadas na boa-fé de ambas as partes. Porém, a pergunta que se faz é: esses conceitos aplicam-se ao Direito Ambiental?
A resposta não é exata. Ela variará conforme se trate da responsabilidade civil ou administrativa; e conforme se trate das obrigações assumidas espontaneamente ou de obrigações impostas por condicionantes de licenças ambientais ou, ainda, de obrigações legais.
Na hipótese de haver um impedimento físico de cumprimento de alguma obrigação, assim como ocorre nas localidades onde os serviços não essenciais foram suspensos, ou na situação em que o empreendedor tenha sua condição financeira severamente impactada pela pandemia a ponto de não ter meios para cumprir com a obrigação, é razoável que as autoridades governamentais aceitem pedidos de waiver para renegociação dos termos vigentes, incluindo um período de readequação ou enquanto a pandemia perdurar. Porém, o adiamento do cumprimento da obrigação ambiental não poderá implicar qualquer risco ao meio ambiente ou à saúde pública.
Isso se enquadra também em relação às condicionantes de uma Licença Ambiental. Todas as obrigações ligadas ao controle da atividade potencialmente poluidora, sejam de cunho preventivo ou mitigador, deverão ser cumpridas enquanto a empresa estiver operando. Entretanto, havendo condicionantes de cunho compensatório ou que tenham seu cumprimento prejudicado em virtude da pandemia, como consulta a comunidades, por exemplo, sua postergação pode ser pleiteada, em virtude de fato alheio à vontade do empreendedor. Nesse caso, a obrigação será cumprida, mas o empreendedor ganhará um “fôlego”, sem sofrer um sacrifício extremado e sem incidir em mora por eventual atraso.
Os Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e o Distrito Federal foram pioneiros em prorrogar os prazos para cumprimento de condicionantes de licenças e de obrigações assumidas em TACs, bem como dos cronogramas de execução de medidas compensatórias em andamento. Já São Paulo limitou-se a publicar em seu site que a suspensão de prazos não inclui as condicionantes caracterizadas como ‘essenciais’, o que permite concluir, a contrario sensu, que as demais condicionantes podem eventualmente ser suspensas.
O Ibama, por sua vez, editou Informe Geral reconhecendo o caráter excepcional do momento e indicando que as condicionantes de licenças devem ser cumpridas “na medida do possível”; mas reforçou a inafastabilidade de ações ligadas à qualidade ambiental, como a garantia da segurança ambiental e o controle do risco de acidentes.
Exemplos de situações para renegociação de prazos
A título de exemplo, numa atividade industrial, condicionantes como o tratamento dos efluentes e o controle das emissões atmosféricas deverão ser rigorosamente cumpridas. Com mais razão ainda, no caso de empreendimentos minerários, condicionantes relacionadas à estabilidade e à segurança de barragens são indiscutivelmente prementes e inadiáveis. Contudo, eventuais condicionantes como a doação de mudas ou a implantação de um programa de educação ambiental nas escolas podem ser postergadas, em virtude do momento excepcional.
Outro exemplo: Seria possível propor a revisão do cronograma de execução do plano de intervenção no caso do gerenciamento de uma área contaminada que, comprovadamente, não ofereça risco à saúde humana ou ao meio ambiente, devido aos altos custos envolvidos. Nesse caso, poderia se utilizar como justificativa a situação a econômica da empresa, em função da própria pandemia ou do comprometimento da mobilidade de mão-de-obra especializada para os trabalhos de campo1.
Ainda, desde que os resíduos gerados por determinada atividade estejam sendo adequadamente gerenciados, os programas e as metas de logística reversa podem ser revistos, considerando-se o cenário atual. No caso do Estado de São Paulo, a CETESB ampliou o prazo de entrega do Relatório Anual de Resultados do Sistema de Logística Reversa. Quem sabe, num futuro próximo, os órgãos estaduais e o próprio Ministério do Meio Ambiente possam ir além, prevendo a prorrogação de algumas metas em si.
Todas as hipóteses devem ser apresentadas ao órgão competente, com a respectiva justificativa, cabendo ao empreendedor lesado pela pandemia comprovar que inexistem outros meios passíveis de dar cumprimento às obrigações assumidas, reforçando, assim, sua diligência e boa-fé. Tais pedidos dependem da anuência expressa do órgão ambiental licenciador e podem ser uma solução viável para permitir a continuidade de atividades econômicas e a manutenção de empregos, sem abrir mão do dever de preservação do meio ambiente.
Os fundamentos jurídicos para tanto vão desde a alegação caso fortuito e força maior, aplicáveis à esfera administrativa (eis que subjetiva), até o Fato do Príncipe ou Teoria da Imprevisão, passando, ainda, por razões de relevante interesse geral, que autorizem a celebração de compromisso com os interessados.
Âmbito civil
Diante da pandemia, outra realidade se dará no âmbito da responsabilidade civil objetiva, que independe de culpa e, por esta razão, não admite as chamadas excludentes de responsabilidade como caso fortuito e força maior. Porém, não significa que não possam ser renegociados alguns pactos firmados com o Ministério Público ou com os órgãos ambientais, com base no argumento de que a pandemia consiste em (i) fato superveniente; (ii) imprevisível, (iii) inevitável; (iv) gerador de um ônus excessivo para o empreendedor; (v) com consequências incalculáveis.
A diferença estará em saber se os efeitos da pandemia acarretarão a impossibilidade do cumprimento da obrigação – hipótese em que, provavelmente, a discussão acabará sendo judicializada2 – ou se implicarão uma onerosidade excessiva ao seu cumprimento, justificando sua postergação enquanto perdurar este cenário de incerteza.
Em se tratando da hipótese de atraso no cumprimento das obrigações, entendemos ser plenamente possível pleitear a renegociação do acordo, especialmente no que tange às condições de tempo e modo de cumprimento da obrigação, em virtude de fatos alheios à vontade de ambas as partes. Em linhas gerais, o empreendedor reafirmaria sua obrigação, mas em prazo diferido, e não seria constituído em mora, de forma que seu atraso não acarretaria condenação em perdas e danos.
Isto se aplica, por exemplo, a Termos de Ajustamento de Conduta firmados com o Ministério Público (ex: doação de lancha para fiscalização de um reservatório hidrelétrico), assim como a Termos de Compromisso firmados com os órgãos ambientais (ex: execução de Projeto de Recuperação de Área Degradada – PRAD), desde que se trate de obrigações não emergenciais e que sua postergação não acarrete danos ao meio ambiente.
Situação diversa nos parece ser a de obrigações impostas por diplomas legais, como o prazo para adesão ao PRA – Programa de Regularização Ambiental ou o prazo para entrega do RAPP – Relatório Anual de Atividades Potencialmente Poluidoras e Utilizadoras de Recursos Ambientais.
Nestes casos, haveria a necessidade de publicação de um ato normativo suspendendo ou postergando o prazo legal, a exemplo da Instrução Normativa IBAMA nº 12, de 25.3.2020; da Resolução ANTT nº 5.879, de 26.3.2020; e da Portaria do Corpo de Bombeiros de São Paulo nº 14, de 24.3.2020, que, em suma, dispõem sobre a flexibilização de prazos para cumprimento de obrigações legais, em razão da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
A bem ver, estamos vivenciando um cenário excepcional, em que todos os agentes devem contribuir para o enfrentamento da crise, com vistas a minimizar os estragos da Pandemia na vida das pessoas e na economia do País3.
No caso dos órgãos ambientais ou mesmo do Ministério Público, isto não significa abrir mão do meio ambiente ecologicamente equilibrado; ao contrário, ao aceitar renegociar prazos e condições para o cumprimento de obrigações ambientais consideradas não essenciais ou não emergenciais - cuja prorrogação não acarrete danos ao meio ambiente –, estes agentes estarão contribuindo para a continuidade das atividades econômicas, a manutenção de empregos4 e, por conseguinte, para a sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações.
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1 Nesse sentido, no âmbito do Estado de São Paulo, a Diretoria da CETESB decidiu suspender os prazos para o cumprimento das medidas que se revelarem inviáveis pelo comprometimento da mobilidade de mão-de-obra especializada [in clique aqui - acesso em 2.4.2020].
2 Entendemos ser de extrema importância ressaltar que, com base na experiência em eventos similares, como as crises financeiras ocorridas em passado não tão distante, não temos uniformidade dos Tribunais sobre a caracterização de eventos pandêmicos.
3 Vale citar que algumas instituições financeiras já estão tomando medidas proativas de liberar temporariamente os devedores de suas obrigações pecuniárias, contribuindo com o enfrentamento da crise econômica decorrente da Pandemia: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e a Caixa Econômica Federal (CEF) já anunciaram medidas emergenciais para mitigar os efeitos da Pandemia; as demais instituições financeiras, por sua vez, estão concedendo prazos adicionais para que seus clientes realizem o pagamento de dívidas, aproveitando as alterações nas regras de provisionamento realizadas pelo Conselho Monetário Nacional, por meio das Resoluções 4.782 e 4.783, ambas datadas de 16 de março de 2020.
4 Neste sentido, inclusive, merece destaque a iniciativa do Estado de Santa Catarina, com a aprovação do Projeto de Lei PL/0071.5/2020, que determina que o órgão ambiental analise prioritariamente pedidos de novos licenciamentos, de forma que os novos empreendimentos a serem instalados operem e atuem na geração de emprego e renda, o quanto antes.
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*Renata Castanho é sócia gestora da área Ambiental de Lobo de Rizzo Advogados.